No capítulo anterior observei os problemas do emotivismo e o discuti em termos da metáfora da projeção. O emotivismo é uma versão do projetivismo. O quasi-realismo de Blackburn também é uma versão do projetivismo explicitamente produzida para fazer face aos problemas levantados contra o emotivismo. Mas qual a diferença entre um mero projetivista e um quasi-realista? O quê o quasi-realismo acrescenta ao projetivismo? Blackburn explica a distinção como se segue:
Projetivismo é a filosofia avaliativa que diz que propriedades avaliativas são projeções de nossos próprios sentimentos (emoções, reações, atitudes, aprovações). O quasi-realismo é o empreendimento de explicar porque o nosso discurso tem a forma que tem, em particular, pelo modo de tratar os predicados avaliativos como os outros predicados, se o projetivismo for verdadeiro. Assim, ele pretende explicar e justificar a natureza do parecer realista das nossas conversas sobre avaliações — o modo como pensamos que podemos estar errados sobre eles [sobre os predicados], que há uma verdade a ser encontrada, e assim por diante (1984:180).
Em outras palavras, o quasi-realismo é o projeto de explicar como podemos legitimamente dizer coisas como “É verdade que matar é errado”, “É falso que quebrar promessas é a coisa certa a fazer”, “Jones acredita que matar é errado”, e assim por diante, inclusive se não começarmos com a suposição de que predicados morais se referem a propriedades, ou de que juízos morais expressam crenças ou de que avaliações morais são aptas à verificação de sua verdade. É o projeto de explicar como podemos legitimamente falar como se tivéssemos o direito de supor que predicados morais expressam propriedades, e assim por diante, inclusive se não o tivermos.
Antes de olhar em detalhes como Blackburn desenvolve seu próprio ramo quasi-realista do projetivismo, passarei através de três argumentos usados por Blackburn para motivar a adoção do projetivismo em primeiro plano.
Simplesmente, este é o argumento familiar (usados também por emotivistas no §3.4) de que o projetivismo é melhor que o cognitivismo na questão da economia metafísica e epistemológica:
A teoria projetivista não pretende perguntar mais do mundo do que o que sabemos que há nele — as características ordinárias das coisas sobre as quais tomamos decisões, delas gostar ou desgostar, temê-las e evitá-las, desejá-las e persegui-las. Ela pede não mais que isto: um mundo natural e os modelos de reação para ele.
Dessa forma, o projetivismo difere do cognitivismo, que tem que postular um reino de distintos fatos morais, tanto quanto um mecanismo que dá conta de nossa consciência desses fatos. O não-cognitivismo consegue se manter com muito menos. Blackburn é um naturalista, no sentido de que ele “tenta ver o homem como uma parte da natureza e tenta explicar a moralidade como advinda da natureza e da situação do homem”. Porém ele tenta fazer isso sem reduzir fatos morais a fatos naturais:
O problema é achar lugar para a ética, ou posicionar a ética na ordem não-ética e desencantada que habitamos e da qual fazemos parte. “Achar lugar” significa entender como pensamos eticamente e porque fazer isso não é ofensivo contra nada no resto de nossa visão de mundo. O que não significa necessariamente “reduzir” a ética a alguma outra coisa.
Blackburn é, portanto, um Humiano ou um naturalista explanatório ou metodológico, porém não é um naturalista substantivo com relação à ética.
No §3.3 introduzi a idéia de que, como assunto de necessidade lógica ou conceitual, as características morais de uma situação são sobrevenientes a suas características naturais: alguém que, em duas situações, diferiu em suas avaliações morais sem pensar que tinha que apontar para alguma diferença natural entre elas, não disporia de competência com relação a conceitos morais. Blackburn utiliza essa idéia para desenvolver um engenhoso argumento a favor do projetivismo.
Antes de introduzir esse argumento, algumas observações sobre a noção de necessidade lógica são requeridas. Um modo de explicar a noção de necessidade lógica é a seguinte: uma declaração P é necessariamente verdadeira, se é verdadeira em todos os mundos possíveis. Da mesma maneira, uma declaração P é contingente, se é verdadeira em alguns mundos possíveis e falsa em outros; necessariamente falsa se não há mundos possíveis nos quais ela é verdadeira. Assim a declaração 2 + 2 = 4 é necessariamente verdadeira porque não há mundos possíveis nos quais ela é falsa (você consegue imaginar um?); a declaração de que há uma caixa de correio vermelha no fim da rua Grosvenor é contingentemente verdadeira, pois embora ela seja verdadeira neste mundo, o mundo atual, há mundos possíveis nos quais ela é falsa (é fácil imaginar um).
Podemos resumir como se segue a reivindicação de que a moral é sobreveniente ao natural como um ponto de necessidade conceitual. Tomemos N como uma descrição completa de todas as propriedades naturais de um ato, evento ou situação. Então, se dois atos, eventos ou situações são N, se ambos têm a mesma descrição naturalista completa, eles devem também receber a mesma avaliação moral.
Agora, contraste essa noção de sobreveniência com uma noção mais forte, a necessidade. Dizer que propriedades naturais necessitam de propriedades morais é dizer que, em qualquer mundo possível, todas as propriedades morais de um ato ou evento são determinados por sua completa descrição naturalista N. Para explicar melhor, necessidade significa que, para uma dada propriedade moral M, é necessariamente o caso que: se um ato, evento ou situação tem N, então tem M.
Pode aparentar à primeira vista que não há diferença entre necessidade e sobreveniência. Mas elas são diferentes. Primeiro, embora tenhamos visto que o status moral de uma situação é, plausivelmente, sobreveniente a sua completa descrição naturalista, é menos plausível que a completa descrição naturalista necessite da avaliação moral. Blackburn coloca este último ponto assim:
Não parece ser um ponto de necessidade lógica ou conceitual que qualquer dado estado totalmente natural de uma coisa lhe confira alguma propriedade moral particular. Dizer qual qualidade moral resulta de um dado estado natural significa usar padrões cuja correção não pode ser mostrada por somente meios conceituais. Isto significa moralizar, e pessoas más moralizam de modo mau, contudo elas não precisam ser confusas. (1984: 184)
Alguém poderia ser bastante competente com todos os conceitos implicados na descrição naturalista N e, ainda assim, mover-se do julgamento de que uma situação é N para a avaliação moral errada dessa situação. Lyndon B. Johnson entendeu os conceitos naturalistas envolvidos na completa descrição naturalista do uso de napalm na guerra do Vietnã, mas ainda assim direcionou-se para chegar ao errôneo julgamento de que seu uso era moralmente permissível. Johnson não estava confuso sobre nenhum dos conceitos naturalistas relevantes: ainda por cima, ele era um indivíduo baseado na moral.
Em segundo lugar, a sobreveniência nos permite alguns tipos de mundos possíveis em que a necessidade pula fora. Por exemplo, considere um mundo que contenha apenas um objeto individual, b:
Mundo W1: b é N e b não é M.
A sobreveniência permite W1: ela apenas diz que se duas coisas são semelhantes no ponto N, elas também devem ser semelhantes no ponto M. Desde que há apenas uma coisa que é N em W1, nomeadamente b, w1 respeita a sobreveniência. O que a sobreveniência afasta é a possibilidade de “mundos misturados”, como:
Mundo W2: a é N e a é M, c é N e c não é M.
A sobreveniência “proíbe” mundos misturados. Agora suponha que você acreditava que propriedades morais são sobrevenientes às propriedades naturais, mas que propriedades naturais não necessitam de propriedades morais. Daí você teria que explicar a proibição dos mundos misturados: dado que Deus poderia ter criado um mundo como W1, no qual b é N e não é M, por que ele não poderia ter escolhido criar um mundo no qual c é N e não é M, inclusive se nesse mundo a é N e também M? Qual a explicação para o fato de não haverem mundos misturados?
Por que isto constitui um argumento a favor do projetivismo? De acordo com Blackburn, a proibição dos mundos misturados parece especialmente difícil de explicar a partir de uma base cognitivista:
Essas questões são especialmente difíceis para um realista. Para ele existe a concepção de um atual estado de coisas moral, que pode ou não se distribuir nos estados naturalistas. A sobreveniência [e a proibição dos mundos misturados] se torna, então, um fato misterioso e do qual ele não terá nenhuma explicação (ou nenhum direito de contar com uma). Seria como se algumas pessoas fossem N e fizessem a coisa certa, e outras fossem N e fizessem a coisa errada, entretanto há uma proibição neles que segue para o mesmo ponto: completamente inexplicável. (1984: 185-6)
Por outro lado, reivindica Blackburn, o projetivista tem uma explicação exata da sobreveniência e da associada proibição dos mundos misturados:
Quando anunciamos nossos comprometimentos morais, estamos projetando, não estamos nem reagindo a uma dada distribuição de propriedades morais, nem especulando sobre uma. Assim, a sobreveniência pode ser explicada em termos de restrições sobre a projeção correta. Nosso propósito ao projetar predicados de valor pode demandar que respeitemos a sobreveniência. Se nos permitimos um sistema (schmoralizar) que seja como a prática avaliativa ordinária, mas não sujeita a tal restrição, isto nos permitiria tratar casos naturalmente idênticos de modos moralmente diferentes… Isso faria com que schmoralizar não fosse um bom guia para a prática de tomar decisões (uma coisa poderia ser corretamente considerada melhor que outra, conquanto compartilhe com esta todas as características relevantes para a escolha ou para a desejabilidade). (1984: 186)
Suponha que você aceite a teoria da motivação Humiana: a visão de que a explicação de uma ação racional sempre requer a citação de crenças e desejos. Como explicamos as ações moralmente motivadas de alguém? Suponha que Jones decida não roubar as respostas do teste que estão na mesa de seu tutor. Numa explicação disso, podemos dizer algo como “Jones está comprometido com ser honesto”. Assim, seu comprometimento com a honestidade expressa uma crença ou algum sentimento não-cognitivo, como um desejo? Se for o primeiro, então a estória que contamos de porque ele não roubou as respostas do teste, de acordo com a teoria da motivação Humiana, requereria suplementação com referência a algum desejo possuído por Jones. Contudo, não parece que tal suplementação é necessária: enquanto Jones for sincero em seus comprometimentos, nenhuma referência a desejos é necessária. Caso seja o último, nós esperaríamos que seu comprometimento precisasse de suplementação pela menção de uma crença. E isto é exatamente o que encontramos: nossas explicações das ações de Jones precisam citar seu comprometimento com a honestidade e sua crença de que não se permitir a oportunidade de roubar as respostas do teste seria a coisa certa a fazer. Dessa forma, a conclusão é que o não-cognitivista se enquadra melhor com o melhor relato sobre motivação moral, a teoria Humiana da motivação.
Quão convincentes são os argumentos de Blackburn a favor do projetivismo? Não tentarei um acesso total aqui, mas oferecerei ao invés disso alguns comentários de passagem. O argumento 2, da sobreveniência e da proibição dos mundos misturados, merece mais discussão do que eu posso dispor aqui, mas o leitor curioso perguntar-se-á por que a explicação da proibição dos mundos misturados, oferecida por Blackburn a favor do projetivista, não pode ser co-optada pelo cognitivista:
A sobreveniência pode ser explicada em termos de restrições sobre a correta formação da crença moral. Nosso propósito ao formar crenças morais pode demandar que respeitemos a sobreveniência. Se nos permitimos um sistema (schmoralizar) que seja como a prática avaliativa ordinária, mas não sujeita a tal restrição, isto nos permitiria tratar casos naturalmente idênticos de modos moralmente diferentes… Isso faria com que schmoralizar não fosse um bom guia para a prática de tomar decisões.
O que está errado com este argumento? Talvez Blackburn replicaria que ele apenas funciona se pudermos ver as crenças morais como essencialmente práticas nos seus resultados, uma suposição de que a teoria Humiana da motivação proibiria. O que é importante para a sobreveniência é que tomamos diferentes instâncias avaliativas somente no caso de situações que diferem com respeito a algo natural: para os Humianos, uma instância avaliativa é sempre o produto de uma crença e de um desejo distinto, então restringir a crença moral a respeitar a sobreveniência não irá por si mesmo assegurar que a sobreveniência seja respeitada. Instâncias avaliativas que diferem apenas com relação aos desejos concomitantes, conquanto as restrições na formação da moral continuem, podem falhar em diferir com respeito a situações naturalisticamente idênticas. Então, a não ser que rejeitemos a teoria Humiana da motivação, a explicação sugerida falha em assegurar que a sobreveniência seja respeitada. Eu não tenho idéia se Blackburn, de fato, proferiria este estilo de resposta para a sugestão: mas se ele o fizer, inclusive se a resposta for sólida, isso dependerá do resultado em favor dos Humianos no campo da psicologia moral. Então, até que discutamos esses assuntos no capítulo 10, o argumento da sobreveniência e da proibição dos mundos misturados pode, no melhor dos casos, ser combinado como tendo credenciais provisórias. A fortiori, o mesmo comentário se aplica ao argumento 3, do juízo e da motivação moral.
O argumento 1, da resolução metafísica e epistemológica, depende do sucesso do aspecto positivo do projeto quasi-realista: estas considerações têm a força intencionada por Blackburn apenas se a reconstrução quasi-realista dos aspectos que “parecem-realistas” [“realistic-seeming”] de nossa prática moral obtiverem sucesso. Então, uma avaliação do argumento 1 deve esperar até que tenhamos o acesso adequado ao projeto reconstrutivista de Blackburn e sua capacidade de remover as objeções que cercam o emotivismo. É para isto que agora me direciono.
Pode o quasi-realista dar uma explicação projetivista da, por exemplo, função semântica de “matar é errado” quando ela aparece num contexto indeterminado como:
(2) Se matar é errado, então levar o irmão menor a matar é errado.
Blackburn escreve:
Pode [o projetivismo] explicar o que temos em mente quando fazemos essas observações? Contextos indeterminados mostram que nós tratamos predicados morais como os outros, e quando pensados em relação ao seu significado, podemos introduzir objetos de dúvida, crença, conhecimento, coisas que podem ser supostas, duvidadas, ponderadas. Pode o projetivista dizer por que fazemos isso? (1984: 191)
E é claro, uma restrição na explicação projetivista de porque nós fazemos isso deve ser que não convence logicamente argumentos do tipo:
(1) Matar é errado.
(2) Se matar é errado, então levar o irmão menor a matar é errado.
Logo: (3) Levar o irmão menor a matar é errado.
de uma falácia da equivocação.
Assim, qual é a explicação projetivista de o que estamos fazendo quando dizemos coisas como (2)? Lembre que uma fonte do problema era que normalmente damos explicações das condições (materiais) assim: uma condicional é falsa se ela tem um antecedente verdadeiro e um conseqüente falso, e verdadeira de qualquer outro modo. Mas como podemos invocar essa explicação em casos como (2), em que, neste estágio da estória, não pode ser suposta pelo projetivista como acessível em termos de verdade ou falsidade? A fim de suplantar esse problema, Blackburn nos pede para considerar um simples conectivo que não o “se… então…”, nomeadamente “e”. A explicação normal da semântica de conjunções é como se segue: uma conjunção é verdadeira quando ambas as conjuntas são verdadeiras, e falsa de qualquer outro modo. Contudo, nós nunca claramente usamos “e” para unir comprometimentos: pense sobre “Matar é errado e as sanções contra o Iraque são moralmente depreciáveis”. O que pode o projetivista dizer sobre esta última conjunção, sendo que ele não quer assumir que nenhuma de suas conjunções seja acessível em termos de verdade ou falsidade? Blackburn responde:
[Nós deveríamos] expandir o modo como pensamos em “e”. Temos que, de qualquer forma, fazer isso, para que possamos ligar asserções, quando elas de certo não expressam crenças que são genuinamente suscetíveis de apreensão de um valor de verdade e.g. ordens: “Vire este barco e carregue este fardo”. Ao invés disso diríamos algo como isto: “e” liga comprometimentos a fim de formar um comprometimento global, que é aceito apenas se cada um dos componentes é aceito. (1984: 191–192)
A explicação projetivista de “Matar é errado e as sanções contra o Iraque são moralmente depreciáveis” é, portanto, como se segue: esta sentença conjuntiva serve para expressar a minha desaprovação com relação a ambos matar e as sanções contra o Iraque.
Pode o projetivista fazer algo similar com as condicionais? Que atitude estou expressando quando digo que, se matar é errado, então levar o irmão mais novo a matar é errado? De acordo com Blackburn, estou expressando uma atitude sobre uma sensibilidade moral. O que é uma sensibilidade moral? David McNaughton explica esta noção como se segue:
Cada um de nós, do lado não-cognitivista, estamos dispostos a responder a várias situações com diferentes atitudes — podemos, por exemplo, ficar ultrajados pela crueldade, nos divertir com o adultério, nos exaltar pela coragem física, e assim por diante. Podemos chamar o quadro completo de tais disposições de sensibilidade moral de uma pessoa. É importante que não é o caso que podemos apenas ter uma atitude com relação às ações das pessoas, mas podemos também ter atitudes com relação às suas sensibilidades morais. Estas podem ser grosseiras ou sensíveis, inflexíveis ou mutáveis, admiráveis ou depreciáveis. (1988: 183)
De acordo com Blackburn, quando dizemos que, se matar é errado, então levar o irmão mais novo a matar é errado, estou expressando minha atitude de aprovação com relação às sensibilidades morais que combinam a desaprovação com relação a matar com a desaprovação de levar o irmão mais novo a matar pessoas. Minha asserção sobre a condicional serve, assim, para expressar uma atitude com relação à própria sensibilidade moral.
A questão agora é se Blackburn pode usar esta estória para dar conta da validade da inferência que parte de (1) e (2) para (3). A fim de ver como Blackburn tenta lidar com essa questão, vamos traçar uma distinção entre a forma superficial de um discurso e a forma profunda de um discurso. A forma superficial do discurso é a maneira que esse discurso inicialmente aparece, em outras palavras, tudo que é sugerido pela sua sintaxe superficial. Assim, a forma superficial do discurso moral é proposicional ou cognitiva. “Matar é errado”, “Eutanásia é permissível”, e assim por diante, são sentenças declarativas; “errado”, “permissível”, e assim por diante, são predicados; e “Jim acredita que matar é errado”, “John acredita que o aborto é permissível”, são sinteticamente bem-formadas. Tudo isso sugere que sentenças morais representam estados de coisas, que predicados morais denotam propriedades e que juízos morais expressam crenças. Porém é claro que o projetivista quer negar que a forma superficial do discurso moral seja um guia acurado para sua forma profunda: embora declarações morais apareçam como proposicionais ou cognitivas em sua superfície, o seu papel fundamental é, na verdade, expressivo. Então, um modo de formular o problema enfrentado pelo projetivismo é o seguinte: como você pode ganhar o direito à superfície proposicional ou cognitiva do discurso moral na base da reivindicação de que sua forma profunda é expressiva? Respondendo esta questão, nós veremos, inter alia, como Blackburn espera resolver o problema de Frege-Geach.
Com o objetivo de focar na questão de como o discurso moral pode ter uma superfície proposicional ou cognitiva, inclusive se sua estrutura ou forma profunda é expressiva, Blackburn nos pede para imaginar uma linguagem Eex, que não é como o inglês e tem a forma superficial explicitamente expressiva:
Ela pode conter um operador “Viva!” e um operador “Abaixo!” (V!, A!), que se ligam às descrições das coisas para resultar em expressões de atitude. V!(a peça de Tottenham Hotspur) expressaria uma atitude perante a peça, e A!(mentir) expressaria a atitude contrária com relação a mentir, e assim por diante. (1984: 193)
Blackburn, então, introduz tais convenções. A fim de falar de uma atitude de aprovação ou desaprovação, colocamos essas expressões entre colchetes, então [V!(a peça de Tottenham Hotspur)] refere-se ao sentimento de aprovação da peça de Tottenham Hotspur. Também com o objetivo de denotar a cópula de duas atitudes, colocaremos um ponto e vírgula entre elas: portanto, [[V!(a peça Glasgow Celtic)];[A!(a peça Glasgow Rangers)]] se refere ao misto da atitude de aprovação com relação à Glasgow Celtic com a atitude de desaprovação com relação à Glasgow Rangers.
Agora, com o quê uma condicional como a (2) do argumento original pareceria em Eex? Lembremos que a interpretação projetivista de (2) era a expressão da aprovação das sensibilidades morais que combinam desaprovação de matar e a desaprovação de levar o irmão mais novo a matar. Assim (2) seria representada em Eex como: V![[A!(matar)]; [A!(levar o irmão mais novo a matar)]]. Portanto, o argumento de (1) e (2) para (3) apareceria como:
(1ex) A!(matar)
(2ex) V![[A!(matar)]; [A!(levar o irmão mais novo a matar)]]
Logo: (3ex) A!(levar o irmão mais novo a matar).
O que poderíamos dizer agora sobre a validade do argumento interpretado dessa forma? Bem, qual seria a posição de alguém que combinasse comprometimento com as premissas e não comprometimento com a conclusão? Ele falharia em ter uma combinação de atitudes que ele mesmo aprove: ele não teria a combinação de desaprovação de matar e a desaprovação de levar o irmão mais novo a matar, enquanto aprovaria essas mesmas combinações. Como Blackburn coloca, uma tal pessoa teria atitudes inconsistentes entre si, e:
Teria uma sensibilidade fraturada que não pode por si mesma ser objeto de uma aprovação. O “não pode” aqui não se segue… porque uma sensibilidade como esta não concorda com os fatos morais que ela está tentando descrever, mas porque uma sensibilidade como esta não pode cumprir os propósitos práticos para os quais nós avaliamos coisas. Eex objetivará sinalizar isto. Ela precisará de um modo de expressar o pensamento de que um erro lógico é cometido se alguém afirma os dois primeiros comprometimentos e não afirma o comprometimento da desaprovação de levar o irmão mais novo [a matar].
Alguém que combine comprometimento para com as premissas, e não para a conclusão, estaria se perdendo numa combinação de atitudes “fraturadas”; e o pensamento de Blackburn é que, numa base expressivista, isso contaria para a validade intuitiva de
(1ex), (2ex); logo, (3ex).
Então, se virmos o inglês ordinário como tendo Eex como forma profunda, poderemos considerar a validade de inferências como essa numa base expressivista. Assim, a validade de
(1), (2); logo, (3).
é computada por causa da validade de
(1ex), (2ex); logo, (3ex).
Por que não usamos Eex em vez do inglês ordinário? Primordialmente porque o inglês é mais fácil e mais elegante. Mas Blackburn pensa que essa é uma questão que de fato não importa:
Eex precisa se tornar um instrumento de uma prática avaliativa séria, reflexiva, apto a expressar a preocupação com o melhoramento, o conflito, as implicações e a coerência de atitudes. Então, uma maneira de fazer isso é tornar-se como o inglês ordinário. O que é, inventar uma resposta predicada para a atitude, e tratar os comprometimentos como se eles fossem juízos, e daí usar todos os artifícios naturais para debater a verdade. Caso isto esteja certo, então nosso uso de contextos indiretos não prova que uma teoria moral expressivista está errada; somente nos prova que adotamos uma forma de expressão adequada às nossas necessidades. Isso é o que significa “projetar” atitudes no mundo. (1984: 195)
Isto mostra como o quasi-realista responde ao problema de Frege-Geach, e, se correto, mostra por meio disso como o quasi-realista pode responder à acusação de que o projetivismo implica alguma teoria-do-erro [error-theory] com relação ao discurso moral. A implicação da teoria-do-erro é bloqueada porque nós podemos mostrar como o direito à superfície proposicional pode ser adquirido em uma base puramente expressivista.
É Blackburn bem-sucedido em mostrar que o argumento:
(1) Matar é errado.
(2) Se matar é errado, então levar o irmão menor a matar é errado.
Logo: (3) Levar o irmão menor a matar é errado.
é válido logicamente? Crispin Wright pensa que não:
Qualquer coisa que valha ser chamada de validade de uma inferência tem que residir na inconsistência em aceitar suas premissas e negar sua conclusão. Blackburn de fato fala de um “conflito de atitudes” envolvido em defender as premissas de seu exemplo de modus ponens, construído como ele o construiu, e não endossar a conclusão. Porém nada que se assemelhe a uma inconsistência parece estar envolvido. Aqueles que fazem isso apenas falham em ter todas as combinações de atitudes que eles mesmos aprovam. Esta é uma falha moral, não uma falha lógica. (1988b: 33; ver também Schueler 1988)
Em defesa do quasi-realista, Hale (1986) sugere um modo de tentar se desviar dessa preocupação. Em vez de tomar
(2) Se matar é errado, então levar o irmão menor a matar é errado.
como expressando a aprovação de sensibilidades que combinam a desaprovação de matar e a desaprovação de levar o irmão mais novo a matar pessoas, poderíamos tomá-la como expressando a desaprovação das sensibilidades que combinam desaprovação de matar e a falta de desaprovação de levar o irmão mais novo a matar pessoas. Assim como podemos nos referir ao sentimento de desaprovação com relação a matar por [A!(matar)], podemos nos referir à falta dessa desaprovação por — [A!(matar)]. O argumento de (1) e (2) para (3) iria aparecer em Eex como:
(1ex) [A!(matar)]
(2ex) A! [[A!(matar)]; -A![(levar o irmão mais novo a matar)]]
Logo: (3ex) A! (levar o irmão mais novo a matar).
Alguém que endosse as premissas e, ainda assim, falhe em endossar a conclusão do argumento, teria uma combinação de atitudes que ele mesmo desaprova. Alguém que combine o comprometimento com as premissas com a falta de comprometimento com a conclusão estaria se perdendo numa combinação de atitudes inconsistentes, e isso contaria, numa base expressivista, para a validade intuitiva do argumento. Como antes, se virmos o inglês ordinário como tendo Eex por forma profunda, poderemos considerar a validade de suas inferências numa base expressivista.
Contudo, como o próprio Hale realiza (1986: 74), essa manobra apenas adia o problema. Inclusive nessa interpretação, alguém que endosse as premissas mas falhe em endossar a conclusão do argumento é culpado de uma falha moral, qual seja, culpado de violar um tal princípio moral como “Não faça o que você Abaixo!” [Don’t do what you Boo!]. O relato, assim, não capta o fato de que alguém que endosse as premissas e ainda se recusa a endossar a conclusão do argumento é irracional, culpado de alguma falha lógica.
Blackburn, em seu 1988 “Attitudes and contents” (reimpresso em seu 1993a) e no capítulo 3 de seu recente (1998) livro Ruling Passions, desenvolveu uma resposta diferente ao problema de Frege-Geach, desenhada especificamente para neutralizar a objeção levantada na seção anterior. A proposta é complexa, mas a simplificarei aqui, objetivando tornar conhecida a idéia geral. Isto é o que nós damos como satisfações de o que estamos fazendo quando usamos declarações éticas em contextos indeterminados, não em termos de expressar atitudes de ordem maior, mas em termos de “ligarmo-nos a árvores” de comprometimentos.
Tome um exemplo banal de um modus ponens não moral, como:
(A) Jones está em Southwark.
(B) Se Jones está em Southwark, então Jones está em Londres.
Logo, (C) Jones está em Londres.
Aqui as sentenças envolvidas podem todas ser assumidas como sendo diretamente factuais ou descritivas, e seus significados são dados em termos de suas condições-de-verdade. Em particular, a condição-de-verdade de (B) pode ser dada em termos das condições-de-verdade de suas constituintes: (B) é verdade se e somente se não há situações nas quais a antecedente obtém sua condição-de-verdade, enquanto a conseqüente falha em obtê-la. Alguém que faz uma declaração assertiva de “Jones está em Southwark”, por meio dela se compromete com a crença de que “Jones está em Southwark” obtém sua condição-de-verdade. E sobre alguém que faz uma declaração assertiva de “Se Jones está em Southwark, então Jones está em Londres”? Blackburn escreve
Admitir qualquer coisa da forma “Se p, então q” é comprometer-se com a combinação “Ou não-p ou q”. (1998a: 72)
Assim, de acordo com Blackburn, alguém que faça uma declaração assertiva de “Se Jones está em Southwark, então Jones está em Londres” compromete-se com ou acreditar que a antecedente não obtém sua condição-de-verdade ou acreditar que a conseqüente obtém sua condição-de-verdade.
Agora, e sobre alguém que endosse as premissas (A) e (B), e ainda, falhe em endossar a conclusão (C)? Podemos escrever esses comprometimentos numa lista:
Essa combinação de comprometimentos é inconsistente (como esperaríamos caso o argumento de (A) e (B) para (C) fosse válido logicamente)? Desde que o “comprometimento condicional” do meio gera um “ramo” (ver o “diagrama árvore” abaixo), a combinação dos comprometimentos será inconsistente somente se cada ramo do comprometimento condicional resultar numa combinação inconsistente de comprometimentos. É fácil ver que isto é o caso:
Comprometimento com ou acreditar que Jones não está em Southwark ou que Jones está em Londres
Ramo 1
Comprometimento em acreditar que Jones não está em Southwark
Comprometimento em acreditar que Jones está em Southwark
Falta de comprometimento em acreditar que Jones está em Londres
X
Ramo 2
Comprometimento em acreditar que Jones está em Southwark
Comprometimento em acreditar que Jones está em Londres
Falta de comprometimento em acreditar que Jones está em Londres
X
Em cada ramo, nós acabamos com uma combinação inconsistente de comprometimentos, assinalado por “X”. No primeiro ramo, estamos comprometidos com ambos acreditar que Jones não está em Southwark e acreditar que Jones está em Southwark, enquanto no segundo ramo estamos comprometidos com acreditar que Jones está em Londres e não comprometidos em acreditar que Jones está em Londres. Isto permite a validade lógica do argumento de (A) e (B) para (C).
Blackburn pretende usar essa estratégia para cobrir também casos onde as sentenças envolvidas não são genuinamente factuais ou descritivas. Há duas partes dessa estratégia. Primeiro, no caso puramente factual, os comprometimentos são comprometimentos em acreditar que sentenças factuais obtêm sua condição-de-verdade. Então, como sentenças avaliativas são assumidas como não tendo condições-de-verdade, precisamos de algo análogo à “crença”. Seguindo a sugestão de Hale (2002: 146), fazemos isso empregando o termo neutro “aceitar”. Assim, considerando que eu possa acreditar na proposição expressa por uma sentença factual, posso analogamente aceitar a (não-cognitiva) atitude expressa por uma sentença avaliativa. Segundo, no caso puramente factual, temos uma noção previamente feita de consistência à mão: duas crenças são inconsistentes se a verdade de uma remove a verdade da outra, ou seja, se não podem ambas ser verdade. Portanto, precisaríamos de uma noção análoga de consistência para aplicar a casos onde os comprometimentos envolvidos são assumidos como não-aptos à verdade. Uma maneira de fazer isso seria modelar a inconsistência de uma combinação de atitudes não-cognitivas numa inconsistência de uma combinação de desejos: dois desejos são inconsistentes se a satisfação ou realização de um deles obstrui a satisfação ou realização do outro, ou seja, se eles não podem ser simultaneamente satisfeitos ou realizados. Suponha que ambas as partes dessa estratégia possam ser levadas a cabo. Então, poderíamos aplicá-la para considerarmos a validade lógica de:
(D) Matar é errado.
(E) Se matar é errado, então levar o irmão mais novo a matar é errado.
Logo: (F) Levar o irmão mais novo a matar é errado.
Alguém que endosse as premissas mas falhe em endossar a conclusão teria os seguintes comprometimentos:
Novamente, a estrutura-árvore relevante mostra que essa combinação é inconsistente.
Ramo 1a
Comprometimento em aceitar a atitude expressa por “Matar é errado”
Comprometimento em rejeitar a atitude expressa por “Matar é errado”
Falta de comprometimento em aceitar a atitude expressa por “Levar o irmão mais novo a matar pessoas é errado”
X
Ramo 2a
comprometimento em aceitar a atitude expressa por “Matar é errado”
comprometimento em aceitar a atitude expressa por “Levar o irmão mais novo a matar pessoas é errado”
falta de comprometimento em aceitar a atitude expressa por “Levar o irmão mais novo a matar é errado”
X
Assim como no caso puramente factual, alguém que endosse as premissas (D) e (E), enquanto se recusa a endossar a conclusão (F) abraça uma combinação inconsistente de comprometimentos. Assim como antes, a validade lógica do argumento é considerada. Blackburn escreve:
Tem havido algum ceticismo sobre se essa abordagem pode dar conta dos poderosos “deveres” da lógica. Mas agora vemos que ela o pode perfeitamente bem. Considere o exemplo, feito famoso por Geach, da inferência de acordo com o modelo do modus ponens. Alguém que diga “p” e “se p, então q” tem as premissas de um modus ponens cuja conclusão é “q”. Ele está logicamente comprometido com q, se estiver comprometido com as premissas. Para dizer de outro modo, se alguém se representa como defendendo a combinação de “p” e “Se p, então q” e “não-q”, não saberíamos o que fazer com elas. Um colapso lógico significa falha de entendimento. Este resultado está assegurado, na minha abordagem, por uma antecedente avaliativa, p? Sim, porque a pessoa representa a si mesma como amarrada a uma árvore de possíveis combinações de crenças e atitudes, mas ao mesmo tempo representa-se como defendendo a combinação que a árvore exclui. Assim, o que é dado em um momento é retirado no seguinte e, portanto, não podemos fazer nenhuma interpretação inteligível deles. (1998a: 72)
Portanto, essa abordagem evita a objeção central contra a proposta de Blackburn de 1984. Quanto sucesso obtém Blackburn na sua tentativa de usar a semântica dos comprometimentos-teóricos para submeter os poderosos “deveres” da lógica? Bob Hale assegurou que, inclusive se o quasi-realista pudesse com sucesso executar as partes da estratégia lidando com a noção de aceitação e inconsistência de atitudes, a abordagem do comprometimento-teórico ainda seria problemática. Relembremo-nos novamente, por Blackburn,
Aprovar algo da forma “Se p, então q” é comprometer-se com a combinação “Ou não-p ou q”. (1998a: 72)
Hale nos mostra que isso significa que a abordagem de Blackburn causa problemas para a idéia incontroversa de que devemos aceitar todas as instâncias da lei da identidade Se p, então p. Na abordagem de Blackburn, comprometimento a isto equivale a ter o comprometimento, qualquer que seja a escolha de p, ou aceitar não-p ou aceitar p. Mas, como Hale nos mostra que “nos estados de informação neutra com relação à dada proposição p, não devemos aceitar não-p nem aceitar p” (2002: 148). Assim, a menos que determinemos, implausivelmente, que é impossível estar num estado de informação que não declare nem não-p nem p, seremos inaptos, na abordagem de Blackburn, para considerar o status de Se p, então q como um teorema da lógica. Dado que a abordagem não pode assegurar isso, inclusive quando os componentes são assumidos como sendo diretamente factuais, é estranho que a abordagem seja apta a assegurar a validade de combinações de argumentos intuitivamente válidos que envolvem constituintes avaliativos.
É hora de abandonar a abordagem do comprometimento-teórico ao problema de Frege-Geach. Na próxima seção, eu retornarei a tentativa de Blackburn de 1984 de resolver o problema.
Considere novamente o argumento “modus ponens moral”
(1) Matar é errado.
(2) Se matar é errado, então levar o irmão menor a matar é errado.
Logo: (3) Levar o irmão menor a matar é errado.
A objeção de Wright à tese de Blackburn da validade deste argumento está na reivindicação de que, na abordagem de Blackburn, alguém que endosse suas premissas e falhe em endossar sua conclusão é culpado de no máximo uma falha moral, considerando que o que queremos que a abordagem diga é se essa pessoa é irracional ou vítima de algum erro lógico.
De que sorte de erro é culpado alguém que endosse as premissas do modus ponens moral e falha em endossar sua conclusão? Esta é uma questão sobre o quão melhor podemos interpretar uma ação de um agente; e isto, como qualquer questão desse tipo, é simplesmente indeterminado na ausência de muitas informações dos estados mentais e ações do agente. Se alguém me diz que Jones endossa as premissas (1) e (2) e ainda se recusa a endossar a conclusão (3), e daí pede-me para especificar o tipo de falha da qual Jones é vítima, a única coisa razoável para eu dizer é: “Eu preciso saber mais informações de fundo sobre Jones antes que eu possa de fato responder esta questão”. Então, o que acontece quando conseguimos a informação de fundo? Jones, supomos, endossa as premissas do argumento modus ponens moral e recusa-se a endossar a conclusão. Jones está falhando moralmente ou logicamente? Bem, contraste as seguintes situações (enquanto supõe que o padrão para a abordagem da validade de modus ponens não-morais é mantido: os argumentos são válidos porque a verdade de suas premissas impede a falsidade de suas conclusões).
Jones, quando frente a um grande número de argumentos modus ponens não-morais, invariavelmente endossou ambas as premissas do argumento e suas conclusões. No entanto,quando frente ao argumento “moral modus ponens” acima, Jones endossa as premissas mas se recusa a endossar a conclusão. Suponha que Jones saiba todos os conceitos implicados pelos componentes dos argumentos. Na tentativa de compreender Jones, que tipo de falha devemos lhe atribuir? Penso que, neste tipo de caso, é plausível que atribuamos a Jones um erro moral, como oposto a um erro lógico. Qual é a melhor explicação para o fato de que em casos não-morais ele faz a inferência e em casos não-morais ele falha em fazê-lo? Sugiro que a melhor explicação é que ele é culpado de inconsistência moral (desaprovando uma combinação de atitudes que ele mesmo possui). Por qual outro motivo ele faria as inferências relevantes em todos os casos não-morais e falharia em fazê-lo apenas nos casos em que alguma premissa contivesse um componente avaliativo? Então, neste tipo de caso, a abordagem de Blackburn, a qual atribuiria a Jones uma falha moral, parece acertar o alvo: este é o tipo de falha em que uma tentativa plausível de interpretar Jones atribuiria a ele. Na verdade, atribuir a Jones um erro lógico não parece ser uma opção: se Jones era culpado de um erro lógico, como poderíamos compreender que ele faça as inferências nos casos não-morais?
Jones, quando frente a um grande número de argumentos modus ponens não-morais, invariavelmente endossa as premissas do argumento e se recusa a endossar suas conclusões. Além disso, quando frente ao argumento “modus ponens moral”, Jones de maneira semelhante endossa as premissas e se recusa a endossar a conclusão. Novamente, suponha que Jones saiba todos os conceitos implicados pelos componentes dos argumentos. Na tentativa de entender Jones, que tipo de falha devemos lhe atribuir com relação a sua falha em endossar a conclusão do argumento modus ponens moral? Ele é culpado de uma falha lógica ou de um erro moral? Penso que o único caminho de responder essa questão é considerar o quê teria acontecido em situação contrafactuais, nas quais ele endosse a conclusão em todos os casos não-morais. Existem dois casos a considerar:
2(i) Se Jones fez a inferência nos casos não-morais, ele ainda teria falhado em inferir a conclusão em exemplos morais.
Caso isto fosse verdade, a interpretação mais plausível de Jones colocaria sua falha em fazer a inferência nos exemplos morais, como um erro moral: aquele de “fazer o que você Abaixo!”.
2(ii) Se Jones Fez a inferência em casos não-morais, ele deveria também ter feito a inferência em casos morais.
Caso isto fosse verdade, a interpretação mais plausível da falha de Jones em endossar a conclusão do argumento modus ponens moral seria, eu penso, atribuir-lhe uma falha lógica: falta de compreensão do modus ponens. Em outras palavras, atribuir-lhe uma tendência sistemática a endossar as premissas dos argumentos com a forma lógica de um modus ponens, enquanto falha em endossar suas conclusões. Porém, neste caso o quasi-realista também pode ver esta falha como operativa na falha de Jones em endossar a conclusão do modus ponens moral: nós já pensamos que ele não compreende a regra do modus ponens, o “modus ponens moral” tem a mesma forma sintática que os casos não-morais, por isso não é compreensível que Jones falhe em fazer a inferência no caso moral. Portanto, neste caso, Jones é culpado de uma falha lógica: mas o quasi-realista tem a mão uma óbvia explicação de porque isto é assim.
Suponha que as situações 1 e 2 exaurem todos os casos possíveis. Então, os pontos seriam tratados como se segue. Nos casos onde nossa melhor interpretação de Jones é aquela em que ele, ao recusar-se a endossar (3) enquanto endossa (1) e (2), é culpado de um erro moral, a abordagem quasi-realista pode acomodar esse fato; e nos casos onde nossa melhor interpretação de Jones é aquela em que ele, ao recusar-se a endossar (3) enquanto endossa (1) e (2), é culpado de um erro lógico, a abordagem quasi-realista pode acomodar isso também. Assim, a ojeção de Wright se mostraria insuficiente.
Mas é claro que as situações 1 e 2 não exaurem todos os casos possíveis. Há dois mais para considerarmos.
Jones se recusa a endossar a conclusão dos modus ponens não-morais, enquanto nunca se recusa a endossar a conclusão de “modus ponens morais”. É difícil ver que sentido poderia haver num agente que possua esta sorte de combinação: como você poderia responder a um aluno, numa aula de lógica elementar, que exemplifique este caso? Mas na medida em que podemos encontrar algum sentido com relação ao que se passa aqui, penso que é o quasi-realista que está em melhor posição. Nós atribuímos ao agente uma falha ao entender o modus ponens, por causa da força da sua recusa em endossar a conclusão dos casos não-morais. Mas o que podemos dizer sobre o quê mantém o agente “na linha” nos casos dos “modus ponens morais”? O quasi-realista pode citar sua abordagem da validade desses tipos de casos e afirmar que o agente está direcionado pela consistência moral: o agente não tem combinações de atitudes que ele mesmo desaprova. Isso é porque ele “entende certo” nos casos morais, ainda que entenda errado nos casos não-morais.
Jones realiza as inferências relevantes, sejam ou não sejam morais. Neste tipo de caso, iremos preferivelmente atribuir a Jones a compreensão da regra do modus ponens e a virtude da consistência ética. Qual desses — perspicácia lógica ou consistência moral — é o fator dominante na explicação de porque Jones faz as inferências relevantes nos casos morais? Apenas podemos responder isso se observarmos os cenários contrafactuais nos quais Jones falha em realizar a inferência do “modus ponens moral”. Se a seguinte contrafactual afirma:
4(i) Se Jones tivesse falhado em realizar as inferências nos casos morais, então ele também teria falhado em realizar as inferências em casos não-morais
então plausivelmente a perspicácia lógica é o fator dominante. Se, por outro lado, a contrafactual afirmar
4(ii) Se Jones tivesse falhado em realizar as inferências nos casos morais, então ele não teria falhado em realizar as inferências em casos não-morais
então a consistência moral é mais importante. Como acima, em nenhum dos casos nos encontraremos dizendo algo que a abordagem quasi-realista dos contextos indiretos não possa acomodar: e de fato, no caso 4(ii), o quasi-realista parece em melhor posição para captar o sentido, caso haja algum, em que o comportamento de Jones é inteligível.
Concluindo, em todos os casos onde a melhor interpretação atribui a Jones, ao endossar (1) e (2) enquanto se recusa a endossar (3), um erro lógico, o quasi-realista também pode atribuí-lo um erro lógico; e em todos os casos onde a melhor interpretação atribui a Jones, ao endossar (1) e (2) enquanto se recusa a endossar (3), uma falha moral, o quasi-realista também pode lhe atribuir uma falha moral. Desde que nos casos restantes o quasi-realista pode misturar sua abordagem do “modus ponens moral” com as variadas interpretações, a objeção de Wright falha.
Vale a pena pararmos parar para tomarmos uma posição. Em resposta à crítica central da solução de 1984 do problema de Frege-Geach, Blackburn (em seu 1988 [1993a, capítulo 10]) tenta de fato alargar a noção de erro lógico ampliando a noção de inconsistência, de modo que, por exemplo, uma combinação de desejos pode ser dito como inconsistente, se não há mundos possíveis nos quais todos os seus membros podem ser realizados. Assim, ele tenta construir uma lógica que siga junto com essa ampla noção de inconsistência, e, utilizando uma semântica do comprometimento-teórico, preservar a idéia de que alguém que afirma as premissas mas não a conclusão de um argumento “modus ponens moral” é culpado de falha lógica. Como vimos nas seções anteriores, esta abordagem tem seus próprios problemas. De fato, o que estou propondo aqui envolve deixar a noção de inconsistência como ela é: apenas combinações de estados possíveis de verificação de verdade, tais como crenças, podem ser inconsistentes, quando não há mundo possível no qual todos os seus membros possam ser verdadeiros. Ao invés, alargamos a noção de erro lógico de uma outra maneira: um erro é agora um erro lógico se ele ou (a) consiste em manter uma combinação de crenças inconsistentes, ou (b) é melhor explicado pela atribuição de uma disposição para manter crenças logicamente inconsistentes. Com (b), pode agora o quasi-realista, como sugeri anteriormente, atribuir ao agente um erro lógico nos casos apropriados onde são endossadas as premissas mas não a conclusão de argumentos como o “modus ponens moral”.
Pode o projetivista evitar fazer a moral ser insatisfatoriamente dependente da mente? Uma parte essencial do quasi-realismo de Blackburn é sua resposta para este problema. O quasi-realista tem que proteger nosso comprometimento ordinário com o pensamento de que valores são independentes da mente. Mas o que isto significa? Bem, alguém que pense que os valores são dependentes da mente faria asserções como as que se seguem:
(4) Se pensamos que chutar cachorros é certo, então chutar cachorros é certo.
(5) Se matar é certo, então pensamos que matar é certo.
(6) Se pensamos que matar é errado, então matar é errado.
(7) Se roubar é errado, então pensamos que roubar é errado.
Intuitivamente queremos negar condicionais como essas: a conexão que elas expressam entre nossas atitudes e o certo e o errado é muito mais próxima do que qualquer coisa que nos sintamos confortáveis. Note que o problema com (4) e (5) não é que os juízos morais envolvidos nas suas respectivas consequentes e antecedentes são juízos dos quais dissentiríamos: gostaríamos de rejeitar (6) e (7) tanto quanto se os juízos que figuram nas consequentes e antecedentes fossem juízos dos quais estivéssemos bem felizes em aceitar. O problema é que, inclusive se matar é errado, não é meramente o nosso pensamento de que é assim que o torna assim; e inclusive se roubar é errado não há garantias de que pensemos assim. Portanto, com o objetivo de preservar nosso direito ao pensamento de que valores são independentes da mente, Blackburn tem que preservar nosso direito ao que se segue:
(8) Não é o caso que se pensamos que chutar cachorros é certo, então chutar cachorros é certo.
(9) Não é o caso que se matar é certo, então pensamos que matar é certo.
(10) Não é o caso que se pensamos que matar é errado, então matar é errado.
(11) Não é o caso que se roubar é errado, então pensamos que roubar é errado.
Então como pode o quasi-realista justificar nosso direito de (8) — (11), e nosso direito de rejeitar de (4) — (7)? A jogada de Blackburn aqui é muito similar ao movimento que o vimos fazendo no §4.3 em resposta ao problema de Frege-Geach. Objetivando responder a esse problema ele teve de realizar uma abordagem atitudinal de nossos comprometimentos comprometimentos, e o modo como ele fez isso foi vendo as condicionais (i.e. “Se mentir é errado, então levar o irmão mais novo a mentir é errado”) como expressões de atitudes às próprias sensibilidades morais. Agora Blackburn tenta desqualificar de (4) — (7) porque (a) eles são componentes de uma sensibilidade moral repugnante, e (b) podemos expressar nossa repugnância a essas sensibilidades através da estrutura projetivista. Assim como eu posso expressar uma atitude moral de ordem-superior (uma atitude de aprovação ou de desaprovação com a relação à própria sensibilidade moral) no caso de “Se mentir é errado, então levar o irmão mais novo a mentir é errado”, posso também expressar uma atitude de ordem-superior com relação a “Não é o caso que se pensamos que chutar cachorros é certo, então chutar cachorros é certo”. De acordo com Blackburn, a atitude de ordem-superior expressa por “Não é o caso que se pensamos que chutar cachorros é certo, então chutar cachorros é certo” é uma atitude de aprovação às sensibilidades que, quando dada como entrada [input] a crença de que chutar cachorros causa-lhes dor, isso rende como saída [output] a desaprovação por chutá-los; ou desaprovação às sensibilidades que precisam de crenças sobre nossas atitudes tanto quanto da crença de que chutar cachorros causa-lhes dor para que possamos desaprovar chutar cachorros como saída [output].
Assim, embora os valores morais, e nossa prática de teorização moral, estão para ser explicados através de uma base atitudinal, a explicação não implica que tenhamos que nos comprometer com condicionais como as de (4) — (7):
Os valores são as crianças de nossos sentimentos no sentido de que a explicação total de o quê fazemos quando moralizamos cita apenas as propriedades naturais das coisas e as reações naturais a elas. Mas não são as crianças de nossos sentimentos no sentido de que nossos sentimentos teriam desaparecido, as verdades morais também se alterariam. O modo como sombreamos ou pintamos o mundo com as cores borradas dos nossos sentimentos internos dá vida própria às nossas criações, e sua própria dependência com relação aos fatos. Então nós não devemos falar ou pensar que nossos sentimentos se alterarão ou desaparecerão, fatos morais também o fariam. (1984: 219, n. 21)
Quão plausível é a abordagem de Blackburn de como o quasi-realista pode ganhar o direito à idéia de que a moral é independente da mente? Agora eu devo considerar uma objeção a essa abordagem.
Nick Zangwill (em seu artigo de 1994) fez objeções à abordagem de Blackburn da independência da mente do modo como se segue. Intuitivamente há um tipo de diferença de status entre, por exemplo, (8) não expressa apenas um comprometimento moral. Zangwill sugere:
Que (8), ou pelo menos a versão generalizada de (8), expressa uma verdade conceitual.
Que este é o único caminho plausível no qual a diferença de status entre (8) e comprometimentos morais ordinários pode ser contabilizada.
O quasi-realista não pode plausivelmente requerer que a generalização de (8) é uma verdade conceitual.
Zangwill admite que, se (i) e (iii) forem rejeitados, (ii) colapsa com eles: o quasi-realista, na ausência de (i) e (iii), pode contabilizar a diferença de status entre comprometimentos morais ordinários e a versão generalizada de (8) em termos de “generatividade” deste último, sua capacidade de gerar a multiplicidade de um juízo moral particular (Zangwill 1994: 210 — 11). E sobre (i) e (iii)? Agora mostrarei que os argumentos de Zangwill por (i) é no máximo inconclusivo, e que seu argumento por (iii) é veementemente não convincente.
O argumento de Zangwill a favor de (i) é como se segue:
É o caso que alguém faz um juízo moral e daí acredita ou assume que não é o caso que ele é verdade somente porque ele pensa que é? A resposta para isto… é “sim” pela seguinte razão. É parte de fazer um juízo moral uma asserção por correção [correctness] construída nele. Chame isso de normatividade dos juízos morais. É por causa da aspiração por correção nos juízos que pessoas às vezes discordam com relação aos juízos das outras e que às vezes expressam dissidência sobre si próprio. Desacordo e dissidência não fazem sentido sem a normatividade. Mas então, dada a normatividade dos juízos morais, segue-se que é uma parte de fazer um juízo moral que se saiba que há uma diferença entre fazer um juízo moral e fazer o juízo moral correto. Se é assim, não poderíamos fazer um juízo moral sem saber que pensar que algo é de uma forma não o torna dessa forma. Porque se eu sei que o meu juízo pode estar incorreto, então eu sei que não é o caso que se eu faço um juízo, então ele está correto. (1994: 214)
Este argumento — da normatividade até a independência da mente — não é convincente. Para verificarmos isto, note que temos a dependência mental da bondade moral se tivermos o seguinte:
É uma verdade empírica que se julgamos que X é bom, então X é bom.
Mas isto é consistente com a retenção da normatividade dos juízos morais: tudo que é requerido para a normatividade dos juízos morais é que seja conceitualmente possível para um juízo moral ser incorreto. Se Zangwill requer, para a normatividade de algumas espécies de juízos, uma asserção mais forte de que é empiricamente possível para juízos dessa espécie que sejam incorretos, donde se seguiria que nunca poderíamos fazer juízos com relação às áreas em que somos, de fato, infalíveis. Portanto, poder-se-ia respeitar a normatividade dos juízos morais enquanto é mantido que os fatos sobre a bondade moral são empiricamente dependentes dos nossos juízos morais. A normatividade do juízo moral, dessa forma, não implica por si mesma na independência mental dos fatos morais. Então a asserção de que a independência mental tem algum status conceitual se mostra ainda sem suporte. É claro, se for assumido que (8) e semelhantes têm status conceitual, poder-se-ia derivá-los da normatividade dos juízos morais: mas se eles são verdades conceituais é de tal forma o ponto em questão, que esse tipo de asserção simplesmente falharia em formular a questão [beg the question] contra o quasi-realista.
Portanto, Zangwill não tem argumento para o ponto de que a independência mental é uma verdade conceitual. Suponha, entretanto, que ele tenha obtido sucesso em estabelecer o status conceitual das asserções independentes da mente. Por que não poderia o quasi-realista acomodar isso? O argumento de Zangwill de que o quasi-realista não pode ver a generalização de (8) como uma verdade conceitual segue desta maneira:
[Blackburn] diz que uma pessoa que assere que a independência mental expressa uma atitude moral (de segunda-ordem) e, assim, a independência mental nega aos estados condicionais [(8) — (11)] uma verdade moral substantiva. O argumento contra isto é este: se a independência mental é uma verdade substantiva, então ela não pode ser uma verdade conceitual. Porque verdades morais substantivas são eminentemente controversas, e se é assim, elas não são boas candidatas a verdades conceituais. (1994: 213)
Mas isto é apenas uma aplicação não discutida do COQA de Moore na sua forma mais crua! Como tal, depende da pressuposição manifestadamente implausível de que não pode haver tal coisa como uma análise conceitual substantiva (i.e. informativa e potencialmente controversa) (ver §2.3(b)). Dado que isso depende desta pressuposição implausível, o argumento de Zangwill por (iii) não é convincente. Assim, a objeção de Zangwill à abordagem de Blackburn de como o quasi-realista pode assegurar a independência mental dos fatos morais é um fracasso.
Paremos um pouco para avaliarmos. Os quatro primeiros problemas que levantei para o emotivismo no capítulo anterior eram: o problema do erro implicado, o problema de Frege-Geach, o problema da “atitude esquizóide” e o problema da independência da mente. Nós acabamos de ver como Blackburn tenta lidar com o problema da independência mental, e nas seções anteriores à essa vimos como a resposta de Blackburn ao problema de Frege-Geach ajudou a resolver o problema do erro implicado. Mas e quanto ao problema da atitude schizoid? Como podemos tomar nossos comprometimentos morais seriamente, se percebemos, nos nossos momentos de lucidez filosófica, que não há um reino de distintos fatos morais para justificá-los? Blackburn pensa que o quasi-realismo pode atenuar essa preocupação mostrando como podemos “ganhar o direito de falar de verdade moral, enquanto reconhecemos a fonte totalmente subjetiva de nossos juízos a partir de nossas atitudes, necessidades, desejos, e naturezas” (1984: 197).
Neste ponto é importante que esteja claro qual é precisamente o escopo do projeto quasi-realista. O projeto de Blackburn poderia ser tomado como mostrando como podemos ganhar o direito de falar como se comprometimentos morais fossem capazes de verdade ou falsidade. Este projeto poderia ser descrito como um projeto de um modesto quasi-realismo, e se enquadra facilmente com o âmago projetivista do empreendimento quasi-realista: o projetivismo nos diz que comprometimentos morais não são de fato aptos à verificação de verdade, que juízos morais não expressam crenças, que não tal coisa como um fato moral, enquanto o quasi-realismo dá-nos o direito de falar como se comprometimentos morais fossem aptos à verificação de sua verdade, como se juízos morais expressassem crenças, como se houvesse tal coisa como fatos morais.
Blackburn agora prossegue, ao responder o problema da atitude schizoid, para perseguir um projeto mais ambicioso: o de ganhar o direito às noções de verdade e falsidade que são genuinamente aplicáveis ao discurso moral:
Por que não nos percebermos como tendo construído uma noção de verdade moral? Se tivermos feito isso, podemos sorridentemente dizer que juízos morais são verdadeiros ou falsos, não pensando que passamos para o realismo ao fazer isso. (1984: 196)
Chame isto de projeto do quasi-realismo ambicioso. Que Blackburn está comprometido com o projeto ambicioso é ainda mais claro a partir de seus escritos recentes. Por exemplo, numa seção de pergunta-e-resposta, reproduzida como um apêndice em Blackburn (1998a), temos:
Q: Você não está tentando defender nosso direito de falar “como se” houvesse verdades morais, embora em sua visão não haja nenhuma realmente?
A: Não, não, não. Eu não disse que podemos falar como se chutar cachorros fosse errado, quando “realmente” não é errado. Eu disse que é errado (então é verdade que isto é errado, então é realmente verdade que isto é errado, então este é um exemplo de verdade moral, então há verdades morais). (1998a: 319)
E é para este quasi-realismo ambicioso — o projeto de ganhar o direito de usar noções de verdade e falsidade na aplicação dos comprometimentos morais, como oposto a meramente ganhar o direito de pensá-los como se fosse verdadeiros ou falsos — que viramos nossa atenção nas seções que se seguem.
O quasi-realismo modesto concede que não haja tal coisa como verdade em questões morais, ou crença moral, ou condições de verdade das sentenças morais, mas tenta ganhar, sobre uma base puramente projetivista, nosso direito de falar e pensar como se houvesse verdade em questões morais, condições de verdade morais e assim por diante. De acordo com o quasi-realismo ambicioso há tal coisa como verdade moral, mas é explicada sobre uma base puramente projetivista: de acordo com o quasi-realismo ambicioso podemos construir uma noção de verdade moral usando puramente materiais projetivistas. Blackburn pensa que este projeto de construir a verdade moral, se for bem-sucedido, nos ajudará a dissipar o medo da “atitude esquizóide”:
Mostrar que esses medos não têm justificação intelectual significa desenvolver um conceito de verdade moral com os materiais à mão: vendo como, dado as atitudes, dado as restrições sobre elas, dado a noção de melhoramento e de possibilidade de erro em qualquer sensibilidade incluindo a nossa própria, podemos construir uma noção de verdade moral. (1994: 198)
O problema da atitude schizoid era o seguinte: como podemos tomar seriamente nossos comprometimentos morais se eles são apenas expressões de atitude, com nenhum reino de distintos fatos morais em sua base ou justificando-os? O pensamento de Blackburn é que a justificação pode ser alcançada de maneiras que não envolvem a pressuposição de que há tal reino de fatos morais. Especificamente, ele pensa que podemos prover uma justificação para as nossas atitudes considerando as restrições que nossas próprias naturezas e desejos colocam na formação das atitudes:
Assim como os sentidos restringem o que podemos acreditar sobre o mundo empírico, os nossos desejos, necessidades e prazeres, restringem o que podemos admirar e elogiar, tolerar e trabalhar por. Não há tantos sistemas de atitudes possíveis de serem vividos, não- fragmentados, desenvolvidos, consistentes e coerentes. (1984: 197)
Podemos usar nossas restrições de nossas naturezas e desejos com relação às nossas atitudes para construir uma noção de verdade moral, e ao construí-la viremos a apreciar que nós temos toda a justificação para os nossos comprometimentos morais que poderíamos desejar — e toda a justificação que requeremos para ver que a atitude schizoid nas nossas próprias atitudes não é forçada sobre nós pelo projetivismo.
Como o quasi-realismo ambicioso segue na construção de uma verdade moral? A primeira coisa que devemos notar é que a solução de Blackburn para o problema de Frege-Geach e para o problema da independência mental nos provê as seguintes idéias: (a) as noções de coerência e consistência aplicadas às nossas sensibilidades morais, e (b) as noções de melhoramento e deterioração aplicadas às nossas sensibilidades morais (no mínimo, sensibilidades podem melhorar se ficarem mais consistentes ou coerentes, e deteriorar caso se direcionem para a inconsistência e incoerência).
O pensamento de Blackburn é que o quasi-realista pode usar a noção de melhoramento [improvement] para construir a noção de verdade moral. Primeiramente definimos a noção de melhor combinação de atitudes. Esta é a combinação de atitudes “que resultaria de tomarmos todas as possíveis oportunidades para o melhoramento de atitude” (1984: 198), usando a noção de melhoramento mencionada anteriormente. Assim, tome sua corrente combinação de atitudes e a imagine melhorada a um tal ponto que nenhum outro melhoramento seja possível. Então chame a combinação resultante de M*. A sugestão de Blackburn é a de que definimos a verdade para um comprometimento moral do seguinte modo:
Verdade Atitudinal: um dado comprometimento ou atitude m é verdade se e apenas se m é um membro de M*.
Os comprometimento morais verdadeiros são aqueles que expressam atitudes que são membras da melhor combinação possível de atitudes.
Tendo definido verdade desse modo, Blackburn imediatamente considerou uma linha de objeção óbvia à sua definição. O conceito de verdade tem certas características, e não é óbvio que a noção entregue pela definição de Blackburn pode compartilhar delas. Por exemplo, uma dessas características é que a verdade é singular: se P é verdade, então não-P não pode ser verdade também. Mas suponha que haja mais do que apenas uma melhor combinação de atitudes possível, que haja mais de um modo em que nossas sensibilidades podem melhorar:
Certamente há melhoramento e deterioração. Mas por que não deveria o melhorar de sensibilidades divergir de várias maneiras? Uma sensibilidade imperfeita pode tomar qualquer uma de diferentes trajetórias enquanto se desenvolve em algo melhor. Podemos imaginar uma árvore. Aqui em cada nó (ponto no qual há ramificação) marca o lugar onde opiniões igualmente admiráveis mas divergentes são possíveis. E então não há um M* único no qual o progresso da opinião é visto. (1984: 198 — 9)
Pode então ser o caso que um comprometimento seja um membro de um dessas melhores combinações possíveis enquanto um comprometimento contrário é um membro de outro dessas combinações. A definição de Blackburn nos levaria à conclusão de que cada um desses comprometimentos é verdade. Mas, continua a objeção, nenhuma definição de verdade pode permitir tal possibilidade: “então não há verdade, é o que decorre da definição” (1984: 199). Assim a definição de Blackburn não pode formar a base de uma definição adequada de verdade.
A resposta de Blackburn a isto é discutir contra a idéia de que possa haver duas sensibilidades ou combinações de atitudes igualmente admiráveis, as quais não obstante contêm comprometimentos em conflito com eles próprios. Sua estratégia (inspirada em Hume 1742) é sugerir que sempre que tivermos a aparência de uma tal situação, uma inspeção mais aguçada revelará que aquela aparência pode ser justificada. Pense num caso aparente onde temos admirado igualmente sensibilidades, nenhuma das quais pode ser melhorada, mas que contêm comprometimentos divergentes: Jean é um grande fã da música do século dezoito, e ela pensa que O Casamento de Fígaro de Mozart é a melhor ópera já escrita, enquanto Lesley prefere a música do século dezenove, e pensa que Tristão e Isolda de Wagner é a melhor ópera já escrita. Jean e Lesley pensam bastante um no outro: Jean pensa que Lesley tem um ouvido musical tão sensitivo quanto o seu próprio, e vice-versa. Também todos os seus amigos — alguns deles bem dotados musicalmente — concordam com Jean e Lesley estão em pé de igualdade em termos de sensibilidade estética. Em adição, suponha que não pudemos encontrar ninguém com sensibilidade estética mais refinada que Jean e Lesley a fim de julgar sua disputa aparente. Então, aparentamos ter a seguinte situação (façamos J representar a sensibilidade de Jean e L representar a sensibilidade de Lesley):
(12) J contém a atitude expressa pelo comprometimento “O Casamento de Fígaro de Mozart é a melhor ópera já escrita”.
(13) L contém a atitude expressa pelo comprometimento “Tristão e Isolda de Wagner é a melhor obra já escrita”.
(14) Não há melhoramento possível em ou J ou L.
Este é exatamente o tipo de situação que põe a ameaça à definição de verdade de Blackburn. Então o que Blackburn tem a dizer sobre isso? Blackburn sugere que (14) é falso: há um modo de melhorar ambos J e L. Imagine que você é Jean. Você sustenta que o Fígaro de Mozart é a melhor ópera já escrita. Mas você também conhece e respeita Lesley, e o toma como igual tão longe quanto vai a apreciação, e você sabe que ele sustenta que Tristão e Isolda de Wagner é a melhor ópera já escrita. Não é a correta conclusão para você chegar que a sua sensibilidade e a sensibilidade de Lesley podem ambas serem melhoradas se explicitamente tomarmos em conta o fato de que cada um de vocês tem essas opiniões sobre Fígaro e Tristão? A sensibilidade melhorada será tal que conterá, não uma simples asserção como “Fígaro é melhor que Tristão” ou “Tristão é melhor que Fígaro”, mas um juízo mais refinado como “Fígaro e Tristão são óperas de igual mérito, embora exemplifiquem os aspectos paradigmáticos de diferentes tipos de óperas em distintos períodos da história da música”. Não é uma sensibilidade, que contém a atitude expressa por esse comprometimento, um melhoramento de ambos J e L? Blackburn afirma que é, tanto que nós temos que nos desembaraçar de (14) da tríade anterior, e que isto salva sua definição da preocupação de que ela poderia não respeitar o fato de que a verdade é singular:
A evidência prática de que há um nó é tratada como um sinal de que a verdade não está finalmente discutida, e que esta discussão segue como uma parte da evidência. Estamos restringidos a discutir e praticar como pensando que a verdade é singular, e esta restrição é defensável apesar da aparente possibilidade de um estrutura em árvore. (1984: 201)
Em seu “Projeção e Verdade em Ética” de 1987 (McDowell 1988, Ensaio 8), John McDowell levantou três problemas interconectados para o projeto quasi-realista de Blackburn. Nesta seção perpassarei dois desses problemas, e então argumentarei que eles falham em danificar o quasi-realismo. Lidarei com a terceira objeção de McDowell no capítulo 10.
Primeiro, penso, notarei um importante ponto no qual McDowell faz um serviço para o quasi-realismo. Isto concerne a uma objeção levantada por Crispin Wright contra o projeto quasi-realista:
O objetivo do quasi-realista é explicar como todas as características de algumas problemáticas regiões do discurso que podem inspirar uma construção realista podem ser harmonizadas com o projetivismo. Mas se este programa for bem-sucedido, e prover inter alia — como antecipa o próprio Blackburn — uma abordagem do quê parece ser uma imputação de verdade e falsidade para as afirmações da região, então devemos concluir — levando em conta a conexão entre verdade e asserção em direções opostas — com uma reabilitação da noção de que um tal rank de afirmações como asserções, com condições de verdade, apesar de tudo. O quasi-realista de Blackburn confronte-se com um dilema um pouco óbvio. Ou o seu programa falha — em que neste caso ele não explica, após tudo, como o projetivismo que o inspirou pode satisfatoriamente abordar as práticas linguísticas em questão — ou ele é bem-sucedido, em que neste caso ele faz bem todas as coisas que o projetivista começou querendo negar: que o discurso em questão é genuinamente assertórico, aponta para a verdade, e assim por diante. (Wright 1988b: 35; e também 1985: 318 — 19)
McDowell mostra que Blackburn tem uma resposta pronta para a acusação de que um projetivismo quasi-realista totalmente bem-sucedido é autoderrotista desta maneira. O projetivista rejeita qualquer apelação à noção de verdade cujo direito não foi ganho, como aplicável ao que parece ser um juízo moral: qualquer posição que confie em tais apelações cujo direito não foi ganho simplesmente ajuda a si mesma com relação à noção de verdade ética, à noção correlativa de fato moral, e à idéia de uma faculdade cognitiva especial cujo exercício nos faz acessar fatos desse tipo. Uma posição como esta é um pouco melhor do que o não-naturalismo de mooriano criticado no capítulo 3 anteriormente. O que o quasi-realista provê, se bem-sucedido, é o ganhar do direito às noções de verdade, fato, e assim por diante: ganhamos o direito à noção de verdade moral mostrando como a superfície proposicional do discurso moral pode ser justificada em detrimento de postular um reino de distintos fatos morais, sobre uma base puramente atitudinal ou projetivista. Como McDowell o coloca: “O ponto sobre a aplicação da noção de verdade que o quasi-realismo é suposto como tornando viável é que nós não ajudamos nós mesmos a isso, nós trabalhamos por isso” (1998: 153).
Tendo ajudado Blackburn a perceber a acusação de que o projeto quasi-realista é autoderrotista procede ao desenvolvimento de algumas objeções por si mesmo. McDowell escreve:
O ponto da imagem da projeção é explicar algumas características aparentes da realidade, como as reflexões de nossas respostas subjetivas ao mundo, que realmente não contém tais características. Agora essa direção explanatória parece requerer uma prioridade correspondente, com o objetivo de entendermos, entre a resposta projetada e a característica aparente: devemos ser aptos a focar nossos pensamento na resposta sem precisar explorar o conceito da característica aparente que é suposta como resultado advindo da projeção da reposta. (1998: 157)
McDowell pensa que, em alguns casos, certamente pode existir o tipo de prioridade explanatória da resposta para a característica aparente, que é necessária para a plausibilidade do projetivismo. Por exemplo, considere os sentimentos de desgosto e náusea: “podemos plausivelmente supor que esses são itens psicológicos independentes, conceitualizáveis sem qualquer necessidade de apelar propriedade projetada de desgosto ou náusea” [disgutingness and nauseatingness] (1998: 157). Você pode descrever a resposta subjetiva característica da náusea sem ter que usar o conceito de náusea: a resposta subjetiva pode ser descrita de outro modo como a resposta à presença no mundo da propriedade de ser nauseante. Contudo McDowell considera se há um tipo de similar prioridade explanatória nos casos interessantes, como em ética, e ele sugere que a comédia provê um exemplo onde a prioridade de resposta à característica projetada falha:
O quê exatamente vamos considerar como projetado no mundo daria força à nossa idéia de que as coisas são engraçadas? “Uma inclinação a rir” não é uma resposta satisfatória: projetar uma inclinação a rir não nos levaria necessariamente para uma instância aparente do cômico, desde que rir pode sinalizar, por exemplo, tanto embaraço quanto diversão. Talvez a resposta certa não pode ser identificada a não ser como diversão; e talvez diversão não pode ser entendida se não como achar algo cômico. Se isto é correto, há uma séria questão em se podemos realmente explicar a idéia de algo sendo cômico como uma projeção daquela resposta… Certamente isso mina a abordagem projetivista de um conceito, se não podemos nos direcionar ao estado subjetivo, de cuja projeção é suposta como resultando na característica aparente da realidade em questão, sem a ajuda do conceito daquela característica, o conceito que era para ser projetivamente explicado. (1998: 155)
Se o mesmo é verdade no caso da ética, o projetivismo sobre moral se fundará sobre a mesma dificuldade.
Esta objeção é intimamente conectada com um segundo ponto, indicado por McDowell, no projeto quasi-realista. Esse projeto, como vimos, consiste na tentativa de ganhar o direito à noção de verdade em moral com uma base puramente projetivista, sem postular um reino de distintos fatos morais. Que materiais podem ser permitidos invocar pelas luzes quasi-realistas, nesta tentativa? McDowell sugere que, assim como o projetivismo requer que o estado psicológico que projeta uma dada característica no mundo naturalisticamente descrito pode ser caracterizada independentemente do uso de conceitos dessas mesmas características:
Um projetivista quasi-realista sério sobre o cômico construiria uma concepção de o que é para as coisas serem realmente engraçadas sobre uma base de princípios que coloque em ranks os sensos de humor que teriam que ser estabelecidos de fora da propensão de achar coisas engraçadas. (1998: 160)
McDowell toma isso como envolvendo uma tarefa impossível, aquela de ganhar o direito à idéia de verdade aplicada aos juízos sobre moral ou comédia:
de uma posição inicial na qual todos esses tipos de vereditos ou juízos são suspensos de uma vez, como na figura projetivista do alcance das respostas a um mundo que não contém valores ou instâncias do cômico. (1998: 163)
Agora irei argumentar que essas objeções falham em danificar o quasi-realismo.
Primeiro, a objeção que concerne à requerida prioridade explanatória do sentimento frente à característica projetada. McDowell diz que, para o projeto projetivista quasi-realista ser possível, temos que estar aptos:
a focar nosso pensamento na resposta sem precisar explorar o conceito da característica aparente que é suposta como resultado de projetar a resposta. (1998: 157)
Neste contexto, o quasi-realista está engajado numa tarefa essencialmente explanatória: ele está tentando explicar a natureza dos nossos juízos morais ao caracterizar o sentimento que ele está fazendo, ab initio, os juízos morais expressarem. Se tivermos que usar os conceitos definidores do juízo moral, na tentativa de caracterizar os sentimentos que os juízos morais são ditos expressar, esta ambição explanatória será frustrada pela circularidade: de fato, assumiremos a mesma coisa que esperamos explicar. O quasi-realista irá assim aceitar a restrição de McDowell sobre a identificação do sentimento que o projetivista toma como “espalhado” pelo mundo. Mas quais são as justificativas de McDowell para pensar que a restrição não pode ser satisfeita? No caso do humor, McDowell não provê absolutamente nenhum argumento para o efeito de que a restrição não pode ser satisfeita, e meramente assere:
Talvez a resposta certa não possa ser identificada, a não ser como diversão; e talvez diversão não possa ser entendida, a não ser como achando algo cômico. (1998: 158)
Bem, talvez; mas então novamente, talvez não [Well, perhaps; but then again, perhaps not]. Esta certamente não é uma questão que possa ser feita da poltrona. Pode a psicologia nos prover, em termos naturalistas, com algumas caracterizações do sentimento de divertimento? Ou, no caso da ética, pode a psicologia nos prover, em termos naturalistas, com alguma caracterização de sentimentos distintivamente éticos? Os argumentos de McDowell no melhor dos casos aponta um espaço explanatório o qual o quasi-realista percebe que tem que preencher. Parece-me que (como veremos brevemente) não é bem-sucedido na tentativa de preencher o espaço relevante, as no próximo capítulo veremos que Gibbard, ao introduzir a idéia de que a culpa e a raiva imparcial podem ser vistas como sentimentos morais distintos, chega muito mais próximo de alcançar uma abordagem não-circular do sentimento moral. Se a abordagem de Gibbard funciona, isto ainda é uma questão aberta, mas o ponto crucial é simplesmente até então não nos proveu com nenhum argumento; deixemos para trás um argumento liquidado, contra o pensamento de que o quasi-realista pode avaliar a si mesmo a partir de uma explicação naturalista substancial da natureza do sentimento ético.
Isso lida, pelo menos provisoriamente, com o primeiro ponto de McDowell. Note, antes que o abandonemos, que a citação de McDowell 1998 (na p. 157) acima seria mais bem expressa como:
O ponto da imagem da projeção é explicar algumas características aparentes da realidade como que não deve ser assumido, ab initio, como contendo tais características.
Não há nada meramente “aparente” com relação às características da realidade que o quasi-realista nos vê projetando no mundo.
O quasi realista pode também responder ao segundo ponto de McDowell. Lembre-se que McDowell vê o quasi-realista, na sua tentativa de ganhar o direito à noção de verdade em moral ou em comédia, como restrito a fazer isso enquanto não conta com nenhum veredito particular com relação à moralidade ou ao humor. McDowell parece pensar que, desde que o quasi-realista é restrito a não usar linguagem cômica ou avaliativa na caracterização dos sentimentos distintivos da moral ou da comédia, ele também deve ser restrito a não usar, em seu ponto inicial da tentativa de ganhar o direito à noção de verdade como aplicável aos juízos morais, nenhuma asserção distintivamente ética ou sobre o humor de uma situação ou sensibilidade. Mas isto é baseado num erro. O quasi-realista aceitou a restrição de não-circularidade acima, pois ele estava engajado num empreendimento essencialmente explanatório: o de prover uma estória naturalista da natureza dos sentimentos alegadamente expressos por juízos morais. Mas na tentativa de ganhar o direito à noção de verdade em ética, o quasi-realista não está mais engajado neste tipo de projeto explanatório: preferivelmente, neste contexto, o quasi-realista está engajado num exercício essencialmente justificativo. O projeto é agora aquele de justificar o uso da noção de verdade no discurso ético, e de justificar a idéia de que alguns vereditos éticos são de fato verdades. Neste exercício, o quasi-realista, como o próprio McDowell, não precisa ser restrito a começar de um ponto em que todas as suas visões éticas deveriam ser suspensas. A idéia seria começar com algumas asserções éticas (que podem elas mesmas subsequentemente ser rejeitadas), e elaborar uma noção de verdade ética. O quasi-realista pode assim conceder que a “tarefa impossível” é de fato impossível, mas assere que na parte justificativa de sua estória sobre a moral ele não está comprometido em executar este tipo de tarefa. Que isto é assim é mostrado claramente pelo fato de que Blackburn permite que os juízos distintamente éticos tenham um papel no ranking das sensibilidades éticas:
Nem todas as sensibilidades são admiráveis. Algumas são grosseiras, insensíveis, algumas são simplesmente horrendas, algumas são conservadoras e inflexíveis, outras inconstantes e incertas. (1984: 192)
Ao julgar que uma sensibilidade particular é “simplesmente horrenda”, ou que sua inconsistância significa que ela merece censura, estamos contando com uma asserção ética particular. Isto é ainda mais claro na seguinte passagem:
Não é totalmente surpreendente que uma função inconstante — uma que tenha um elemento aparentemente randômico através do tempo, ou com relação a casos similares — é a que não podemos prontamente endossar ou identificar com algo. Parcialmente, esta é uma questão sobre o propósito de moralizar, que deve, no mínimo parcialmente, ser social. Uma sensibilidade inconstante seria difícil de ensinar, e como importa para mim que outros possam chegar a compartilhar e endossar minha perspectiva moral, procurarei deixá-la consistente. Mas parcialmente ela advém do valor de justiça. Quando reajo a casos semelhantes de maneiras diferentes, eu me arrisco a cometer uma injustiça para com aquele que é menos admirado, e um de nossos valores comuns é que devemos ser aptos a nos defender contra tal acusação. (1981: 180; ênfase adicionada).
Blackburn não precisa — e não tenta — ganhar o direito à noção de verdade em moral de um ponto inicial no qual asserções éticas estão suspensas. Portanto ele não precisa tentar a “tarefa impossível”.
A distinção entre as facetas explanatória e justificativa do quasi-realismo, usada na resposta à segunda objeção de McDowell, pode também ser invocada para refutar uma objeção relacionada belamente desenvolvida por Iain Law (Law 1996: 192). Esta objeção continua como se segue. Uma parte essencial da estória de Blackburn é que nossas próprias sensibilidades morais podem se enquadrar como objetos de aprovação ou desaprovação: a noção de melhoramento que obtivemos disso é um componente essencial da definição de Blackburn de o quê significa uma atitude ser verdadeira. Mas tem Blackburn o direito à noção de que sensibilidades morais podem melhorar ou deteriorar, e não meramente mudar? A resposta para isso depende da natureza dos padrões que nós, por referência, classificamos as sensibilidades. Se fosse permitido que apelássemos para padrões morais neste processo de classificação, poderíamos talvez obter uma noção de genuíno melhoramento ou deterioração: mas Law sugere que esta opção não é viável para o quasi-realismo de Blackburn neste ponto, desde que o objetivo total do projeto ambicioso quasi-realista “é chegar a um certo padrão: a combinação ideal de atitudes morais, M*” (Law 1996: 192). Mas se ao quasi-realista não é permitido apelar para padrões morais, para o quê ele pode apelar? Law sugere que “a resposta mais óbvia acessível para o quasi-realista é que outras atitudes são inferiores na medida em que elas se chocam com as minhas atitudes” (1996: 190). Isto nos permitiria obter uma noção de melhoramento: uma dada combinação de atitudes melhora na medida em que ela muda para se enquadrar ou para ser coerente com minhas atitudes correntes. Mas, Law assere, isto é insatisfatório, pois parece obliterar a possibilidade de que minha própria sensibilidade moral corrente ou combinação de atitudes pode ela mesma melhorar no futuro. Qualquer mudança na minha sensibilidade corrente irá ser ipso facto uma deterioração: então a noção de melhoramento parece não ter aplicação para a minha própria sensibilidade moral.
Deve estar claro que esta objeção, também, advém de uma leitura equivocada do projeto quasi-realista e das restrições sob as quais opera. Law escreve: “Nada do que disse Blackburn sugere que ele tenha um padrão moral em mente contra o qual todas as sensibilidades, incluindo a nossa própria, podem ser medidas para que verifiquemos se elas precisam de melhoramento. Como ele poderia?” (1996: 192). Isto erra o alvo de pelo menos duas maneiras diferentes. Primeiramente, Blackburn não precisa de um padrão contra o qual todos os sentimentos e sensibilidades morais podem ser classificados; seria o suficiente para o projeto quasi-realista encontrar para cada sentimento ou sensibilidade algum padrão contra o qual ele possa ser classificado. É claro que, dados esses materiais, Blackburn tenta construir uma noção de verdade moral e desse modo delinear um padrão abrangente: mas este é o resultado do processo de construção da verdade moral, não alguma pressuposição que tem que ser feita para que o processo fique em seu caminho. Em segundo lugar, como vimos anteriormente, não há nada no projeto quasi-realista que impeça Blackburn de apelar para asserções éticas particulares na tentativa de criticar sentimentos e sensibilidades morais e, assim, justificar o pensamento de que juízos morais podem ser verdadeiros. De fato, como mostrado acima, isto é o que Blackburn realmente faz. Novamente, isto significa que a presente objeção ao quasi-realista falha: Blackburn não está tentando construir uma noção de verdade apropriada à moral a partir de um ponto inicial onde todos os juízos morais são suspensos. Ele pode fazer uso de algumas asserções morais particulares, enquanto reconhece sua falibilidade, e as emprega para traçar algumas noções de trabalho com relação à deterioração e ao melhoramento: sensibilidades irão melhorar ou deteriorar na medida em que elas se encontrarem ou se chocarem com as atitudes usadas para colocar o processo de construção da verdade moral a caminho. Não ter ponto de partida, e assim a noção de melhoramento e deterioração, é sacrossanto: mas não há nada nisto que previna essas noções de serem empregadas na construção da verdade moral.
No fim do capítulo anterior, o emotivista ético parecia não ter resposta plausível para o que eu chamei de “problema da atitude moral”: que tipo de sentimento [sentiment], emoção ou sensação [feeling] é expresso por um juízo moral? Agora eu terminarei este capítulo com a discussão das possibilidades para o quasi-realista de dar uma resposta satisfatória a este problema. Desde que o quasi-realista não quer asserir que juízos morais expressam mais atitudes não-cognitivas do que crenças, e quer ao invés disso ganhar a noção de crença moral começando a partir de uma base atitudinal, o problema da atitude moral, como o enfrentado pelo quasi-realismo, tem que ser reformulado suavemente. Portanto, o problema pode ser encarado como: dar uma caracterização do tipo de atitude assumida, ab initio, para ser expressa por um juízo moral.
Irei examinar três possibilidades de respostas que o quasi-realista pode dar a essa questão, e irei argumentar que elas são insatisfatórias.
Blackburn escreve:
Suponha que você fique nervoso com o comportamento de alguém. Eu posso ficar com raiva de você por você ter ficado com raiva, e eu posso expressar isso dizendo que você não tem nada a ver com isso. Talvez isso seja um assunto privado. De qualquer modo, isto não é um tópico moral. Suponha, por outro lado, que eu sinta a sua raiva ou que eu me sinta “um” com você com relação à reação. Isto pode parar aqui. Mas eu posso também me sentir fortemente disposto a encorajar outros a compartilhar a mesma raiva. Fazendo isso, estou claramente tratando a questão como assunto de preocupação pública, algo como um tópico moral. (1998a: 9)
Assim, o quasi-realista tenta evitar a réplica de OQA contra a análise emotivista dos juízos morais (como no §3.6) pela asseção de que juízos morais podem ser assumidos ab initio como expressando complexos sentimentos ordinários [common-or-garden]. Novamente, vamos representar um sentimento não-cognitivo de aprovação com relação a x por meio de V!(x), e um sentimento não-cognitivo de desaprovação de x por meio de X!(x). Talvez o juízo estético de que a Missa Solene é bela expressa V!(Missa Solene), enquanto o juízo de que matar é errado expressa o sentimento complexo: X!(matar) & V!(todos que têm a atitude X!(matar)). Isto significa dizer que, quando digo que x é moralmente bom, estou expressando a aprovação de x e a aprovação de qualquer um que aprove x. Contudo isto não irá funcionar (e inclusive se funcionasse, ainda nos deixaria sem nenhuma abordagem da diferença entre os juízos estéticos e o juízos com relação ao gosto do paladar). A idéia é esta. X! M(matar) = df X!(matar) & V!(todos que têm a atitude X!(matar)), onde o “M” subscrito representa o fato de que a atitude complexa é intencionada para ser definidora de uma atitude moral e “&” como fazendo uma conjunção entre comprometimentos. Mas quando julgo que matar é moralmente errado, por exemplo, eu expresso um sentimento não-cognitivo com relação a matar, e eu aprovo todos que compartilham o mesmo tipo de sentimento não-cognitivo: não seria suficiente para os outros que, por exemplo, eles achassem que matar fosse meramente esteticamente desagradável. Então o que o quasi-realista realmente precisa é preferivelmente X! M(matar) = df X!(matar) & V!(todos que têm a atitude X! M(matar)). E é claro isto é sem esperança. Se isto se sustentasse, seria circular, e se tentarmos evitar a circularidade reaplicando o movimento, obtemos um regresso ao infinito:X!(matar) & V!(todos que têm a atitude: X!(matar) & V!(todos que têm…)), e assim por diante. Nenhuma abordagem coerente dos complexos sentimentos alegadamente expressos por um juízo moral está vindo.
Assim, a abordagem do estilo da “ascensão emocional” de Blackburn com relação à atitude moral não funciona.
Blackburn escreve:
Se imaginamos o campo geral de preocupações de um agente, seus valores podem ser vistos como aqueles que ele ou ela também está preocupado em preservar. (1998a: 67)
Isto pode ser adaptado para nos dar uma abordagem plausível da atitude não-cognitiva expressa por um juízo moral? A idéa pode ser a de que poderíamos definir a atitude moral do seguinte modo:
V! M(honestidade) = df (V!(x) & V!(estabilidade de [V!(x)])).
Mas isto também não funciona. Por um motivo, isto cai como vítima do OQA, como reconstruído no §3.6.
(15) Há uma ligação conceitual entre julgar que Jones julgou que x é bom (mau) e a esperança de que Jones esteja disposto, ceteris paribus, a demandar que você compartilhe seus sentimentos não-cognitivos com relação a x.
(16) Falantes competentes e reflexivos do Inglês estão convencidos de que eles são aptos a imaginar de mente limpa (e, de outro modo, seres psicologicamente saudáveis) quem julga que Jones expressa o sentimento V! M(x), mas falha em esperar que Jones esteja disposto, ceteris paribus, a demandar que eles compartilhem este sentimento não-cognitivo com relação a x.
Os seres imaginados podem genuinamente se perguntar se Jones está expressando uma aprovação ou desaprovação estética ou de algum outro tipo.
(17) Se não houvesse uma ligação conceitual entre julgar que Jones expressa o sentimento V! M(x)e esperar que Jones esteja disposto, ceteris paribus, a demandar que você compartilhe este sentimento não-cognitivo com relação a x, nós esperaríamos de falantes competentes e reflexivos do Inglês que tivessem a convicção descrita em (16).
Logo: (18) A menos que haja alguma outra explicação da convicção descrita em (16), estamos aptos a concluir que não há ligação conceitual entre julgar que Jones expressou V! M(x) e esperar que Jones demande que você compartilhem este sentimento não- cognitivo com relação a x.
Logo: (19) A menos que haja outra explicação da convicção descrita em (16), estamos aptos a concluir que o juízo de que Jones julgou que x é bom não é idêntico ao juízo que Jones expressou por meio de V! M(x).
Logo: (20) A menos que haja outra explicação da convicção descrita em (16), estamos aptos a concluir que julgar que x é bom não pode ser analisado em termos da expressão de V! M(x).