Homo sapiens quer dizer hominíneo sábio, e em muitos aspetos merecemos o epíteto específico do binómio de Lineu. A nossa espécie fez a datação da origem do Universo, sondou a natureza da matéria e da energia, descodificou os segredos da vida, desvendou o circuito da consciência e fez a crónica da nossa história e da nossa diversidade. Aplicámos este conhecimento para melhorar o nosso próprio florescimento, neutralizando os flagelos que atormentaram os nossos antepassados durante a maior parte da nossa existência. Adiámos o nosso encontro previsto com a morte, dos trinta anos de idade para mais de setenta (oitenta, nos países desenvolvidos), reduzimos a pobreza extrema de noventa por cento da humanidade para menos de nove, abatemos vinte vezes a taxa de mortalidade provocada pela guerra, e a morte por desnutrição diminuiu cem vezes.1 Mesmo quando a cruz antiga da pestilência ergueu de novo a sua cabeça, no século XXI, identificámos a causa uns dias depois, fizemos a sequenciação do seu genoma depois de algumas semanas, e administrámos vacinas um ano depois, tornando o número mortos uma fração das pandemias históricas.
Os recursos cognitivos para compreender o mundo e alterá-lo de maneira para nós vantajosa não é um troféu da civilização ocidental; é o património da espécie. Os sãs do deserto do Calaári, na África meridional, são um dos povos mais antigos, e o seu estilo de vida nómada, que persistia até recentemente, permite-nos entrever a maneira como os seres humanos passaram a maior parte da sua existência.2 Os caçadores-recoletores não se limitam a atirar lanças aos animais que passam, ou a deitar a mão aos frutos e sementes que crescem ao seu redor.3 O cientista de despistagem Louis Liebenberg, que trabalhou com os sãs durante décadas, descreveu como estes devem a sua sobrevivência a uma mentalidade científica.4 Raciocinam partindo de dados fragmentários para chegar a conclusões remotas, com uma compreensão intuitiva de lógica, pensamento crítico, raciocínio estatístico, inferência causal e teoria dos jogos.
Os sãs entregam-se à caça de persistência, que faz uso de três dos nossos traços mais marcantes: o nosso bipedismo, que nos permite correr eficientemente; o facto de não termos pelo, o que nos permite eliminar o calor nos climas quentes; e os nossos enormes crânios, que nos permitem que sejamos racionais. Os sãs usam a sua racionalidade para despistar os animais em fuga, a partir das suas pegadas, eflúvios e outras pistas, perseguindo-os até caírem de exaustão e excesso de calor.5 Por vezes, os sãs despistam um animal ao longo de um dos seus percursos habituais ou, quando lhe perdem o rasto, procuram em círculos cada vez maiores, a partir das últimas pegadas encontradas. Mas muitas vezes despistam-nos raciocinando.
Os caçadores distinguem dezenas de espécies pelas configurações e espaçamentos das suas pegadas, e com a ajuda da compreensão que têm da relação de causa e efeito. Podem inferir que uma pegada afunilada profunda é de uma cabra-de-leque ágil, que precisa de uma boa aderência, ao passo que uma pegada plana é de um pesado Cudu, que tem de apoiar todo o seu peso. Conseguem determinar o sexo dos animais pela configuração das suas pegadas e pela localização da urina em relação às suas patas traseiras e aos seus dejetos. Usam estas categorias para fazer deduções silogísticas: consegue-se perseguir xipenes e cabritos na estação das chuvas, porque a areia molhada obriga os seus cascos a abrir e faz as suas articulações ficar hirtas; consegue-se perseguir os cudus e os cefos na estação seca, porque depressa se cansam na areia solta. Agora é a estação seca, e o animal que deixou estas pegadas é um cudo; logo, este animal pode ser perseguido.
Os sãs não se limitam a classificar animais em categorias; fazem também distinções lógicas mais subtis. Distinguem os indivíduos entre si, numa dada espécie, interpretando as suas pegadas, procurando ranhuras e variações indiciadoras. E distinguem os traços permanentes de um indivíduo, como a sua espécie ou sexo, de condições efémeras como a fadiga, que inferem de sinais de arrastamento dos cascos e de paragens para descansar. Pondo em questão a treta de que os povos pré-modernos não têm conceito de tempo, fazem uma estimativa da idade de um animal a partir da dimensão e definição das suas pegadas, e conseguem fazer a datação dos rastos com base na antiguidade das pegadas, na humidade da saliva ou dos dejetos, no ângulo do Sol relativamente a um local de descanso que fica à sombra, e do palimpsesto de rastos sobrepostos de outros animais. A caça de persistência não seria bem-sucedida sem estas minudências lógicas. Um caçador não se limita a conseguir ir na peugada de qualquer antílope de entre os muitos que deixaram pegadas; antes isola o que tem estado a perseguir até à exaustão.
Os sãs entregam-se também ao pensamento crítico. Sabem que não devem confiar nas suas primeiras impressões, e dão-se conta dos perigos de ver o que querem ver. Nem aceitam argumentos de autoridade: qualquer pessoa, incluindo um novato, pode derrubar uma conjetura ou formular outra, até que da disputa emirja um consenso. Apesar de ser principalmente os homens que caçam, as mulheres são igualmente boas a interpretar os rastos, e Liebenberg relata que uma jovem, !Nasi, “fez os homens corar de vergonha”.6
Os sãs ajustam o crédito que dão a uma hipótese de acordo com a solidez das provas, que é uma questão de probabilidade condicional. As patas dos porcos-espinho, por exemplo, têm duas partes planas próximas, ao passo que um texugo-do-mel só tem uma, mas uma dessas partes poderá estar ausente de uma pegada, devido à rigidez do solo. Isto significa que apesar de ser elevada a probabilidade de uma pegada só indicar uma parte plana dado ter sido deixada por um texugo-do-mel, a probabilidade inversa de a pegada ter sido deixada por este animal dado só ter uma parte plana é inferior (porque pode também ser uma pegada incompleta de um porco-espinho). Os sãs não confundem estas probabilidades condicionais: sabem que uma vez que duas partes planas numa pegada só podem ter sido feitas por um porco-espinho, a probabilidade de se tratar de um porco-espinho quando estão perante pegadas com duas partes planas é elevada.
Os sãs também ajustam o grau de crença numa hipótese segundo a sua plausibilidade prévia. Se as pegadas são ambíguas, pressupõem que foram deixadas por uma espécie comum; só se os indícios forem definitivos é que concluem que foram deixados por uma espécie mais rara.7 Como veremos, isto é a essência do raciocínio bayesiano.
Outra faculdade crítica exercida pelos sãs é distinguir causas de correlações. Recorda Liebenberg: “Um caçador, Boroh//xao, disse-me que a [cotovia] seca o solo quando canta, tornando as raízes boas para comer. Depois, !Nate e /Uase disseram-me que Boroh//xao estava enganado — não é o pássaro que seca o solo, é o Sol. O pássaro só está a dizer-lhes que o solo vai ficar seco nos meses seguintes, e que está na altura do ano em que as raízes são boas para comer”.8
Os sãs usam o conhecimento que têm da textura causal do seu meio ambiente não apenas para compreender como as coisas são, mas também para imaginar como poderão ser. Imaginar cenários mentais permite-lhes antecipar o que os animais fazem e conceber armadilhas intricadas para os apanhar. Uma ponta de um ramo flexível fica presa no chão, e o ramo dobra-se ao meio; a outra ponta é atada a um laço que fica escondido com galhos e areia, e fica no seu lugar por meio de um gatilho. Põem as armadilhas na abertura de barreiras que eles mesmos fizeram nas imediações do lugar onde o antílope descansa, guiando o animal para a armadilha mortal com obstáculos que o antílope tem de contornar. Ou atraem uma avestruz para uma armadilha localizando as suas pegadas nas imediações de uma árvore espinha-de-camelo (cujas vagens são muito apreciadas pelas avestruzes) e deixando um osso bem visível que é demasiado grande para que a avestruz consiga engoli-lo, o que lhe chama atenção para outro menor mas que ainda não consegue engolir, o que a leva a outro ainda menor, que é a isca da armadilha.
Contudo, apesar de toda a mortal eficiência da tecnologia dos sãs, sobreviveram num deserto implacável durante mais de cem mil anos sem exterminar os animais de que dependem para viver. Quando há seca, antecipam as coisas e pensam no que aconteceria se matassem a última planta ou animal de uma dada espécie, e poupam os membros das espécies ameaçadas.9 Adaptam os seus planos de conservação às diferentes vulnerabilidades das plantas, que não podem emigrar mas que recuperam rapidamente quando regressam as chuvas, dos animais, que conseguem sobreviver a uma seca, mas só lentamente se multiplicam. E fazem cumprir estes esforços de conservação contra a tentação constante da caça furtiva (quando toda a gente sente que deve explorar a espécie escassa, porque se não o fizer todas as outras pessoas o farão) com uma adenda às normas de reciprocidade e de bem-estar coletivo que regem todos os seus recursos. É impensável que um caçador sã não partilhe a carne com um membro do seu grupo que ficou de mãos a abanar, tal como é impensável excluir um grupo vizinho que foge do seu território assolado pela seca, pois sabem que a memória é longa e um dia talvez as fortunas fiquem invertidas.
A sapiência dos sãs torna agudo o quebra-cabeças da racionalidade humana. Apesar da nossa capacidade antiga para raciocinar, somos hoje inundados com advertências das falácias e tolices dos nossos semelhantes. As pessoas fazem apostas e compram bilhetes de lotaria, onde têm a garantia de perder, e não investem para a reforma, onde têm a garantia de ganhar. Três quartos dos norte-americanos acreditam em pelo menos um fenómeno que põe em causa as leis da ciência, incluindo curas psíquicas (55 por cento), perceção extrassensorial (41 por cento), casas assombradas (37 por cento) e fantasmas (32 por cento) — o que significa também que algumas pessoas acreditam em casas assombradas por fantasmas sem acreditar em fantasmas.10 Nas redes sociais, as notícias falsas (como JOE BIDEN CHAMA AOS APOIANTES DE TRUMP “ESCÓRIA DA SOCIEDADE” e HOMEM DE FLORIDA PRESO POR DAR TRANQUILIZANTES E VIOLAR JACARÉS NA REGIÃO DOS PÂNTANOS) são difundidas mais além e mais depressa do que a verdade, e é mais provável que sejam disseminadas por seres humanos do que por bots.11
Tornou-se um lugar-comum concluir que os seres humanos são simplesmente irracionais — mais Homer Simpson do que Mr. Spock, mais Alfred E. Neuman do que John von Neumann. E, continuam os cínicos, o que seria de esperar de descendentes de caçadores-recoletores, cujas mentes foram selecionadas para evitar acabar no almoço dos leopardos? Mas os psicólogos evolutivos, cientes da engenhosidade dos povos nómadas, insistem que os seres humanos evoluíram para ocupar o “nicho cognitivo”: a capacidade para ser mais espero do que a natureza, recorrendo à linguagem, socialidade e saber-fazer.12 Se os seres humanos contemporâneos parecem irracionais, a culpa não é dos caçadores-recoletores.
Como conseguiremos compreender, pois, esta coisa chamada racionalidade, que à primeira vista seria o nosso direito inato, mas que é tão frequente e flagrantemente violada? O ponto de partida é darmo-nos conta de que a racionalidade não é um poder que um agente ou tem ou não, como a visão de raios X do Super-homem. É um estojo de instrumentos cognitivos que podem permitir atingir certos objetivos em mundos particulares. Para compreender o que é a racionalidade, por que parece escassa e por que é importante, temos de começar com as verdades fundacionais da própria racionalidade: as maneiras como um agente inteligente deve raciocinar, dados os seus objetivos e o mundo em que vive. Estes modelos “normativos” são oriundos da lógica, filosofia, matemática e inteligência artificial, e constituem a nossa melhor compreensão da solução “correta” para um problema e de como a descobrimos. Servem de aspiração a quem quer ser racional, o que deveria ser toda a gente.
Os modelos normativos servem também de termos de comparação contra os quais podemos ver como os desafortunados seres humanos realmente raciocinam, que é o tema de estudo da psicologia e de outras ciências do comportamento. As muitas maneiras como as pessoas comuns se ficam aquém destes termos de comparação tornaram-se famosas devido à investigação premiada com o Nobel de Daniel Kahneman, Amos Tversky e outros psicólogos e economistas do comportamento.13 Quando os juízos das pessoas se desviam de um modelo normativo, o que fazem frequentemente, temos um quebra-cabeças para resolver. Por vezes, a disparidade revela uma irracionalidade genuína: o cérebro humano não consegue lidar com a complexidade de um problema, ou fica sobrecarregado com um defeito que amaldiçoadamente o leva repetidamente à resposta errada.
Mas em muitos casos há método na loucura das pessoas. Um problema poderá ter sido apresentado de maneira enganadora, e quando o traduzimos de uma maneira mais apropriada, elas resolvem-no. Ou o próprio modelo normativo pode só ser correto num ambiente particular, e as pessoas sentem corretamente que não é aí que estão, de modo que o modelo não se aplica. Ou o modelo pode ter sido concebido para levar a um certo objetivo e, seja isso mau ou bom, as pessoas têm outro objetivo em mente.
Apesar de as explicações da irracionalidade poderem absolver as pessoas da acusação de simples estupidez, compreender não é perdoar. Por vezes, podemos exigir-lhes um padrão superior. Podemos ensinar-lhes a identificar um problema profundo nos seus sinais mais superficiais. Podem ser estimuladas a aplicar os seus melhores hábitos mentais fora das suas zonas de conforto. E podem ser estimuladas a exigir mais do que objetivos que são autoderrotantes ou coletivamente destrutivos.