Em 1971 era publicada uma obra que se tornaria muito importante nas discussões de filosofia política. O nome dessa obra é Uma Teoria da Justiça e seu autor John Rawls. Ao longo das aproximadas seiscentas páginas do livro, Rawls apresenta e defende a perspectiva que chamou de “Justiça como Equidade”. Rawls considera, e menciona-o logo no prefácio (tanto da edição original como da revista), que a sua teoria pretende ser uma alternativa à teoria utilitarista. Assim, uma parte do seu projeto é refutar, de uma vez por todas, essa teoria.
O meu objetivo neste artigo é mostrar por que, não obstante a grande influência das críticas de Rawls na filosofia contemporânea, ainda sou utilitarista. O que não é meu objetivo é expor ou refutar qualquer parte de sua teoria positiva, exceto o que for necessário para a compreensão e discussão das críticas ao utilitarismo. Portanto, se eu for bem-sucedido ao longo deste artigo, o leitor chegará ao fim acreditando que Uma Teoria da Justiça não nos dá boas razões para abandonar o utilitarismo.
Algumas das críticas aqui formuladas podem ser encontradas em outros lugares, como é o caso de “As Críticas ao Utilitarismo por Rawls”, de Júlio Esteves. Nesse artigo, Esteves apresenta objeções a algumas das críticas de Rawls ao utilitarismo. Parte dessas objeções serão repetidas aqui e, quando isso ocorrer, indicarei no texto ou em nota. Uma semelhança entre as ideias apresentadas neste artigo e as de Esteves é que em ambos os casos se considera que algumas críticas de Rawls são muito ingênuas. Esteves chega a declarar: “Aliás, alguns dos argumentos de Rawls [...] são tão ingênuos e pueris, que me espanta o fato de ter angariado tanto respeito por parte dos comentadores” (2002: 89). Quanto a tais críticas, sustentarei que Rawls está usando falácias há muito conhecidas, que podem ser encontradas em um bom dicionário de filosofia. Porém, há um ponto em que difiro consideravelmente de Esteves. Ele pensa que um importante argumento de Rawls é bem-sucedido contra o utilitarismo, e eu penso justamente o contrário. Discutirei em algum detalhe esse argumento e defenderei, contra Esteves, que é possível responder-lhe.
Um ponto importante a ser notado é que não será necessária uma compreensão detalhada e sofisticada da doutrina utilitarista para entender os argumentos que defenderei aqui. Por esse motivo, farei apenas uma exposição rudimentar sobre o que podemos ter em mente quando falamos de utilitarismo, além de mencionar algumas distinções importantes. Ademais, outras distinções ou ressalvas importantes aparecerão ao longo da discussão dos argumentos de Rawls.
Este artigo divide-se em três partes. Na primeira, faço uma breve exposição do utilitarismo e exponho e discuto uma das objeções presentes na obra de Rawls. Mais especificamente, a objeção que discutirei afirma que, por definição, o utilitarismo é insensível às questões de justiça. Na segunda, exponho e discuto outra objeção de Rawls, mais forte que a primeira, que afirma que a justiça tem prioridade sobre o bem, e que o utilitarismo não o reconhece. Para responder a esta objeção, proporei dois exemplos que visam mostrar que não temos razões para admitir a prioridade da justiça; pelo menos, não no sentido que Rawls quer. Por fim, a conclusão.
O utilitarismo tem dois componentes filosóficos. O primeiro é uma tese sobre o que tem valor, que afirma que a felicidade é o fim último da vida. Ou seja, nada, além da felicidade, é desejável como um fim último. Obviamente, isso não exclui que valoremos muitas outras coisas em nossas vidas, mas essas coisas serão, ou pelo menos deveriam ser, desejadas apenas como um meio para a felicidade. Desse modo, se desejo ganhar muito dinheiro é apenas porque, com muito dinheiro, posso obter mais felicidade, sendo o primeiro um meio para a segunda. O segundo é o seu aspecto conseqüencialista. Isso significa que uma ação é boa ou má em função das conseqüências produzidas por ela. No caso do utilitarismo, se a conseqüência da minha ação é a maior felicidade geral, então a minha ação é boa, mas se minha ação produz o contrário da felicidade, então é má. Se tenho de escolher entre dois cursos de ação, então devo escolher aquele que promoverá a maior felicidade para os envolvidos. Assim, o utilitarismo é uma doutrina teleológica, que visa um fim (a felicidade). A partir daqui há algumas distinções importantes que podemos fazer. A seguir exponho as três mais freqüentes.
Em primeiro lugar, utilitaristas podem discordar entre si quanto à sua concepção de bem ou felicidade. Um hedonista identificará a felicidade com prazer e ausência de dor. Um utilitarista dos interesses identificará a felicidade com satisfação dos nossos interesses. Um perfeccionista identificará a felicidade com a posse de um conjunto de características que nos tornam melhores ou mais perfeitos. E uma concepção objetiva identificará a felicidade com uma pluralidade de bens, que podem incluir prazer, desenvolvimento das nossas faculdades, etc.1
Em segundo lugar, os utilitaristas podem divergir quanto à aplicação do cálculo da felicidade. Um utilitarista da ação afirma que devemos calcular antes de cada ação particular se esta promoverá ou não a maior felicidade. Um utilitarista das regras afirma que o cálculo deve ser aplicado às regras gerais, como “não mate” ou “não roube”, e que essas regras podem ser seguidas sem reflexão posterior por nós em nossas vidas cotidianas. Por fim, um utilitarista dos dois níveis afirma que o cálculo deve (ou pode) ser aplicado tanto às ações como às regras. Se temos tempo ou condições para calcular antes de uma ação particular, então devemos calcular. Mas se não temos tempo ou condições, então é melhor seguirmos a regra, cuja sociedade vem sancionando há um dado tempo.
Em terceiro e último lugar, os utilitaristas podem dividir-se em utilitaristas negativos e utilitaristas positivos. Os primeiros geralmente alegam que o que devemos fazer não é promover a felicidade, mas evitar e também prevenir o contrário dela. Os segundos alegam que temos a obrigação moral de promovê-la.2
Há muitos detalhes que poderiam ser especificados, e muitas outras coisas que poderiam ser ditas. Além disso, já houve, e ainda há, muita discussão sobre cada um desses pontos. Mas penso que o que foi dito já é suficiente para prosseguirmos para o ponto principal, as críticas de Rawls ao utilitarismo. Passemos a elas então.
Ao começar a criticar o utilitarismo, a primeira coisa que Rawls menciona é que não tem em mente os refinamentos feitos nessa teoria pelos seus defensores contemporâneos. Mais especificamente, e isso Rawls observa posteriormente em nota, tem em mente The Methods of Ethics, de Henry Sidgwick. Em seguida, observa que o seu “objetivo é elaborar uma teoria da justiça que represente uma alternativa ao pensamento utilitarista em geral e, portanto, a todas as suas versões”. (1971: 27). E de fato foi assim que Rawls foi compreendido pela comunidade filosófica. Por um lado, quem busca responder a Rawls em algum ponto importante, não se sente, em geral obrigado a entrar em pormenores interpretativos de Sidgwick (Brink 1986: 419). Por outro, aqueles que confiam nas críticas de Rawls, não as tratam como críticas específicas a Sidgwick. Alguns contemporâneos, como Roberto Gargarella (1999), chegam a incluir nos seus manuais de filosofia política uma seção sobre o utilitarismo que limita-se a repetir a exposição feita deste por Rawls. Como era de se esperar, a exposição termina com a refutação cabal do utilitarismo, refutação que pode ser efetuada sem sequer precisar incluir autores utilitaristas nas suas referências bibliográficas. Tal é o grau de confiança inspirado por Rawls. Vou optar por interpretar as críticas de Rawls como críticas ao utilitarismo em geral, e não me ocuparei de questões de interpretação de Sidgwick. Outro caminho é possível, mas note-se que, se encararmos as críticas de Rawls como críticas específicas a Sidgwick, ou que não podem ser generalizadas, então muito da sua força será perdida. Afinal, existem ainda muitas versões de utilitarismo.
Uma última observação. A principal preocupação de Rawls em Teoria da Justiça é com a filosofia política, mais especificamente com a justiça e, mais especificamente ainda, com a justiça distributiva. É importante que tenhamos uma imagem clara dos tipos de problemas com os quais Rawls pretendia lidar. Começo com uma pequena exposição de problemas com os quais Rawls estava preocupado e, em seguida, como ele pensava que o utilitarista os resolveria.
Talvez não seja exagero dizer que todos temos um senso de justiça. Somos de algum modo afetados quando vemos ou ouvimos falar de crianças ou adultos que se encontram em completa miséria. A situação é agravada pelo fato de muitas vezes (se não a maior parte delas) não sermos diretamente culpados da miséria em que nos encontramos. Para ilustrar isso, pensemos no seguinte exemplo: ao visitar uma grande cidade do nosso país, percebi que muitos dos bairros mais nobres são cercados por favelas em condições de extrema pobreza. Imagine que antes de nascer você pudesse escolher entre nascer num bairro de classe mais elevada e ter pais que receberam uma educação razoável e terão condições de o preparar para um mercado competitivo, ou nascer num bairro cercado de pobreza, e ser criado por pais que não conseguiriam financiar uma boa educação, não o preparando para o mercado competitivo. Qual dessas opções você escolheria? Parece razoável supor que escolheríamos a primeira. O problema é que essa escolha nunca nos é colocada: não escolhemos onde iremos nascer. Levando em conta que o lugar onde nascemos e a educação que recebemos influenciam consideravelmente as hipóteses e oportunidades que teremos no futuro, ficamos com um problema em mãos. As desigualdades decorrentes da loteria social, aquelas que não são fruto das nossas escolhas livres, violam o nosso senso de justiça. Não parece justo que existam tais desigualdades. A pergunta que surge disso é: como interferir em tais desigualdades, alcançando assim um estado justo? Rawls estava preocupado com este tipo de problema.
Em primeiro lugar, diferentes pessoas têm diferentes concepções de justiça, diferentes concepções acerca do que é justo. Essas concepções podem ser influenciadas por diversos fatores. Por exemplo, uma pessoa mais rica ou abastada pode ter uma concepção de justiça que não inclua algumas coisas que uma pessoa mais pobre poderia incluir. Os mais ricos podem não achar justo que se tente resolver problemas de desigualdade social por meio de cobranças de impostos mais altos para as classes mais ricas. Impostos esses que seriam utilizados para reverter a situação dos mais pobres. Em oposição a isso, uma pessoa mais pobre pode pensar que essa seria uma medida perfeitamente justa. Desse modo, surgiriam divergências entre as distintas concepções. Para resolver os problemas de desigualdade colocados acima é preciso que tenhamos um meio de decidir entre essas divergências.
Uma saída para essas divergências é o utilitarismo. Esta doutrina fornece um único padrão pelo qual escolhemos entre princípios divergentes. Tal padrão seria a maior felicidade ou bem-estar geral. Segundo Rawls, o raciocínio utilitarista teria a forma que passamos a expor.
Na nossa vida, procuramos alcançar a maior soma possível de felicidade. Muitas vezes nos dispomos a algo que é em si mau (como a dor gerada por uma injeção) para evitar um mau maior (adquirir uma grave doença). Isso é o que chamamos de raciocínio prudencial, onde pesamos os prós e contras de uma ação visando escolher os melhores meios para obtenção de um determinado fim. No caso do utilitarismo, esse fim seria a maior soma possível de felicidade. Ao fazê-lo, estamos seguindo o princípio de que agir bem é agir de modo a buscar o seu próprio bem-estar, desde que não prejudique ninguém. Rawls acredita que o utilitarista comumente parte daí para concluir que o mesmo deve ser feito na sociedade. Assim, devemos buscar o máximo bem-estar da sociedade. Daí, Rawls conclui que, no utilitarismo, o “princípio de escolha na associação humana é interpretado como uma extensão de princípio de escolha para uma pessoa” (1971: 29). Embora admita que não é o único modo de chegar ao utilitarismo, Rawls acredita que é “a via mais natural de reflexão” (1971: 36). Disso tudo Rawls ainda conclui que o estado almejado pelo utilitarismo é aquele onde ocorra o maior saldo líquido de felicidade. Isto é, subtrai-se da quantidade de felicidade alcançada a quantidade de infelicidade e, se o resultado for o maior dentre todas as possibilidades, então temos um estado justo.
Segundo esta descrição, tudo começa com uma reflexão sobre o bem que cada indivíduo busca em sua vida, e termina com o justo. O utilitarista começa por se perguntar qual é o fim último (ou o bem) da vida e depois define o justo como aquilo que o maximiza. Assim, o utilitarista define o justo em função de sua definição de bem. Portanto, temos:
Rawls tenta argumentar que daqui seguem-se algumas conseqüências bizarras. Se aceitarmos este “método utilitarista”, teremos que aceitar que qualquer direito é violável em nome da maximização do bem ou da felicidade. Desse modo, se o melhor para um ordenamento social é que torturemos um de seus membros, então devemos torturá-lo, a despeito do direito já conquistado dos indivíduos à integridade física. Uma sociedade utilitarista não respeita direitos. O que importa é apenas que, no fim das contas, obtenhamos o maior saldo líquido de felicidade para os membros da sociedade. Além disso, há o problema da distribuição. Se o saldo líquido de felicidade de um ordenamento social A, onde há muitas pessoas ricas e algumas miseráveis, é maior do que o saldo de felicidade de B, onde só há pessoas com um montante médio de recursos, então devemos preferir A a B. O utilitarismo também parece insensível ao direito das pessoas a uma parcela mais igualitária dos bens. Pouco importa como a felicidade está distribuída entre os membros da sociedade, o que importa é somente que o saldo de felicidade seja o maior possível.3
A primeira coisa que alguém poderia pensar é que o melhor modo de responder a Rawls é alegando que alguma coisa deve estar errada na sua descrição. Poderíamos, por exemplo, negar a proposição 2, negar que o utilitarista precisa definir o justo como aquilo que maximiza o bem. Seja como for, não precisamos aceitar o modo de raciocínio que Rawls atribui ao utilitarista. Mesmo que muitos utilitaristas raciocinassem dessa maneira, Rawls não teria decidido a questão. Como manda a regra, numa interpretação caridosa devemos levar em conta a interpretação mais plausível do nosso adversário, e não a mais comum ou “mais natural”.
Ao invés de defender o justo como aquilo que maximiza o bem, o utilitarista poderia muito bem alegar que o justo é um aspecto essencial do bem. As pessoas não conseguem ser felizes se não tiverem seus direitos respeitados. Por exemplo, se não tivermos direito à integridade física e à proteção ou segurança, então seremos menos felizes, pois viveremos com medo. Do mesmo modo, um ordenamento social em que as pessoas não vêem os direitos respeitados não pode ser o ordenamento proposto pelo utilitarista. Em resumo, um utilitarista poderia aceitar e até mesmo defender que as pessoas têm direitos que, excluindo casos extremos, são invioláveis. Sendo que tais direitos devem ser mantidos porque são uma condição necessária para a felicidade.
Quanto à distribuição, o utilitarista poderia, como nota Esteves (2002), defender que o modo como um ordenamento social distribui os bens entre os seus membros influencia diretamente a felicidade produzida por tal ordenamento. Um ordenamento social onde os bens são distribuídos de modo igualitário promove mais eficientemente a felicidade do que um em que haja desigualdades exacerbantes. As elites de países como o Brasil, pelo menos aqueles que defendem modos totalmente desiguais de distribuição, não conseguiriam
“compreender que é impossível ser uma ilha de felicidade cercada por um mar de infelicidade e que por isso está no seu interesse-próprio refletido abrir mão de algumas vantagens agora, para obter paz, tranqüilidade e até mesmo um maior ganho financeiro, numa palavra, um maior bem-estar, a longo prazo”. (Esteves 2002: 89)
Estas não são as únicas saídas de um utilitarista. Poderíamos apelar ao princípio da utilidade marginal decrescente, que alega que a mesma quantidade de renda ou benefício significa menos para alguém que já tem muito do que para alguém que tenha pouco. E por isso aquele que tem pouco teria prioridade na distribuição. Ou poderíamos apelar para uma noção de utilitarismo negativo, que interpreta o princípio da utilidade como algo que afirma que temos de promover ações para prevenção da dor e do sofrimento, ao invés de promover bens positivos (Lyons 1982: 49-53). Nesse caso, acabar com a dor ou sofrimento teria prioridade sobre a promoção de bens positivos. Ou ainda poderíamos apelar para uma interpretação igualitarista do princípio da utilidade (Marshall 1983), alegando que esse princípio nos obriga à consideração da felicidade de todos, respeitando a desejabilidade da felicidade de cada ser. Isso seria diferente de afirmar que esse princípio nos obriga à busca de um saldo líquido de felicidade, ou algo do tipo. Deixo ao leitor pesquisar essas saídas e analisá-las. Para os propósitos deste texto, basta que admitamos que sejam possíveis.
De fato, ao longo da história, os utilitaristas estiveram muito preocupados com questões de justiça; Bentham defendeu os direitos dos animais, Mill se empenhou em inúmeras causas a favor dos excluídos, sendo o caso mais famoso a sua defesa dos direitos das mulheres. Contemporaneamente, Singer trouxe novamente à tona a questão dos direitos dos animais, objetando com toda força ao que chamou de especismo, atitude de negligência quanto aos interesses dos animais não-humanos. Além disso, o próprio Rawls expressa dúvida sobre se a sua teoria pode reconhecer os direitos dos animais (1971: 20–21), ou mesmo dos deficientes (1993: 63–64). Isto principalmente porque a sua teoria pressupõe um conceito de pessoa (que seriam os objetos das nossas considerações morais) que nem os animais nem os portadores de alguns tipos de deficiências podem satisfazer. Seria uma questão importante saber se, sem qualquer manobra artificial, Rawls poderia incorporá-los na sua teoria.4
Mas então por que Rawls foi tão insistente no suposto fato de o utilitarismo ser insensível às questões de justiça, a despeito das possibilidades de resposta acima ou mesmo da história do utilitarismo? A resposta é surpreendente: o utilitarismo é uma doutrina teleológica, ou seja, que visa um fim (a felicidade), e as doutrinas teleológicas são, por definição, insensíveis às questões de justiça. Num primeiro momento, Rawls menciona o seguinte, referindo-se à relação entre o justo e o bom:
“Parece, então, que a maneira mais simples de interligá-las é adotada pelas teorias teleológicas: define-se o bem independentemente do justo e, então, define-se o justo como aquilo que eleva o bem ao máximo”. (Rawls 1971: 29)
Em seguida, Rawls acrescenta:
“Contudo, se a distribuição dos bens também for considerada um bem, talvez de ordem superior, e a teoria nos orienta a produzir o bem máximo (incluindo-se, entre outros, o bem da distribuição), não temos mais uma perspectiva teleológica no sentido clássico”. (Rawls 1971: 30)
E ainda:
“o utilitarismo é uma teoria teleológica, ao passo que a teoria da justiça como equidade não o é. Por definição, então, a segunda é uma teoria deontológica, que não especifica o bem independentemente do justo, ou não interpreta o justo como aquilo que maximiza o bem”. (Rawls 1971: 36; itálico meu)
Rawls observa ainda que as teorias deontológicas são definidas como não teleológicas, e não como aquelas que caracterizam a correção moral das ações ou instituições de modo independente das suas conseqüências.
Em poucas palavras, Rawls poderia responder como se segue a tudo o que afirmei acima sobre as possíveis respostas utilitaristas: Se falamos de uma teoria que adequa a justiça ou dê um papel importante à distribuição, então não falamos de utilitarismo. Pois este (uma vez que é uma ética teleológica), por definição, não é capaz de o fazer. Faz parte da definição de doutrina teleológica que esta defina o bem independentemente do justo, para em seguida definir o justo como a maximização do bem. Soma-se a isso o fato de tal doutrina (por definição) não poder incluir a distribuição na sua concepção de bem. Ora, já vimos que isso nos leva a aceitar que o utilitarismo nem respeita os direitos dos indivíduos nem dá valor ao modo no qual os bens são distribuídos; ou seja, que o utilitarismo é insensível às questões de justiça. Assim, o argumento de Rawls seria como segue.
Agora podemos entender por que Esteves se surpreende com o fato de tal argumento ter angariado tanto apoio. Para mostrar a insensibilidade do utilitarismo a certas questões, Rawls apela a uma definição evidentemente tendenciosa de teleologismo que, sem dúvida alguma, não é a corrente. Nesse ponto, Rawls está incorrendo no que é conhecido como falácia da definição, a insistência em definir um termo de modo que nos favoreça na discussão. Para citar os exemplos de Blackburn (1996: 140), isso pode ocorrer quando um libertário insiste em definir “imposto” como “roubo estatal”, ou um opositor do aborto insiste em definir “feto” como “pessoa que ainda não nasceu”. Ao definir “feto” dessa maneira, poderíamos sugerir que o aborto é um crime, e que isso segue-se da própria definição de “feto” e “aborto”. Do mesmo modo, ao definir o teleologismo do modo incomum que Rawls define, já estamos decidindo a questão contra o utilitarismo (que é uma doutrina teleológica). Após essa definição, fica mesmo fácil concluir que o utilitarismo é insensível aos direitos ou à distribuição.
Para piorar a situação de Rawls, essa sua (ou de Frankena, a quem ele a atribui) definição de teleologia, ao invés de mostrar que os utilitaristas são insensíveis às questões de justiça, acaba levando à surpreendente conclusão de que a maior parte dos utilitaristas não foram realmente teleologistas e, conseqüentemente, não foram utilitaristas. Poderíamos formular o seguinte argumento:
Assim, é provável que Rawls reduza o número de utilitaristas que realmente existiram a quase zero. Na verdade, esses filósofos sempre teriam feito parte dos deontologistas, assim como Kant. Mas, seguindo Esteves (2002: 91), se os utilitaristas serão denominados teleologistas ou deontologistas devido a uma definição arbitrariamente feita por Rawls é algo irrelevante para os defensores dessa doutrina.
Portanto, se por um lado a crítica de Rawls mencionada acima consiste numa falácia já conhecida, por outro, sequer é uma falácia relevante para refutar o utilitarismo. E assim, termino o primeiro ponto deste artigo. Até aqui, talvez com uma ou outra diferença que possa ser importante, segui um argumento oferecido por Esteves. No que segue, passo à objeção mais importante de Rawls, aquela que Esteves acredita ser bem-sucedida.
Se alguém me perguntasse quais são os dois momentos mais importantes da história do utilitarismo, eu diria que o primeiro foi o seu surgimento como uma teoria bem trabalhada, provavelmente com Jeremy Bentham, e o segundo foi a publicação, em Uma Teoria da Justiça, do seguinte trecho:
“Cada membro da sociedade é visto como detentor de uma inviolabilidade fundamentada na justiça ou, como dizem alguns, no direito natural, a qual nem mesmo o bem-estar de todos os outros pode se sobrepor”. (Rawls 1971: 34)
A idéia apresentada neste trecho pode ser sempre um último recurso ao defensor de Rawls, e com certeza é uma dor de cabeça para os utilitaristas. No que segue, tento torná-la clara e, em seguida, refutá-la.
Como vimos anteriormente, o utilitarismo é uma doutrina conseqüencialista. Isso significa que o valor moral de uma ação é inteiramente dependente do valor moral das suas conseqüências. Em termos políticos, isso quer dizer que o valor de um ordenamento social ou instituição será dado com base nos seus resultados. Se o resultado obtido for a maior felicidade (no caso do utilitarismo), então o ordenamento estará justificado; se for o contrário dela, não o estará. Do outro lado temos o deontologismo. Em termos políticos, um deontologista alegará que existem ainda outros critérios, que não as conseqüências, pelos quais podemos ajuizar se um ordenamento social se justifica ou não. Dentre esses critérios é comum encontrar as mais variadas espécies de direitos. Obviamente, um conseqüencialista também pode apelar a direitos, mas estes estarão, em última instância, justificados apenas em função das conseqüências associadas à sua posse. Por exemplo, tanto o conseqüencialista como o deontologista podem considerar que temos direito à integridade física e que a violação desse direito é um crime. Mas o conseqüencialista o fará porque isso produz uma conseqüência qualquer (no caso do utilitarismo, um mundo mais feliz), e o deontologista pode alegar que esse direito é um dado básico (que não precisa de justificação) ou é justificado noutro direito, ou de algum modo que não fazendo apelo a um fim.6
Como já foi observado, no caso do utilitarismo a conseqüência almejada é a felicidade. Qualquer ordenamento social ou qualquer instituição vai sempre ser julgada pela sua produção de felicidade. Tudo o mais tem apenas valor instrumental, ou seja, valor enquanto meio para se alcançar a felicidade. À primeira vista, isso significa que tudo pode ser sacrificado para a obtenção desse fim. Até mesmo as liberdades ou direitos que consideramos mais básicos dos seres humanos poderiam ser sacrificados. Se um dia chegarmos à conclusão de que o ordenamento social que mais se aproxima do ideal de felicidade é a ditadura militar, então teremos de adotá-la. Repetindo, teremos de adotá-la mesmo que imponha uma barreira aos nossos direitos ou a liberdades mais básicas, como por exemplo, o direito de voto e a liberdade de expressão e pensamento. No trecho citado, Rawls está fazendo uma objeção deste tipo ao utilitarismo. Tal doutrina não é capaz de reconhecer que existem direitos e liberdades invioláveis, os quais nem mesmo a maior felicidade ou bem-estar podem violar. Não negociamos os nossos direitos em troca de bem-estar. Rawls critica o aspecto conseqüencialista do utilitarismo; Rawls é um deontologista. Em poucas palavras, o utilitarismo não reconhece a prioridade da justiça sobre o bem.
Esta parece a objeção mais influente ao utilitarismo, influenciando um conjunto considerável de pensadores a falar de justiça como garantindo direitos e liberdades invioláveis. Do libertarianismo de Nozick (1974) à igualdade de recursos de Dworkin (2000) ou à igualdade de capacidades, de Amartya Sen (1992), todos parecem considerar um dado básico que a justiça (seja ela o que for) nos garante liberdades e direitos invioláveis. Esta é também a objeção que Esteves acredita ser bem-sucedida contra o utilitarismo (2002: 95). De fato, temos toda uma geração de pensadores influenciados por esta idéia de prioridade da justiça. Antes de tentar responder-lhe, devo chamar a atenção para alguns detalhes.
É importante evitar confusões. A objeção não implica que em qualquer caso onde haja uma maioria feliz em massacrar uma minoria, essa maioria poderá fazê-lo. Não implica que dez pessoas nazistas podem, segundo o utilitarista, massacrar um judeu, apenas porque haverá mais pessoas felizes (os dez nazistas) do que infelizes (o judeu) se o fizerem. Também não implica que o utilitarista não precise pagar o dinheiro que você lhe emprestou porque o doará à UNICEF, maximizando, assim, a felicidade do mundo. Alguns autores, como Will Kymlicka (1990: 34-38) colocam a objeção dessa forma. Entretanto, como vimos, é a princípio concebível que o utilitarista consiga justificar um ordenamento social justo, onde os direitos das pessoas são reconhecidos e também o valor da distribuição. Além disso, o utilitarismo pode perfeitamente reconhecer o valor social da instituição da promessa, alegando que devemos manter as nossas promessas (pagar as dívidas) porque isso promoverá a felicidade a longo prazo. O próprio Kymlicka acaba reconhecendo essas possíveis repostas. Mas nesse momento alega que o que estava em questão o tempo todo era apenas que o utilitarismo não consegue reconhecer o valor final dos direitos, e não que implica a violação sistemática e freqüente dos nossos direitos.
Estas são duas coisas diferentes. Uma coisa é alegar que a justificação de qualquer direito é utilitarista e que só a felicidade tem valor final, outra é alegar que os nossos direitos podem ser violados a qualquer momento. A estratégia de Kymlicka leva o leitor a confundir as duas coisas. Primeiro, expõe um conjunto de casos onde o utilitarismo levaria a conseqüências bizarras, casos de racismo, homofobia, quebra de promessas, etc. Depois, menciona uma resposta a tais casos, mas responde que o tempo todo a questão importante foi outra. Nesse momento, o leitor já ouviu tantas vezes a palavra “utilitarismo” associada às idéias de discriminação, homofobia, racismo, etc., que possivelmente sequer prestará atenção à declaração de que a questão era outra.
A verdadeira objeção ao utilitarismo aqui é o fato de este só reconhecer o valor instrumental dos direitos e liberdades das pessoas, reconhecê-los como um meio para a felicidade. Por exemplo, se adotarmos uma concepção objetivista da felicidade, então poderemos justificar que as instituições políticas ou ordenamentos sociais garantam certas liberdades às pessoas porque a autonomia é um bem, é uma parte constitutiva da felicidade. Nesta perspectiva, garantir certas liberdades estaria justificado porque ajuda aos seres humanos a desenvolver a sua autonomia. Note-se que as liberdades estão justificadas apenas como meio para um fim determinado (a autonomia). O problema aqui é a palavra “meio”: a subordinação dos direitos ou liberdades à felicidade. Feitas estas observações, podemos passar aos pormenores da objeção.
A primeira coisa a fazer notar na objeção de Rawls é que há pelo menos dois sentidos em que podemos entender que o justo tem prioridade ou primazia sobre o bem ou a felicidade.7 Um primeiro modo de entender seria alegar que justiça tem prioridade ou primazia sobre o bem no sentido de que, sem ela, não é possível alcançar a felicidade. Nessa perspectiva, a justiça seria uma condição necessária para a felicidade, de modo que um determinado ordenamento social só promoverá a maior felicidade se for justo. Este sentido de “prioridade” não pode ser usado para refutar o utilitarismo. Isto porque é perfeitamente consistente com a alegação de que a posse de direitos (garantidos pela justiça) é justificada apenas como um meio adequado para a maior felicidade. Nesta interpretação, poderíamos perfeitamente falar de “prioridade da justiça” e, ao mesmo tempo, do seu valor instrumental. Por exemplo, pode-se alegar que o direito à integridade física é justificado pelo fato de esta ser uma condição necessária para que tenhamos uma vida feliz. A sociedade deve ser justa, garantir direitos, apenas porque isso promove a felicidade. Neste caso, como requer o utilitarismo, onde a justiça não for mais uma condição para a felicidade, não terá mais valor.
Rawls deve ter outro sentido de prioridade, que apele ao valor final da justiça. A justiça tem prioridade sobre o bem no sentido de ser um fim em si, e não um meio para alcançar um bem qualquer. Mas isto não é suficiente. Afinal, podemos considerar tanto a justiça como a felicidade fins em si e, nesse caso, quando houver conflito entre eles, não teremos como decidir (a menos que os hierarquizemos). Rawls não iria gostar desta conseqüência, pois estava interessado em garantir a inviolabilidade dos nossos direitos. Assim, resta-lhe alegar que a justiça tem prioridade no sentido em que é um fim em si e, em caso de conflito entre o justo e o bom, devemos optar pelo justo. A partir de agora, usarei a palavra “prioridade” neste sentido. Com isso explicamos a razão pela qual nenhum de nossos direitos mais básicos pode ser negociado em troca da obtenção de um bem. Não podemos abrir mão dos nossos direitos e liberdades em troca de outros benefícios que uma ditadura militar ofereça. Repetindo, os direitos são invioláveis, são fundados na justiça, que tem prioridade sobre o bem. No que segue, tento refutar esta afirmação com base em dois exemplos. Vejamos o primeiro.
Primeiro exemplo: João sempre foi uma boa pessoa, no auge dos seus dezesseis anos estava empenhado em várias atividades beneficentes e tentava jamais desrespeitar os direitos dos outros. Entretanto, naquela sexta-feira, João apareceria no lugar errado e na hora errada: na padaria, logo pela manhã. Ao chegar lá, é seqüestrado por terroristas fanáticos e extremamente inteligentes que pretendem aniquilar a humanidade. Esses terroristas prendem um dispositivo no corpo de João. Esse dispositivo acionará, em algumas horas, uma bomba feita com tecnologia avançadíssima, capaz de destruir todo o planeta. Essa bomba é quase indestrutível e está escondida em algum lugar. Eu disse “quase indestrutível”, porque só há uma maneira de destruí-la. Qual? Explodindo o coração de João. Sim! Para parar a bomba, teremos de explodir o coração de João, pois o dispositivo que a aciona só é destruído se explodirmos o coração dele, e a bomba só é desativada se destruirmos o dispositivo. Ocorre, entretanto, que João já foi encontrado e está no poder do estado, preso em uma das bases da polícia federal. Agora, quem tem de decidir o que fazer com ele é o estado, e esse é um estado rawlsiano, onde as pessoas têm direitos invioláveis.
É claro que um desses direitos é o direito à vida. O dilema no qual nos encontramos é o seguinte: por um lado, se a decisão for pela morte de João (seja por votação, por decisão do presidente, etc.) estamos violando o seu direito à vida. Por outro, se o deixarmos viver, respeitando seus direitos, todos iremos morrer8 e alguns ainda sofrerão muito durante a explosão. E agora? Terá João um direito inviolável à vida? Parece que não. Penso ser difícil sustentar, nesse caso, que devemos proteger os direitos de João, ou defender que o estado deva manter o seu direito à vida. Mas se devemos violar os seus direitos, então por que razão devemos?9
O conseqüencialista utilitarista logo diria que a vida é um bem, ou qualquer coisa do tipo. Seja como for, alegaria que o mal gerado pela violação do direito de João à vida é infinitamente inferior ao mal gerado pelo respeito ao seu direito. Numa situação como esta, deveríamos escolher a opção que promove o mínimo de infelicidade possível. Assim, devemos tirar-lhe a vida. Entretanto, segundo esta perspectiva, o direito do João não é fundado na prioridade da justiça, mas na utilidade, de modo que a justiça não tem prioridade sobre o bem.
O deontologista também poderia ter uma resposta aqui. Ele poderia dizer que o fato de que respeitar o direito de João implicaria a morte de toda a espécie, inclusive a do João (supomos que assim seja), nos autoriza a violar seus direitos. Isto porque seria melhor desrespeitar o direito que João tem à vida do que o direito que toda a humanidade tem. É como se fizéssemos um cálculo com direitos e chegássemos à conclusão de que entre duas opções, a melhor é aquela que respeita o direito de mais pessoas.
Em primeiro lugar, essa resposta é um tanto estranha. Uma das motivações do defensor da inviolabilidade de direitos é que os direitos não podem ser negociados. Mas agora estamos falando em negociar o direito do João. É dubitável que um deontologista pudesse aceitar esta resposta. Além disso, infelizmente, esta resposta não funciona, pois entre as duas opções, aquela que respeita o direito de mais pessoas é a que preza pela vida de João, permitindo a morte de todos. Se eu escolher respeitar o direito de João à vida, todos morreremos, mas eu nada tenho a ver com isso. Não fui eu quem colocou o dispositivo que aciona a bomba no corpo de João: foram os terroristas. Eu não posso ser culpado pela aniquilação da espécie. Seguindo um exemplo de Gerry Wallace, se eu fizesse uma lista com os modos de destruir o mundo, provavelmente não deveria incluir na lista “recusar-me a matar o João no exemplo acima”. Nessa perspectiva, se eu respeito o direito de João à vida, não violo o direito de mais ninguém. Portanto, tirar a vida do João implica violar o direito de uma pessoa, mas não tirá-la implica não violar direito algum. Logo, o defensor da inviolabilidade de direitos fundada na prioridade da justiça deve aceitar a destruição do planeta. A menos que aceitemos essa destruição, a resposta utilitarista é mais plausível.
Outra possível escapatória para o defensor da inviolabilidade dos direitos é a estratégia do duplo efeito. Ele pode alegar que, ao matar João, não tem a intenção de violar o seu direito à vida. O objetivo fundamental é salvar a vida das outras pessoas, e não tirar a vida do João. O fato de o João morrer é apenas um efeito previsto da ação, mas não é o objetivo que a orienta. Uma vez que a nossa intenção é boa, a nossa ação não será moralmente má. Sem entrar em detalhes sobre essa estratégia, suponha que tudo isso é plausível. Agora se pergunte o seguinte: em que ajudaria isso o defensor da inviolabilidade de direitos? Caso a estratégia do duplo efeito funcione, permitirá ao deontologista alegar que em alguns casos é possível violar o direito à vida. Mas isso é muito diferente de defender a inviolabilidade de direitos. O fato de as nossas intenções serem boas (e até mesmo de a nossa ação ser moralmente correta) não mudará o fato de o direito de João à vida ter sido violado. A estratégia do duplo efeito tenta dar conta de casos em que um ato é moralmente obrigatório e, ao mesmo tempo, tem conseqüências más. Nesse caso, as conseqüências más foram a morte de João, e a violação do seu direito à vida. Essas conseqüências continuam a existir, apelemos ou não ao duplo efeito. Conseqüentemente, se a motivação de Rawls era manter a inviolabilidade de direitos, não poderá apelar ao duplo efeito.
Todavia, para propósitos de argumentação, concederei ao deontologista que seja possível encontrar um meio de considerar que o direito de todas as outras pessoas está sendo violado quando não matamos o João. Desse modo, concederei que seja possível justificar que podemos violar o direito do João à vida sem ser inconsistente com a tese da inviolabilidade dos direitos. Ele poderia apelar para casos de conflitos de direitos ou de deveres. Casos onde não teríamos como agir respeitando o direito de todos e, conseqüentemente, seríamos obrigados a violar algum. Pensando nessa possibilidade é que ofereço um segundo exemplo.
Segundo exemplo: Já pensamos em terroristas, pensemos agora em astronautas. Novamente, imaginemos que os seres humanos vivem num estado rawlsiano, organizado de modo a garantir direitos e liberdades invioláveis. Esses direitos fundam-se na justiça e, uma vez que a justiça tem prioridade sobre o bem, não podem ser violados por um bem maior. O estado rawlsiano também está evoluidíssimo tecnologicamente e prepara-se para mandar, pela primeira vez, um grupo de astronautas para um planeta onde cientistas desconfiam fortemente que haja vida. Chamemos-lhe planeta X. Após alguns anos de viagem, os astronautas chegam lá e, conforme se imaginava, encontram vida. Dentre todos os seres que vivem lá, uma espécie é a que mais chama a atenção, uma que é absurdamente parecida com os humanos. Braços, pernas, feições, e até mesmo demonstravam, de vez em quando, emoções. Além disso, devido a alguns dados arqueológicos coletados pelos astronautas, poderíamos dizer que aqueles seres tinham uma história de evolução tão longa quanto a nossa. Emitiam também sons que pareciam ter significados, embora fosse difícil de saber ao certo, devido à condição em que se encontravam. Que condição é essa? Encontravam-se no que Hobbes chamou estado de natureza.
O estado de natureza, de Hobbes, é uma situação em que as pessoas vivem sem um estado regulador ou protetor, sem qualquer instituição reconhecida e, portanto, sem controle algum, nem policiamento nem algo do tipo. Neste estado, vale a lei do cada um por si. Ali, “todo homem é inimigo de todo homem”, e a única segurança que temos é dada a cada um por “sua própria força e pela sua própria intervenção”. E, o que Hobbes pensa ser pior de tudo, os homens nesse estado são assombrados por “um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta”.10 Esse é o estado no qual os homens do planeta X se encontram.
Ao retornarem, os astronautas relataram o que viram, dando muita ênfase aos nativos. Os filósofos se empenhavam em entender por que, mesmo tendo uma história tão longa quanto a nossa, os nativos do planeta X não conseguiram se organizar em numa sociedade bem ordenada. Também se perguntaram se houve algum tempo em que estivemos no estado de natureza no qual eles se encontram; e se perguntaram muitas outras coisas. Enquanto isso, os astronautas rodavam o mundo inteiro, dando sucessivas entrevistas e palestras. O que não sabiam é que no planeta X tinham contraído um vírus terrível e incurável. Esse vírus, que já se havia espalhado por quase toda Terra, torna os homens intolerantes a ordenamentos sociais minimamente justos. O fato de os homens fazerem parte de um ordenamento social justo, unido à presença do vírus no organismo, é capaz de gerar dores incalculáveis. Simplesmente ficamos com o corpo completamente paralisado, sofrendo a agonia da dor por muitas semanas ou meses, sem sequer ter condições de tirar a própria vida. Após esses longuíssimos períodos sentindo dor nós voltamos (todos ao mesmo tempo?) ao estado normal, sem qualquer efeito colateral. Ficamos assim por algumas horas ou dias, onde podemos voltar a levar nossas vidas normais e respeitar as leis de nosso estado; e depois tudo começa novamente. Uma vez que esses efeitos perversos do vírus só ocorrem quando fazemos parte de um ordenamento social justo, basta que desfaçamos esse ordenamento (ou pelo menos nos retiremos dele) para que esses efeitos não ocorram mais.
Já pode ter ocorrido a alguém que foi justamente isso que as pessoas do planeta X fizeram. Destruíram a sua sociedade, a sua organização social, em troca de um estado de natureza onde as suas vidas são solitárias e miseráveis. A razão deles é que mesmo uma situação de guerra de todos contra todos é melhor e oferece menos perspectivas de dor e sofrimento do que uma em que sofro por meses (anos) apenas por integrar uma organização justa por alguns dias (horas). A pergunta fundamental aqui é: o que devemos nós, terráqueos, fazer nessa situação? Será que podemos ou devemos abandonar um estado rawlsiano e com ele, qualquer pretensão à inviolabilidade de direitos, em troca de um estado de guerra de todos contra todos, meramente por razões utilitaristas (como, por exemplo, evitar uma grande soma de sofrimento)? A minha sugestão é que sim. A presença de um mal tão grande na organização rawlsiana anula qualquer valor que a posse de direitos teria. É melhor viver na insegurança de um estado de natureza hobbesiano, lutando para sobreviver e sem garantia alguma de direitos, mas com alguma perspectiva de termos pelo menos um grau menor de dor, do que viver sob a dor num estado justo. Se eu estou certo em dizer que as pessoas teriam razões para escolher um estado de natureza hobbesiano (e que fariam isso por razões conseqüencialistas), então, nesse caso, no conflito entre o bem e o justo, perde o justo.11
Por fim, pense no que Rawls diria. Se aceitarmos a prioridade do justo sobre o bem (no sentido acima mencionado), teremos de aceitar que, nesse caso de conflito, devemos escolher o justo. Mas isso significaria escolher uma vida de mais dor e sofrimento. Penso que isso é extremamente implausível. E se é implausível, é porque estamos raciocinando de modo utilitarista. Preferimos o estado de natureza porque queremos evitar a infelicidade maior que a outra alternativa promoveria.
Há algumas coisas importantes que gostaria de observar. Em primeiro lugar, não defendi que qualquer pessoa pode ter os seus direitos violados em qualquer momento em que uma pequena maioria ache relevante. Na verdade, defendo que as pessoas têm direitos quase invioláveis, ou seja, violáveis apenas em circunstâncias extremas. Penso que o utilitarismo nos dá uma boa base para a justificação de tais direitos. Alguém pode duvidar até mesmo que o utilitarismo possa acomodar ou justificar direitos quase invioláveis. Mas o que não pode é tomar como óbvio que o utilitarista aceita que qualquer direito possa ser violado pelo prazer sórdido de uma maioria.
Em segundo lugar, se os exemplos apresentados fazem algum sentido, então pode ser que tenham deixado um problema em aberto. Por um lado, venho admitindo que o justo não pode ter prioridade sobre o bem. Por outro, penso que somente em casos extremos podemos (ou o estado pode) violar os direitos das pessoas. Como determinar que casos podem ser classificados como extremos? Até que ponto podemos chegar antes de permitir que os direitos sejam violados? Há tentativas de respostas utilitaristas a essas perguntas (Costa 2002: 171), que apelam à capacidade da doutrina utilitarista para justificar a adoção de regras gerais de ação e explicitam os casos em que podemos violá-las. Mas não conheço tentativas deontológicas (admitindo que possa haver deontologismo sem regras, direitos ou liberdades invioláveis). Seja como for, não tenho a pretensão de resolver esse problema aqui.
Em terceiro lugar, deve-se ter em mente que talvez alguém que deseja muito considerar a justiça um fim em si, ainda tenha recursos. Se os meus exemplos forem bem-sucedidos, então apenas mostram que os direitos não são invioláveis, não têm uma inviolabilidade fundada na prioridade da justiça. Afinal, nos exemplos temos casos onde devem ser violados em nome de considerações de bem-estar ou felicidade. Entretanto, se admitirmos que a prioridade do justo sobre o bem era a maior motivação para admitirmos o justo como um fim em si, então essa motivação já não existe. Além disso, ao postular o justo como um fim em si, estaremos postulando dois fins: o bem e o justo. E não teremos critério para decidir conflitos entre eles. Continua sendo uma vantagem do utilitarismo o fato de nos fornecer um critério por meio do qual podemos avaliar ou decidir questões relativas à justiça.
Em quarto e último lugar, a mesma vantagem apontada acima já foi e provavelmente continuará sendo por algum tempo tratada como um defeito. Como já afirmei, pode-se tratar o utilitarismo como uma doutrina que permite e defende a violação de qualquer direito de qualquer pessoa, desde que tenha uma maioria qualquer que sinta prazer com isso. Nesse sentido, o utilitarismo não seria muito diferente do nazismo. Aqueles que insistem em tratar o utilitarismo assim, podem ver o problema colocado pelos exemplos de forma diferente. Podem pensar que por um lado, não podemos admitir que os direitos são invioláveis no sentido de Rawls, mas por outro, não podemos justificar a sua quase inviolabilidade com base nas conseqüências utilitaristas. Assim, teríamos que encontrar outros meios de justificar que as pessoas tenham direitos quase invioláveis.12 Ou quem sabe podemos tomar esses direitos quase invioláveis como autojustificados.
Em conclusão: A estrutura da minha argumentação foi a seguinte. Primeiro, defendi, seguindo Esteves, que um dos argumentos de Rawls é falacioso, e por isso é irrelevante. Em seguida, argumentei que o sentido de prioridade da justiça que Rawls precisa para refutar o utilitarismo nos leva a aceitar conseqüências no mínimo estranhas. Como, por exemplo, a destruição do planeta, no exemplo de João. Depois, com o segundo exemplo, forneci um caso onde rejeitaríamos um estado rawlsiano devido a razões utilitaristas. Um caso onde as razões utilitaristas nos levam a abrir mão do justo. Por fim, admiti que embora não haja direitos invioláveis, ainda resta saber quando um direito pode ser violado. Filósofos que concordam quanto ao primeiro ponto podem discordar quanto ao segundo. Esse problema ficou em aberto. Seja como for, espero ter mostrado que o principal pressuposto de Rawls, o da prioridade do justo sobre o bem, é falso. Resta saber agora se ainda teremos um modo de justificar direitos que não seja utilitarista, ou se, no fim, só nos resta o utilitarismo.
Sagid Salles