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Crítica
5 de Março de 2020   Filosofia da ciência

Ciência e religião

Samir Okasha
Tradução de Gustavo Coelho

A tensão entre ciência e religião é antiga e está bem documentada. Talvez o exemplo mais conhecido seja o embate entre Galileu e a Igreja Católica. Em 1633, a Inquisição forçou Galileu a abandonar publicamente suas teses copernicanas, e o condenou a passar os últimos anos de sua vida em prisão domiciliar, em Florença. A Igreja se opôs à teoria de Copérnico porque contradizia as Escrituras Sagradas, é claro. Em tempos recentes, o principal embate entre ciência e religião é a disputa entre darwinistas e criacionistas nos Estados Unidos, que será nosso foco aqui.

A oposição teológica à teoria da evolução de Darwin não é nada de novo. Quando a Origem das Espécies foi publicada em 1859, atraiu imediatamente críticas de membros da Igreja na Inglaterra. A razão é óbvia: a teoria de Darwin sustenta que todas as espécies atuais, incluindo os seres humanos, descenderam de ancestrais em comum ao longo de um vasto período de tempo. Essa teoria claramente contradiz o Livro do Gênesis, que diz que Deus criou todos os seres vivos em um período de seis dias. Então parece não haver meio termo: ou você acredita em Darwin ou você acredita na Bíblia, mas não em ambos. No entanto, muitos seguidores comprometidos de Darwin encontraram maneiras de reconciliar sua fé cristã com sua crença na evolução — incluindo vários eminentes biólogos. Uma maneira é simplesmente não pensar muito no choque entre as duas coisas. Outra, intelectualmente mais honesta, é argumentar que o Livro do Gênesis não deveria ser interpretado literalmente — deveria ser tomado como alegórico, ou simbólico. Pois, afinal de contas, a teoria de Darwin é perfeitamente compatível com a existência de Deus, e com muitos outros dogmas do cristianismo. É apenas a verdade literal da estória bíblica da criação que o darwinismo descarta. Portanto, uma versão apropriadamente atenuada do cristianismo pode se mostrar compatível com o darwinismo.

Entretanto, nos Estados Unidos, particularmente nos estados do sul, muitos protestantes evangélicos não se mostraram dispostos a ajustar as suas crenças religiosas para que se harmonizassem com as descobertas científicas. Insistem que a versão bíblica da criação é literalmente verdadeira, e que, portanto, a teoria da evolução de Darwin está completamente errada. Essa opinião é conhecida como “criacionismo”, e é aceita por cerca de 40% da população adulta dos Estados Unidos, uma proporção muito superior à da Grã-Bretanha e da Europa. O criacionismo é uma força política poderosa, e exerceu uma influência considerável sobre o ensino de biologia nas escolas norte-americanas, para desagrado dos cientistas. No famoso “julgamento do macaco” dos anos 1920, um professor do Tennessee estava convicto de que devia ensinar a teoria da evolução aos seus alunos, violando uma lei estadual. (A lei foi finalmente anulada pela Supremo Tribunal em 1967.) Em parte por causa do “julgamento do macaco”, o tema da evolução foi completamente omitido do currículo das escolas norte-americanas por muitas décadas. Gerações de adultos norte-americanos cresceram sem saber de Darwin.

Essa situação começou a mudar nos anos 1960, gerando uma nova rodada de batalhas entre criacionistas e darwinistas, e dando origem ao movimento chamado “ciência da criação”. Os criacionistas querem que os estudantes das escolas norte-americanas aprendam a estória bíblica da criação, exatamente como aparece no Livro do Gênesis. Mas a Constituição norte-americana proíbe o ensino da religião nas escolas públicas. O conceito de ciência da criação foi concebido para contornar isso. Os seus inventores argumentaram que a versão bíblica da criação fornece uma explicação científica melhor da vida na Terra do que a teoria da evolução de Darwin. Portanto, ensinar a criação bíblica não viola a proibição constitucional, pois conta como ciência, e não como religião! Por todo o extremo sul, foram feitos pedidos para que a ciência da criação fosse ensinada nas aulas de biologia, e esses pedidos foram, com muita frequência, atendidos. Em 1981, o estado do Arkansas aprovou uma lei que pedia que os professores de biologia dedicassem “o mesmo tempo” à evolução e à ciência da criação, e outros estados seguiram o mesmo caminho. Embora a lei do Arkansas tenha sido declarada inconstitucional por um juiz federal em 1982, o apelo por “mesmo tempo” continua sendo ouvido hoje em dia. É frequentemente apresentado como um compromisso justo — diante de dois conjuntos conflitantes de crenças, o que poderia ser mais justo do que dar o mesmo tempo a cada um? As pesquisas de opinião mostram que uma maioria esmagadora de norte-americanos adultos concorda: querem que a ciência da criação seja ensinada juntamente com a teoria da evolução nas escolas públicas.

No entanto, virtualmente todos os biólogos profissionais consideram a ciência da criação uma farsa — uma tentativa desonesta e equivocada de promover crenças religiosas sob uma roupagem científica, com consequências educativas extremamente nocivas. Para rebater essa oposição, os cientistas da criação têm-se esforçado bastante para desqualificar o darwinismo. Argumentam que a evidência favorável ao darwinismo é pouco conclusiva, de modo que o darwinismo não é um fato estabelecido, mas apenas uma teoria. Além disso, se focaram em várias disputas internas entre darwinistas, e selecionaram algumas observações pouco cuidadosas de alguns biólogos individuais, em uma tentativa de mostrar que discordar da teoria da evolução é cientificamente respeitável. Concluem que, já que o darwinismo é “só uma teoria”, os estudantes deveriam ser expostos a outras teorias também — como a teoria criacionista de que Deus criou o mundo em seis dias.

Em um sentido, os criacionistas estão perfeitamente corretos quando dizem que o darwinismo é “só uma teoria”, e não um fato provado. Como vimos nos Capítulo 2, nunca é possível provar que uma teoria científica é verdadeira, no sentido estrito de prova, pois a inferência dos dados para a teoria é invariavelmente não-dedutiva. Mas esse é um ponto geral — não tem nada a ver com a teoria da evolução em si. Do mesmo modo, poderíamos argumentar que é “só uma teoria” que a Terra se move em torno do Sol, ou que a água é H2O, ou que os objetos sem apoio tendem a cair, de modo que os estudantes deveriam ser apresentados a teorias alternativas em cada caso. Porém, os cientistas da criação não argumentam assim. Não são céticos quanto à ciência como um todo, mas apenas quanto à teoria da evolução. Então, para que a posição deles seja defensável, não pode consistir simplesmente no fato de que os dados de que dispomos não garantem a verdade da teoria de Darwin. Pois o mesmo é verdadeiro de qualquer teoria científica, e, na verdade, de muitas crenças do senso comum.

Para ser justo com os cientistas da criação, eles apresentam argumentos que visam, especificamente, a teoria da evolução. Um dos seus argumentos favoritos é que o registro de fósseis é muito desigual, particularmente quando se trata dos supostos ancestrais do Homo sapiens. Há certa verdade nessa acusação. Os evolucionistas há muito tempo se intrigam com lacunas nos registros dos fósseis. Uma dificuldade persistente é a de saber por que há tão poucos “fósseis de transição” — fósseis de criaturas intermediárias entre espécies. Se as espécies posteriores evoluíram das anteriores, como afirma a teoria de Darwin, não deveríamos esperar que os fósseis de transição fossem bastante comuns? Os criacionistas tomam dificuldades desse tipo como prova de que a teoria de Darwin está simplesmente errada. Porém, os argumentos criacionistas não são convincentes, apesar das reais dificuldades envolvidas em se compreender o registro dos fósseis. Pois os fósseis não são a única fonte, e nem mesmo a principal fonte, de evidência a favor da teoria da evolução, como os criacionistas saberiam se tivessem lido A Origem das Espécies. A anatomia comparativa é outra importante fonte de evidência, como o são a embriologia, a biogeografia e a genética. Considere-se, por exemplo, o fato de os seres humanos e os chimpanzés compartilharem 98% de seu DNA. Este, e milhares de fatos similares, fazem perfeito sentido se a teoria da evolução for verdadeira, e, portanto, constituem uma excelente evidência para a teoria. É claro, os cientistas da criação também podem explicar esses fatos. Podem afirmar que Deus decidiu criar os seres humanos e os chimpanzés geneticamente semelhantes, pelas Suas próprias razões. Contudo, a possibilidade de dar “explicações” desse tipo apenas aponta, realmente, para o fato de os dados não implicarem logicamente a teoria de Darwin. Como vimos, o mesmo acontece com qualquer teoria científica. Os criacionistas meramente enfatizaram o ponto metodológico geral de que os dados sempre podem ser explicados de diversas maneiras. Esse ponto é verdadeiro, mas não mostra nada de especial sobre o darwinismo.

Embora os argumentos dos cientistas da criação sejam todos fracos, a controvérsia entre darwinistas e criacionistas levanta, de fato, questões importantes sobre a educação científica. Como deverá ser tratado, num sistema educativo secular, o conflito entre a ciência e a fé? Quem deve determinar o conteúdo das aulas de ciência nas escolas? Quem paga impostos deve ser ouvido quando se trata de decidir aquilo que será ensinado nas escolas públicas? Os pais que não querem que os seus filhos tenham aulas sobre evolução, ou sobre algum outro assunto científico, devem ser ignorados pelo Estado? Questões de políticas públicas como essas normalmente recebem pouca discussão, mas o choque entre darwinistas e criacionistas as trouxe para a pauta.

Samir Okasha
Philosophy of Science: A Very Short Introduction (Oxford University Press, 2002), pp. 125–129
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ISSN 1749-8457