De uma forma geral um criacionista é uma pessoa que acredita num deus, criador absoluto de tudo o que existe no universo, a partir de nada, num acto de livre-arbítrio. Considera-se geralmente que esta divindade está num estado de permanente envolvência com a sua criação (é “imanente”), pronta a intervir se necessário, e sem o seu constante cuidado relativamente à obra esta deixaria de existir. Neste sentido, tanto cristãos, como judeus ou muçulmanos são criacionistas. Em geral, são considerados “teistas”, contrastando com os “deistas”, que acreditam na existência de um autor do desígnio que poderá ter criado ou não a matéria com a qual trabalha e que não interfere depois de concluído o acto de desígnio. Esta discussão centra-se num sentido mais restrito de criacionismo, o sentido que usualmente encontramos em escritos populares (sobretudo na América de hoje). Nestes escritos, entende-se por criacionismo a atitude que consiste em tomar a Bíblia, sobretudo os primeiros capítulos do Gênesis, como guias literalmente verdadeiros no que respeita à história do universo e à história da vida, incluindo a dos seres humanos, na terra (Numbers 1992).
Neste sentido mais restrito, o criacionismo implica várias crenças, incluindo a ideia de que decorreu pouco tempo desde o começo de todas as coisas (os “Criacionistas da Terra Jovem” pensam que o cálculo setecentista do arcebispo Ussher, que dá cerca de seis mil anos à terra, é uma boa estimativa); a ideia de que a criação decorreu em seis dias (há um debate sobre o significado de “dia” neste contexto, havendo quem insista num dia literal com vinte e quatro horas, sendo outros mais flexíveis); a ideia de que toda a vida é fruto da criação milagrosa, incluindo o Homo sapiens (deixando-se em aberto se Adão e Eva foram criados juntos ou se Eva veio depois para fazer companhia a Adão); a ideia de um dilúvio mundial algum tempo depois da criação inicial, em resultado do qual só sobreviveram alguns seres humanos e animais; e a ideia de outros acontecimentos, como a Torre de Babel e a transformação da mulher de Lot num monte de sal. Os criacionistas (neste sentido restrito) têm sido conhecidos como fundamentalistas ou literalistas bíblicos, e por vezes (sobretudo quando procuram defender as bases científicas das suas crenças) como criacionistas científicos. Os criacionistas actuais têm muitas vezes um grande entusiasmo por algo que é conhecido como desígnio inteligente. Todos os criacionistas se opõem firmemente às crenças evolucionistas, em particular as que resultam das ideias de Charles Darwin, tal como estas são apresentadas no seu livro A Origem das Espécies. Isto significa que os criacionistas se opõem ao facto da evolução, nomeadamente à ideia de que todos os organismos vivos e mortos são os produtos finais de um processo natural de evolução a partir de umas poucas formas, e talvez em última análise a partir de materiais inorgânicos. Isto significa também que os criacionistas se opõem à teoria da evolução de Darwin, nomeadamente à ideia de que a pressão da população conduz a uma luta pela sobrevivência; à ideia de que os organismos diferem entre si de modo aleatório em resultado de erros no material hereditário (a ideia de que há “mutações” nos “genes”); a ideia de que a luta e a variação conduzem a uma forma natural de selecção, sobrevivendo e reproduzindo-se alguns, ao passo que outros se extinguem; e à ideia de que a consequência final de tudo isto é a evolução, em direcção a organismos bem adaptados. Os seres vivos têm adaptações, como mãos e olhos, para os ajudar na luta pela sobrevivência.
Os criacionistas apresentam-se como os verdadeiros herdeiros e os autênticos e verdadeiros representantes do cristianismo tradicional. No entanto, esta pretensão não coincide historicamente com a verdade (Ruse 1988, 2001, 2003; Numbers 1992; McMullin 1985). A Bíblia desempenha uma papel importante na vida de qualquer cristão, mas a literaridade da Bíblia não desempenhou exclusivamente o papel central na teologia ou nas vidas dos cristãos. Na verdade, isso não aconteceu com a maioria dos cristãos (Turner 2002). A tradição, os ensinamentos e a autoridade da igreja sempre desempenharam maior influência para os católicos, assim como a religião natural — uma aproximação a Deus através da razão e da argumentação — que de há muito as situam em lugares de eleição, tanto para católicos como para protestantes. Em particular, os católicos, desde Santo Agostinho no século V d.C., e mesmo pensadores mais antigos como Orígenes, sempre reconheceram que a Bíblia deve ser interpretada alegórica ou metaforicamente em algumas das suas passagens. Santo Agostinho era particularmente sensível a esta posição, pois na sua juventude aderira ao maniqueismo, e como tal renegara a autenticidade e a relevância do Antigo Testamento enquanto meio para a salvação. Como Cristão, desde cedo tomou plena consciência dos problemas levantados pelo Génesis e de imediato ansiou por esclarecer os seus semelhantes contra os perigos de uma leitura ciosa e literalista.
Só após a reforma protestante é que o estatuto da Bíblia se tornou preponderante e central através dos grandes reformadores — especialmente Martinho Lutero e Calvino — que ressalvaram o ideal de uma proximidade às escrituras por reacção à tradição barroca da igreja católica. No entanto, mesmo eles não professavam uma leitura integralmente literalista da Bíblia. Lutero baseia toda a sua teologia na justificação da fé, mas apesar disso não se coíbe de se referir à epístola a São Tiago, onde se enfatiza o papel das boas acções e da boa vontade, como uma “epístola de palha”. Também Calvino perseguiu a necessidade de um Deus revelado aos leigos através das escrituras — e em especial aos antigos Judeus — mas tinha consciência do perigo de uma leitura demasiado literal e acrítica das escrituras. A facção radical da reforma sob a influência de Zwingli[1] sempre sublinhou a primazia da palavra divina sob a forma de um apelo directo ao coração e encontramos também hoje em dia representantes modernos desta postura, que se sentem desconfortáveis com uma abordagem demasiado bíblica da religião, como acontece com os quacres[2].
Só após os revivalismos que tiveram lugar nos séculos XVIII e XIX, tanto na América como no Reino Unido — revivalismos que criaram seitas como a dos metodistas — o integralismo literalista surgiu com preponderância no seio da comunidade religiosa. Este fenómeno teve um particular incremento após a Guerra Civil americana, tendo-se implantado sob a forma de variadas seitas evangélicas — em especial a dos baptistas — nos estados do sul (Numbers 1998). Passou a fazer parte integrante da própria definição da cultura destes estados, a cultura do sul, ao ponto de aprofundar através de uma teologia elaborada e convicta fracturas e divisões com os estados do norte. Devido a inúmeros factores, o criacionismo veio a ultrapassar as fronteiras do um simples fenómeno local do início do século XX. Em primeiro lugar, surgiram imediatamente tentativas sistemáticas de conciliação do conhecimento científico com o relato do Génesis. Neste aspecto, tiveram particular relevância os adventistas do Sétimo Dia e o canadiano George McCready Price, que apresentava razões teológicas para defender o literalismo, como, por exemplo, a crença de que o Sétimo Dia — o dia do descanso — tem literalmente vinte e quatro horas. (Igualmente importante para os adventistas e outros dispensionalistas é a crença de que o Dia do Juizo, o Armagedão, é o acontecimento paralelo ao dilúvio primordial e que equilibra as coisas.) Em segundo lugar, o sucesso da interdição do consumo de bebidas alcoólicas, empreendida pelos evangelistas e reforçando-lhes os argumentos, constitui fonte de entusiasmo para alargarem o seu campo de intervenção. Em terceiro lugar, a generalização da educação pública, onde as crianças estavam expostas ao evolucionismo, fomentou a reacção criacionista. Em quarto lugar, surgiram entretanto novas correntes evangélicas, em especial a do movimento Fundamentals que deu ao movimento literalista o seu nome. Por último, surgiu uma identificação da teoria da evolução — e em particular do darwinismo — com a faceta militarista do darwinismo Social, que supostamente justificava e era abraçada pelo comportamento político alemão durante a Primeira Grande Guerra (Larson 1997).
Esta batalha entre os evolucionistas e os “fundamentalistas” atingiu um clímax em meados dos anos vinte do século XX, em Dayton, no Tennessee. Um jovem professor de nome John Thomas foi judicialmente processado por ensinar nas suas aulas a teoria da evolução em claro desafio à lei estadual. Sendo processado judicialmente por um candidato tri-repetente às eleições presidenciais, William Jennings Bryan, e defendido por vários agnósticos de renome entre os quais o advogado Clarence Darrow, o seu julgamento apelidado então como o “Scopes Monkey Trial”, prendeu as atenções de todo o mundo. Esta polémica deveu-se em grande parte às reportagens inflamadas do jornalista H. L. Menken do Baltimore Sun que, num tom de farsa, descrevia como o advogado Darrow, impedido de apresentar qualquer prova científica, se viu obrigado a solicitar o testemunho do próprio acusador Bryan para defender a sua causa. No final, o professor Scopes foi declarado culpado e sujeito ao pagamento de uma multa de 100 dólares. Depois desta condenação, cujo próprio recurso por tecnicidade jurídica foi recusado, não chegou a haver mais processos ou perseguições, apesar de a lei estadual do Tennessee se ter mantido inalterada por mais quarenta anos.
Depois do julgamento do professor Scopes existe um consenso geral de que o movimento criacionista ultrapassou a fase de maior impacto e desde então tem vindo a decair. No entanto, os seus efeitos ainda se mantêm. Os editores de livros escolares foram progressivamente eliminado a teoria da evolução — especialmente o darwinismo — dos conteúdos e cada vez menos os alunos têm acesso a ela. Apesar das batalhas que os evolucionistas foram travando e ganho na opinião pública, na sala de aula as coisas pioraram. Este declínio começou por volta dos anos cinquenta. Na altura, com o lançamento do satélite Sputnik, os Russos demonstraram com grande eficácia a sua superioridade nas ciências espaciais (com as relevantes implicações no desencadear da Guerra Fria), e a América tomou consciência das deficiências do ensino da sua juventude. Por reacção, o país agiu num todo à procura de eficácia pelo forte incremento da produção de manuais escolares de ciência. Desta forma, e a partir da sala de aula, o Governo Federal propôs-se alterar o estado das coisas torneando o problema do controle educacional a nível de cada estado. Naturalmente, os novos livros escolares deram a devida ênfase à teoria da evolução, ao darwinismo, e em consequência a controvérsia criacionista veio de novo a inflamar-se. Parecia que as crianças estavam a aprender coisas desadequadas na escola e algo teria de ser feito.
Para os literalistas, havia ajuda oportuna à mão. Um académico bíblico, John C. Whitcomb, e um engenheiro hidráulico, Henry M. Morris, concordaram escrever em conjunto aquilo que seria a nova Bíblia para o movimento: Genesis Flood: The Biblical Record and its Scientific Implications (1961). Na linha tradicional dos primeiros autores, nomeadamente alguns originários do adventismo do Sétimo Dia, argumentaram que todas as letras e relatos da história bíblica da criação constantes nos capítulos do Génesis eram inteiramente sustentados pelo melhor da ciência moderna. Seis dias de vinte e quatro horas, organismos nascidos do nada, o aparecimento dos seres humanos e, algum tempo depois, um imenso dilúvio que dizimou a maior parte dos organismos da superfície da Terra, deixando as carcassas na lama, conforme as águas retrocederam. Simultaneamente, Whitcomb e Morris argumentaram que as afirmações da teoria da evolução não tinham qualquer fundamento. Introduziram (ou recuperaram) uma série de argumentos presentes geralmente no repertório criacionista contra a evolução.
Analisaremos de seguida alguns deles e a respectiva resposta correspondente do evolucionismo.
Em primeiro lugar, os criacionistas argumentam que a teoria da evolução é, na melhor das hipóteses, uma teoria e não um facto, e como tal nunca poderá assumir um papel semelhante a um evangelho (na falta de uma melhor metáfora para uma verdade indesmentível). Argumentam que a própria linguagem em que a teoria é formulada mostra que as ideias não estão solidamente consolidadas e que os evolucionistas se movem em terrenos pantanosos. A este argumento os evolucionistas respondem que não se pode confundir o sentido da palavra “teoria”, que em alguns casos é usada para nomear um corpo de leis como na teoria da relatividade de Einstein e noutros nomeia uma hipótese plena de incertezas, como, por exemplo, “eu tenho uma teoria sobre o assassinato de Kennedy”. Existem, pois, diferentes sentidos para a palavra. Nada há de hipotético na teoria da relatividade de Einstein. É verdadeira e um facto. E os evolucionistas argumentam que, de igual modo, a teoria da evolução é verdadeira e um facto. Quando se fala em evolução, estamos a falar de um corpo de leis. No caso particular, e na sequência das ideias de Charles Darwin, argumenta-se que a pressão populacional leva à luta pela sobrevivência, da qual que segue uma selecção natural em favor de certas formas, dando-se a evolução. E que esta afirmação é de carácter geral para todas as formas de vida e constitui um corpo de leis, sendo por isso uma teoria no primeiro sentido do termo. Não existe nela qualquer hipótese incerta.
Em segundo lugar, os criacionistas, como Whitcom e Morris, argumentam que a hipótese da selecção natural, o mecanismo central do moderno pensamento evolucionista, é uma fraude. Argumentam que não se trata de uma afirmação universal sobre o mundo real, apenas um mero truísmo, aquilo que os filósofos denominam por tautologia — uma coisa que é verdade por não poder ser de outro modo como por exemplo “os solteiros não são casados”. No caso da selecção natural dizem que após se afirmar coisas como “a sobrevivência dos mais capazes” se responde simultaneamente à pergunta “quem são os mais capazes?”, porque os evolucionistas afirmam simplesmente que eles são exactamente “aqueles que sobrevivem!”. Deste modo, a teoria da selecção consiste numa tautologia de que os que sobrevivem são os que sobrevivem — nada científica afinal. Os evolucionistas respondem que esta dúvida não passa de um truque de prestigiditador e que demonstra a ignorância do que de facto está em jogo. De facto, a selecção natural é uma fenómeno real que consiste na sobrevivência de certos organismos e na extinção de outros. Alguns dos nossos antepassados viveram e puderam reproduzir-se, e outros não. Existe portanto uma reprodução diferencial e não se trata em caso nenhum de truísmo. Poder-se-ia dar o caso de toda a gente ter exactamente o mesmo número de filhos. Poder-se-ia dar o caso de não haver qualquer diferença entre os organismos sobreviventes e os não sobreviventes. Mas o facto é que isso não acontece e é negado pela selecção natural. Afirmar que um organismo é mais capaz é afirmar que possui certas características (aquilo a que os biólogos chamam adaptações) que o caracterizam como tal e que outros organismos não possuem, sendo que estatisticamente estes tendem a sobreviver. Apesar disso, o evolucionismo admite perfeitamente que um cataclismo natural como um terramoto pode dizimar em conjunto todos, tanto os adaptados como os menos capazes.
Em terceiro lugar os criacionistas dizem que o sustentáculo da moderna teoria evolucionista reside num mecanismo de mutações genéticas aleatórias. Se assim fosse, argumentam, as hipóteses de surgirem organismos capazes e funcionais, com todas as suas peças no devido sítio, seriam ínfimas. Um macaco a escrever numa máquina aleatoriamente durante um milhão de anos nunca poderia alguma vez vir a escrever as obras de Shakespeare. Argumentam por isso que um processo aleatório em tudo semelhante nunca poderia alguma vez vir a originar toda a complexidade e organização que os seres vivos apresentam. Os evolucionistas respondem a este argumento dizendo que, pelo facto de isso poder ser verdade no caso do macaco, não é o que se passa na evolução. Na evolução, se uma mutação dá resultado, o resto é construído a partir desse bom resultado e assim por diante até aparecer uma nova mutação também com sucesso. Isto aumenta consideravelmente as possibilidades do aparecimento de organismos, apesar de as mutações serem de facto aleatórias. Suponhamos que pegávamos apenas numa frase de Shakespeare, “Friends, Romans, countrymen, lend me your ears”. Se fosse necessário construir toda a frase de um fôlego, cada letra no seu lugar a partir do mero acaso, o tempo necessário seria inimaginável, vinte e seis (o número de letras) elevado à potência do número de caracteres desta frase. Mas se depois do “F” inicial ficar determinado como a letra certa e mantido, e logo após o “r” e assim por diante, sem se voltar de novo ao início, a construção da frase torna-se muito mais tratável. (Dawkins 1986 apresenta uma boa discussão sobre este assunto.) A propósito, acrescentam os evolucionistas, note-se que é necessário ter cuidado ao falar de mutações aleatórias. Isto não significa que a mutação não é causada. Significa antes que as mutações não acontecem de acordo com a necessidade. Suponha-se que surge uma nova doença. A teoria da evolução não garante que uma nova mutação que proteja a vida irá ocorrer.
Em quarto lugar, a litania do criacionismo queixa-se que existem já indícios perenes revelados pelos estudos paleontológicos. Os criacionistas lembram que existem falhas e omissões na continuidade pretensamente evolutiva do património fóssil. Existem grandes discrepâncias entre as diferentes formas encontradas e não há elos de ligação. Isto implica necessariamente um acto criador e não uma evolução. Em resposta, argumenta-se que o que seria mais provável é que essas falhas deveriam de facto estar presentes como estão. A fossilização é um processo bastante incomum — a maior parte dos cadáveres é comida ou apodrece em pouco tempo — e até é de espantar encontrarmos tantas ocorrências. Por outro lado ainda, as omissões não são tão numerosas quanto parecem. Existem vários exemplos de continuidades, dos anfíbios aos mamíferos, e em mais detalhe verificamos, por exemplo, a evolução evidente no cavalo, do Eohippus com cinco dedos para o cavalo dos nossos dias com um só. Ainda por cima, é também chocante que não se tenham encontrado fósseis fora da ordem cronológica dos sedimentos, como seria de esperar após um gigantesco dilúvio. Os fósseis humanos não precedem os dos dinossáurios, nem se encontram nos mesmos estratos cronológicos. Os dinossáurios extinguiram-se há muitos anos e os registos fósseis estratificados confirmam exactamente isso.
Em quinto lugar, os criacionistas, recorrendo à física, afirmam que ela própria desmente a teoria da evolução. A segunda lei da termodinâmica determina que a desordem do universo é inexoravelmente sempre maior. Em termos técnicos, a entropia aumenta permanentemente e a desordem é irreversível. A energia consumida em calor não pode voltar a produzir o mesmo calor, no entanto, os organismos vivos aparentemente desafiam o disposto nesta lei. Isto mesmo é incompatível com uma teoria da evolução a partir de uma matéria inerte e sem qualquer vida. Como é possível conceber neste cenário o aparecimento de seres tão complexos como nós, seres humanos, a não ser por força de uma vontade criadora? A este argumento os evolucionistas respondem que é um facto que a entropia do universo está em expansão permanente, mas isto não implica que existam bolsas onde isso não acontece durante algum tempo, que é o que se passa no planeta Terra. Exposta ao calor do Sol, a Terra permitiu as condições para a vida aparecer durante alguns milhões de anos. Num futuro distante, o Sol acabará por se apagar e a vida será extinta do planeta, sem no entanto a lei deixar de se manter válida em todo o universo.
Em sexto e último lugar, a objecção dos criacionistas à evolução baseia-se na simples constatação de que a complexidade humana não pode ser simplesmente explicada por uma lei cega como a teoria da evolução. O ser humano com espírito e consciência não pode ter surgido de um mero acaso; só é explicável por um acto criador. A resposta evolucionista é desconcertantemente simples: é uma arbitrariedade considerar que nós, os seres humanos, somos assim tão excepcionais. As provas paleontológicas mostram provas muitos fortes. Evoluímos, nos últimos quatro milhões de anos da vida da Terra, a partir de pequenas criaturas com metade da nossa estatura, com um pequeno cérebro, e que não caminhavam tão erectas como nós. Existem bastantes provas fósseis destes seres (conhecidos como Australopithecus afarensis). Será talvez verdade que o ser humano é um ser especial, no sentido (conforme defendido pelos cristãos) que talvez possuamos almas únicas e imortais, mas estas conjecturas são argumentos religiosos, não são argumentos científicos. Assim como a ciência não pretende explicar a religião, é de bom senso que se não procure explicar a ciência pela religião. É indesmentível que a teoria da evolução não explica tudo, inclusivamente as almas, sendo que o mesmo acontece com qualquer ramo da ciência. O que está em causa e é relevante é se a teoria da evolução tem potencialidades para explicar cada vez mais coisas, e o facto é que isso tem vindo a acontecer.
O dilúvio genesiano sempre atraiu grande popularidade entre os crentes e levou ao Movimento da Ciência Criacionista, no qual Morris, os seus colaboradores e os crentes, em especial Duane T. Gish, autor de Evolution: The Fossils Say No!, enfatizaram a corrente literalista. Foi particularmente eficaz neste contexto o desafio feito ao debate com os evolucionistas. Para este efeito, recorreram eficazmente a todos os truques de retórica possíveis por forma a enfurecerem os cientistas oponentes, através de afirmações extremamente especulativas sobre a natureza do universo. Este caso acabou num tribunal do Estado do Arkansas. Nos finais dos anos setenta do século XX, os criacionistas divulgaram a remodelação de leis destinadas a promulgação estadual e que permitiriam o ensino do criacionismo nas escolas públicas nas aulas de biologia. Graças à Primeira Emenda presente na constituição americana (que proíbe a constituição de religiões estatais) e a um apelo ao Supremo Tribunal, não foi possível proibir o ensino da teoria da evolução nas escolas. O truque era conseguir introduzir o criacionismo — algo que à partida viola a separação entre a igreja e o estado — em tais escolas. A ideia da ciência criacionista é fazer isto mesmo. O que defendem é que, apesar de a ciência criacionista espelhar o Génesis, em termos científicos é independente da Bíblia e é ciência de qualidade. Assim, estes projectos de lei propunham o que chamavam “tratamento equilibrado”. Se alguém quisesse ensinar o “modelo evolucionista”, então teria também de ensinar o “modelo da ciência criacionista”. O que serve de argumento ao evolucionismo serve também de argumento ao criacionismo.
Em 1981, estes projectos de lei foram aceites e levaram à prossecução da assinatura em lei por uma legislatura e um governador inconsequentes, que tarde deram conta da atenção que estavam a chamar sobre si. De imediato a American Civil Liberties Union entrou em acção levantando processos sobre a constitucionalidade da lei. O teólogo Langdon Gilkey, o geneticista Francisco Ayala, o paleontologista Stephen Jay Gould e eu próprio (Michael Ruse), enquanto filósofo, apresentámos o nosso testemunho pericial argumentando que o criacionismo não tem lugar nem bases de sustentação nas aulas de biologia. A evolução ganhou no tribunal. Ficou claro no juízo do tribunal que a ciência criacionista é uma religião e como tal não deve ser ensinada nas aulas públicas. Segundo o juiz, as características essenciais componentes de qualquer ramo científico são as seguintes:
Na opinião do juiz, a ciência da criação não possui nenhuma destas características, o que aparentemente encerra o assunto (a decisão e o contexto estão em Ruse, 1988).
Claro, na vida real nada é tão simples, e o tribunal de Arkansas certamente não é a palavra final. Uma das questões principais do julgamento era menos teológica ou científica e mais filosófica. Esta foi a razão de minha participação. Examine-se o quinto critério usado pelo juiz para caracterizar a ciência boa ou genuína. Os criacionistas começaram a utilizar as ideias de Karl Popper (1959), o iminente filósofo nascido na Áustria que vivia na Inglaterra. Como é sabido, Popper afirmava que, para que algo possa ser considerado genuinamente científico, tem de ser falsificável. Popper entendia que a ciência genuína deve se colocar a si mesma em cheque perante o mundo real. Se as previsões da ciência se verificam, então ela sobrevive para ser posta à prova novamente noutro dia. Se falham, então a ciência deve ser rejeitada ou ao menos revista. O próprio Popper (1974) manifestou dúvida sobre o caráter genuinamente falsificável da teoria da evolução. Inclinava-se mais a acreditar que se trata menos de uma descrição da realidade do que de um recurso heurístico que necessita de mais estudo, a que chamou “programa de investigação metafísica”. Os criacionistas agarraram a oportunidade e argumentaram que tinham autoridade para rejeitar a evolução, ou ao menos para afirmar que ela não é mais científica do que o criacionismo.
Parte dos depoimentos em Arkansas tinha o propósito de refutar este argumento, e demonstrou-se que de fato a evolução faz afirmações falsificáveis. Como já vimos, a selecção natural não é uma tautologia. Se fosse possível demonstrar que os organismos não exibem uma reprodução diferencial — para usar o exemplo dado acima, se fosse possível mostrar que todos os proto-humanos tiveram o mesmo número de filhos — então seria falsa com certeza. Igualmente, se alguém pudesse mostrar que os fósseis de seres humanos e de dinossáurios pertencem ao mesmo período histórico, seria possível ter uma prova poderosa contra as convicções dos evolucionistas modernos. Este argumento teria sucesso num tribunal: o juiz aceitaria que a teoria evolucionista é falsificável. Do mesmo modo, aceitaria que o criacionismo nunca está de fato aberto ao exame. Não é falsificável e consequentemente não é uma ciência genuína. Todavia, depois deste caso, um número razoável de filósofos eminentes (mais notadamente o americano Larry Laudan) rejeitou fortemente a ideia de usar a falsificabilidade como um “critério de demarcação” entre a ciência e a pseudociência. Eles argumentaram que de fato não há uma regra sólida e directa para distinguir a ciência de outras formas de actividades humanas e que, consequentemente, neste sentido, os criacionistas poderiam ter razão. Não que pessoas como Laudan fossem criacionistas. Eles consideram o criacionismo falso. As suas objecções dirigiam-se muito mais à tentativa de encontrar um modo de tornar a evolução, e não o criacionismo, uma ciência genuína.
Os defensores da estratégia anti-criacionista que teve lugar em Arkansas argumentaram, talvez de modo um tanto ingénuo, que a constituição dos Estados Unidos não impede o ensino da falsa ciência. Ela proíbe o ensino da não ciência, especialmente a não ciência que é religião com outro nome. Consequentemente, se os debates de pessoas como Laudan fossem levados a sério, os criacionistas poderiam ter algo com que trabalhar para lidar de modo equilibrado com o criacionismo e a evolução. A fasificabilidade popperiana pode ser um tanto simplista para separar a ciência da religião, mas é suficientemente boa para o trabalho em causa, e em lei isto é o que conta.
Os evolucionistas foram bem-sucedidos no tribunal. Não obstante, Laudan e companhia encorajaram os criacionistas a tentar novos esforços. Levada tribunal em Arkansas, a dimensão filosófica da controvérsia evolução/criacionismo aumentou bastante. Em particular, os argumentos filosóficos são centrais no pensamento do líder dos criacionistas de hoje, o professor de direito de Berkeley, Phillip Johnson, cuja reputação foi construída com o tratado anti-evolucionista Darwin on Trial (1991). Em certos aspectos, Johnson repetiu apenas os argumentos dos cientistas criacionistas (apresentados na secção anterior) — lacunas nos registos fósseis etc. — mas ao mesmo tempo observou que o debate criação/evolução não é apenas um caso de ciência contra religião ou de boa ciência contra má ciência, mas sim de posições filosóficas conflitantes. A sugestão era que uma filosofia é muito semelhante a outra, ou melhor, a sugestão era que a filosofia de uma pessoa é o veneno de outra e que é tudo uma questão de opinião pessoal. Por detrás disto vê-se o espírito do advogado: se ao final das contas se tratar de filosofia, nada há na constituição dos Estados Unidos que impeça o ensino do criacionismo nas escolas.
Crucial para a posição de Johnson são várias distinções de pormenor. Ele distingue entre o que chama “naturalismo metodológico” e “naturalismo metafísico”. O primeiro é a posição científica de tentar explicar as coisas recorrendo a leis e recusando aceitar milagres. Um naturalista metodológico insistiria em explicar todos os fenómenos, ainda que estranhos, em termos naturais. Elias ateando fogo à água do altar de sacrifícios, por exemplo, poderia ser explicado como o efeito de um raio, ou algo assim. A segunda é a posição filosófica que insiste que nada há além do natural — nenhum Deus, nada de sobrenatural, nada absolutamente. “O naturalismo é uma doutrina metafísica, o que significa simplesmente que sustenta uma visão particular do que é, em última instância, real e irreal. De acordo com o naturalismo, o que é, em última instância, natural, consiste em partículas fundamentais que compõem o que chamamos matéria e energia, juntamente com as leis naturais que governam o modo como essas partículas se comportam. A própria natureza é no fim das contas tudo o que há, ao menos até onde podemos saber”(Johnson 1995, 37-38).
E depois há alguém a que Johnson chama um “realista teísta”, alguém que acredita num Deus, e que este Deus pode e de fato intervém no mundo natural. “Deus sempre tem a opção de actuar através de mecanismos secundários regulares, e observamos esses mecanismos frequentemente. Por outro lado, muitas questões importantes — incluindo a origem da informação genética e da consciência humana — pode não se explicar em termos de causas não inteligentes, assim como um computador ou um livro não pode ser explicado deste modo” (p. 209). Johnson considera-se um realista teísta e, como tal, é um opositor do realismo metafísico. O realismo metodológico, que ele associa ao evolucionismo, pareceria ser distinto do realismo metafísico, mas Johnson defende que o primeiro acaba por se transformar no último. Assim, o evolucionista é o realista metodológico, o realista metafísico, o oponente do realista teísta — e até onde vai o interesse de Johnson, o teísta realista genuíno é alguém que faz uma leitura bastante literal da Bíblia. Consequentemente, é tudo menos uma questão de ciência e mais uma questão de atitudes e filosofia. A evolução e o criacionismo são perspectivas diferentes do mundo, e é conceptualmente, socialmente, pedagogicamente, e, com sorte, no futuro, legalmente errado tratá-los diferentemente. Mais que isso, está incorporado no argumento de Johnson que o criacionismo (ou seja o realismo teísta) é a única forma genuína de cristianismo.
Mas será que isto se segue realmente? O evolucionista diria que não. O ponto crucial do ataque de Johnson é obviamente o naturalismo metodológico. O naturalismo metafísico, como algo que evita o teísmo, tem sido compreendido como uma filosofia que tem um estatuto semelhante à religião. Algo que perpetua necessariamente o conflito entre religião e ciência. Mas, como o próprio Johnson observa, muitas pessoas pensam que podem ser naturalistas metodológicos e teístas, ao mesmo tempo. O naturalismo metodológico não é uma religião equivalente. Isto é possível, de um modo que seja consistente com a integridade intelectual? Johnson entende que não, porque quer que a guerra entre religião e ciência seja absoluta, sem cativos ou compromissos.
Para organizar este debate, vamos concordar (o que é certamente verdade) que, se o leitor é um naturalista metodológico, hoje em dia aceita a evolução e, conversamente, pensa que a evolução apoia o naturalismo metodológico. Hoje, o naturalismo metodológico e a evolução estão num mesmo pacote. Aceite-se um, e teremos de aceitar o outro. Rejeite-se um, e teremos de rejeitar o outro. É evidente, então, que o leitor tem um conflito, se o seu teísmo é do tipo que extrai o conhecimento das acções e propósitos de Deus de uma leitura literal da Bíblia. Não se pode aceitar o Génesis literalmente e, ao mesmo tempo, aceitar a evolução. Isto é um facto. Por outras palavras, não pode haver acomodação entre o criacionismo e a evolução. Mas, e se o leitor pensar que, em termos teológicos, há boas razões a favor de um suave tom de cinza? E se o leitor pensar que muito do que está na Bíblia, ainda que verdadeiro, deve ser interpretado em sentido metafórico? E se o leitor pensar que pode ser um evolucionista, e ainda assim defender o “coração essencial” da Bíblia? Qual seria o preço da consistência e do naturalismo metodológico? A resposta depende do que o leitor supõe que é o “coração essencial” da Bíblia. No mínimo, podemos dizer que, para o cristão, esse coração fala da nossa natureza pecadora, do sacrifício de Deus e de nossa perspectiva de salvação futura. Fala do mundo como uma criação significativa de Deus (ainda que causada) e de um drama em primeiro plano que tem lugar dentro deste mundo. Alguém refere-se particularmente ao pecado original, à vida e à morte de Jesus, à sua ressurreição e o que quer que daí advenha. Somos lançados então no primeiro dos grandes problemas, nomeadamente o dos milagres: os do próprio Jesus, a transformação da água em vinho no casamento em Canaã, o retorno à vida no terceiro dia e, especialmente se o leitor for católico, os milagres repetidos, como a transubstanciação e os milagres associados à intervenção dos santos, em resposta à oração.
Há um número de opções aqui para o futuro naturalista metodológico. O leitor poderia simplesmente dizer que estes milagres aconteceram, que de fato envolveram violações das leis, que estavam além da ciência. Os milagres são simplesmente excepções à regra. Fim do argumento. Um pouco abrupto, mas não inteiramente inconsistente com o facto de se chamar a si mesmo teísta. O leitor poderia ainda dizer que os milagres acontecem, mas são compatíveis com a ciência, ou pelo menos não incompatíveis. Jesus estava em transe e a cura de cancro após as súplicas a Santa Bernadete estava em acordo com leis raras e desconhecidas, mas genuínas. Esta posição é menos abrupta, ainda que o leitor possa perguntar-se se esta estratégia é realmente cristã, em letra e em espírito. Parece um pouco enganador dizer que o Jesus que foi tirado da cruz não estava realmente morto, e o casamento em Canaã começa a parecer uma fraude completa. Claro, o leitor pode começar a desconstruir cada vez mais milagres, relegando-os para ocorrências regulares ampliadas e ampliadas pelos apóstolos, mas isto compromete, ao final, todo o propósito.
A terceira alternativa é simplesmente recusar entrar na batalha. O leitor argumenta que a dicotomia entre lei e milagre é falsa. Os milagres não são apenas coisas que entram em conflito com as leis naturais ou que as confirmam. Os cristãos tradicionais sempre argumentaram isto, num certo sentido. Veja-se a doutrina católica da transubstanciação. A transformação do pão e do vinho no corpo e sangue de Cristo simplesmente não é algo que possa ser objecto de exame empírico. Não se pode negar a religião ou provar a ciência fazendo uma análise da hóstia. O mesmo acontece em relação à ressurreição de Jesus. Após a crucificação, o seu corpo mortal era irrelevante. O ponto é que os discípulos sentiram Jesus nos seus corações, e consequentemente estavam incentivados para ir pelo mundo pregar o evangelho. Algo real lhes aconteceu, mas não era uma realidade física — nem, por exemplo, a conversão de Paulo foi um acontecimento físico, mesmo que tenha mudado sua vida e a vida das incontáveis pessoas que vieram depois dele. Os milagres de hoje também são realmente mais uma questão do espírito que do corpo. As pessoas vão a Lourdes na esperança de lhes sair a lotaria da saúde ou pelo conforto que sabem que receberão, mesmo que não haja cura física? Nas palavras dos filósofos, é um erro colocar os milagres e as leis físicas num mesmo grupo.
O que Johnson tem a dizer sobre tudo isso? De modo frustrante, a resposta é: “notavelmente pouco”! Em grande parte, isto resulta de uma recusa em esclarecer exactamente o que se quer dizer com “teísmo”. O que Johnson diz está mais próximo de zombaria ou fuga do que de um argumento.
As pessoas que são suficientemente motivadas para assim o fazer podem encontrar meios de resistir ao caminho fácil que vai do N[aturalismo] M[etodológico] ao ateísmo, ao agnosticismo ou ao deísmo. Por exemplo, talvez Deus conduza activamente o processo evolucionista, mas, por alguma razão impenetrável, o faça de um modo empiricamente imperceptível. Ninguém pode contestar essa possibilidade, mas também não há muitas pessoas que a considerem intelectualmente impressionante. Se parecem confiar na “fé” — no sentido de crença sem prova — é porque os teístas são uma minoria marginalizada no mundo académico e estão sempre na defensiva. Geralmente, protegem a sua reputação de bom julgamento restringindo o seu teísmo à vida privada e assumindo para propósitos profissionais uma posição que não se distingue do naturalismo. (Johnson 1995, 211)
E acrescenta:
Os acordos entre o sobrenaturalismo na religião e o naturalismo em ciência podem satisfazer os indivíduos, mas têm pouca sustentação no mundo intelectual porque são reconhecidos como uma acomodação forçada de linhas de pensamento conflitantes. (p. 212).
Neste ponto, o evolucionista provavelmente levantará as mãos em desespero. De onde vem a ideia de “acordo”, excepto da imaginação de Johnson? De fato, muitos teólogos importantes dos nossos dias pensam que, com respeito a milagres, a ciência e a religião não estão em conflito (Barth 1949; Gilkey 1985). Acrescentariam que a fé sem obstáculos e oposição não é de facto fé. “Como o filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard [...] nos ensinou, a objectividade em excesso certamente destrói a excelência da fé. A piedade genuína é possível somente diante da incerteza radical” (Haught 1995, 59). Estes pensadores, frequentemente conservadores em teologia, inspiram-se em Martin Buber para encontrar Deus no centro dos relacionamentos pessoais. Eu-Tu, ou em ciência, Eu-Coisa. Para eles, há algo de degradante na ideia de Jesus ser um homem de milagres, uma espécie de fugitivo de um show de Ed Sullivan. O que aconteceu com os cinco mil? Algum truque com uns poucos pães e peixes? Ou Jesus encheu o coração da multidão com amor, o que resultou numa expansão espontânea de generosidade e participação, enquanto cada um na multidão era alimentado pelo que traziam uns poucos? Estes teólogos concordariam inteiramente com a primeira parte da caracterização de Johnson do “teísmo”. As coisas eram muito diferentes graças à presença e às acções de Jesus. O que eles negam, aqui ou em outro lugar, é a necessidade de procurar excepções à lei.
O criacionismo de Johnson e a evolução/naturalismo estão de fato em conflito, mas o criacionismo de Johnson não é tudo que há em religião, em particular no cristianismo. Há os que se intitulam teístas e que pensam ser possível manter-se teísta e naturalista metodológico (o que implicaria hoje a evolução). Johnson não argumenta contra eles.
Passemos a questões mais filosóficas. Complementando Johnson hoje, há pessoas que tentam oferecer uma alternativa à evolução. Há os entusiastas do chamado “desígnio inteligente”. Os que apoiam essa posição acham que o darwinismo é ineficaz, ao menos quando alega tornar supérfluo ou desnecessário o apelo directo a uma inteligência anterior, de algum tipo. São pessoas que acreditam que uma compreensão completa do mundo orgânico requer a invocação de uma força além da natureza, uma força que tem propósitos, ou ao menos um propósito criador.
Há dois aspectos nesta abordagem: um empírico e outro filosófico. Vamos tratar deles separadamente, a começar com quem mais intensamente articulou o aspecto empírico em defesa do desígnio inteligente, o bioquímico da Universidade de Lehigh, Michael Behe. Centrando-se no que intitula “complexidade irredutível”, Behe escreve:
Por complexidade irredutível quero dizer um sistema único composto de várias partes bem ajustadas, interagindo, que contribuem para a função básica, em que a remoção de qualquer uma das partes leva o sistema a efectivamente parar de funcionar. Um sistema irredutivelmente complexo não pode ser produzido directamente (isto é, por melhoramentos contínuos da função inicial, o que continua a funcionar pelo mesmo mecanismo) por modificações suaves e sucessivas de um sistema precursor, porque qualquer precursor de um sistema de complexidade irredutível a que falta uma parte é por definição não funcional. (Behe 1996, 39)
Behe acrescenta, o que é certamente verdade, que qualquer
sistema biológico irredutivelmente complexo, se existir tal coisa, será um desafio poderoso à evolução darwinista. Uma vez que a selecção natural só pode escolher sistemas que já estão em funcionamento, se um sistema biológico não pode ser produzido gradualmente, teria de surgir como uma unidade integrada, de uma só vez, para que a selecção natural tenha como agir sobre isso (p. 39).
Consideremos agora o mundo da biologia, e particularmente o micromundo da célula e de mecanismos (ou “mecanismos”) que encontramos naquele nível. Considere-se uma bactéria que usa um estolho, orientado por uma espécie de motor giratório, em movimento circular. Cada parte é incrivelmente complexa, tal como as várias partes combinadas. O filamento externo do estolho, por exemplo, é uma proteína que actua como uma espécie de remo na superfície, contactando o líquido durante o nado. Próximo à superfície da célula, quando necessário está um espessamento, para que o filamento possa estar conectado com o rotor. Isto exige naturalmente um conector, conhecido como uma proteína em gancho. Não há motor no filamento, e por isso ele tem de estar noutro lugar. “As experiências demonstraram que está localizado na base do estolho, onde o microscópio electrónico mostra estruturas de vários anéis” (p. 70). Tudo demasiado complexo para ter sido gerado gradualmente. Somente um processo de um só passo fará isso e este processo de um só passo tem de envolver algum tipo de causa inteligente. Behe é cuidadoso em não identificar este autor do desígnio como o Deus cristão, mas a implicação é que é uma força que venha dele sem o curso normal da natureza. A complexidade irredutível pede o desígnio.
A complexidade irredutível é supostamente algo que não poderia passar por lei que não pode ser quebrada, sobretudo pela selecção natural. Os críticos alegam que Behe demonstra ter uma má compreensão da natureza própria e do funcionamento da selecção natural. Ninguém nega que em processos naturais pode haver partes que, se forem removidas, levariam imediatamente ao não funcionamento dos sistemas nos quais elas ocorram. O que importa, todavia, não é se as partes que agora estão no lugar não poderiam ser removidas sem colapso, mas se elas poderiam ter sido colocadas no seu lugar pela selecção natural. Considere-se uma ponte em arco, feita de pedra, sem cimento, mantida no lugar apenas pela força da junção entre as pedras. Se o leitor tentasse construir a ponte a partir do zero, de baixo para cima e depois em direcção ao centro, fracassaria e as pedras cairiam. Na verdade, a ponte inteira cairia se se removesse a pedra do centro ou de qualquer lugar perto do centro. O que tem de se fazer é primeiramente construir uma estrutura de apoio (talvez uma represa térrea), em que se coloca as pedras, até que estejam todas no lugar. Neste ponto pode-se remover a estrutura, porque já não é necessária. Do mesmo modo, pode-se imaginar um processo sequencial bioquímico com vários estágios, em cujas partes outros processos vão à boleia. Assim, os processos até então parasitários e não sequenciais conectam-se e começam a funcionar independentemente. A sequência original é finalmente removida pela selecção natural por ser um esgotamento inconveniente ou redundante dos recursos.
Claro, isso tudo é hipotético. Mas os evolucionistas darwinistas dificilmente ignoraram a questão dos processos complexos. Ao contrário, ela é discutida em detalhe por Darwin na Origem, onde se refere à mais embaraçosa de todas as adaptações, o olho. No nível bioquímico, os darwinistas de hoje têm muitos exemplos do mais complexo dos processos ajustados pela selecção. Tome-se a matéria-prima da bioquímica do corpo, o processo onde a energia do alimento é convertida numa forma que pode ser usada pelas células. Um manual escolar canónico refere-se correctamente a este sistema orgânico vital, o chamado “ciclo de Krebs”, como algo que “perpassa uma série de reacções muito complicadas” (Hollum 1987, 408). Este processo, que ocorre na parte da célula chamada mitocôndria, envolve a produção de ATP (adenosina trifosfato): uma molécula complexa e rica em energia, degradada pelo corpo quando necessário (digamos na acção do músculo) noutra molécula ADP (difosfato de adenosina) menos rica. O ciclo de Krebs refaz o ATP de outras fontes de energia — um adulto humano do sexo masculino precisa produzir quase 200 kg por dia — e em qualquer medida, o ciclo é enormemente emaranhado e intrincado. Para começar, são necessárias quase uma dúzia de enzimas (substâncias que facilitam os processos químicos), como um subprocesso que leva a outro.
Mas o ciclo não surge do nada. Foi sedimentado juntamente com outros processos celulares que fazem outras coisas; foi uma “bricolagem”. Cada um dos pedaços e peças do ciclo existe com outros propósitos e foram cooptados para o novo propósito. Os cientistas que fizeram essa conexão não poderiam ter apresentado nada mais fortemente contrário ao princípio de complexidade irredutível de Behe se essa fosse sua intenção desde o início. De facto, resolvem o problema virtualmente, nos termos de Behe: “O ciclo de Krebs foi citado frequentemente como um problema central na evolução das células vivas difícil de explicar pela selecção natural de Darwin: como poderia a selecção natural explicar a construção de uma estrutura complicada in toto, quando os estágios intermediários não têm uma funcionalidade óbvia?” (Meléndez-Hervia et al 1996, 302). O que eles não oferecem é uma resposta no estilo de Behe. Primeiramente, afastam uma pista falsa. Poderia dar-se o caso de termos algo parecido com a evolução do olho do mamífero, em que os olhos primitivos existentes noutros organismos sugerem que a selecção pode actuar e de facto actua nos protomodelos (por assim dizer), refinando traços que têm a mesma função de modelos, se não mais eficientes, ao menos mais sofisticados? Provavelmente não, porque não há provas de nada deste tipo. Mas é então que somos colocados num caminho mais promissor.
No problema do ciclo de Krebs, os estágios intermediários também eram úteis, mas para diferentes propósitos. Consequentemente, o seu desígnio completo era um caso claro de oportunismo. O edifício do olho era de facto um processo criativo a fim de fazer algo novo especificamente, mas o ciclo de Krebs foi construído através do processo que Jacob (1977) chamou “evolução por ajuste molecular”, afirmando que a evolução não produz inovações do nada; trabalha com o que já existe. O resultado mais recente da nossa análise é ver como, com um mínimo de material novo, a evolução criou o mais importante percurso do metabolismo, obtendo o melhor desígnio quimicamente possível. Neste caso, um engenheiro químico que procurava o melhor desígnio do processo não poderia ter encontrado nada melhor do que o ciclo que trabalha com células vivas. (p. 302)
Suavizando a resposta a Behe, observamos que, se os seus argumentos são bem construídos, então temos problemas mais sérios do que no caso contrário! A sua posição parece simplesmente inviável, dado que conhecemos a natureza da mutação e da estabilidade dos sistemas biológicos ao longo dos tempos. Quando exactamente se supõe que o autor do desígnio inteligente actuou e fez o seu trabalho? Na sua obra principal, A Caixa Preta de Darwin, Behe sugere que tudo poderia ter sido feito há muito tempo e então deixado à mercê de seus próprios mecanismos. “Os sistemas bioquímicos irredutivelmente complexos que tenho discutido [...] não precisam ter sido produzidos recentemente. É inteiramente possível, baseado simplesmente no exame dos próprios sistemas, que tenham sido projectados há biliões de anos e que tenham chegado ao presente pelos processos normais de reprodução celular” (Behe 1996, 227-8).
Esta resposta não satisfaz. Não podemos ignorar a história dos genes préformados num qualquer ponto entre a sua origem (quando não teriam sido necessários) e o momento presente, quando estão em actividade máxima. Nas palavras do bioquímico de Brown, Kenneth Miller: “Como qualquer estudante de biologia lhe dirá, porque aqueles genes não estão expressos, a selecção natural não seria capaz de remover os erros genéticos. As mutações acumular-se-iam nestes genes a taxas impressionantes, transformando-os e tornando-os inoperantes centenas de milhões de anos antes de Behe dizer que precisaríamos delas”. Há milhares de provas experimentais que mostram que isto é verdade. A ideia de Behe de que há uma inteligência no desígnio actuando repetidas vezes e abandonando em seguida a matéria ao seu destino natural é “pura e simplesmente fantasia” (Miller 1999, 162–163).
Qual é a estratégia alternativa que Behe deve tomar? Presumivelmente que o autor do desígnio actua incessantemente, gerando mecanismos quando se fazem necessários. Assim, se tivermos sorte, podemos esperar ver alguns deles produzidos no decorrer de nossas vidas. Com certeza, deve haver uma espécie de desapontamento entre os biólogos que nenhum acto criativo desta natureza tenha até então sido observado. Quando passamos da ciência para a teologia, a decepção é ainda maior. Mais obviamente, como ficam as más mutações? Se o autor do desígnio se faz necessário e está disponível para resolver problemas complexos de engenharia, por que razão não poderia ele dispor de algum tempo em matérias simples, especificamente aquelas matérias simples que, se soltas, geram problemas absolutamente horrendos? Alguns dos piores males genéticos são causados por uma pequena alteração numa parte ínfima do ADN. Se o autor do desígnio é capaz e deseja criar o muito complexo, pois é muito bom, por que razão não faria ele o muito simples, já que a contrapartida é o muito mau? Behe fala disto como parte do problema do mal, o que é verdade, mas não ajuda muito. Dado que a oportunidade e a capacidade para fazer o bem era tão óbvia e mesmo assim não foi feito, precisamos de saber a razão por que isso acontece.
Behe precisa de ajuda. Supostamente, esta vem de um argumento conceptual em favor do desígnio inteligente, do filósofo-matemático William Dembski (1998a, b). Vamos primeiramente ver o argumento, e depois ver se ajuda Behe.
O objectivo de Dembski é duplo. Primeiramente, apresentar o critério pelo qual distinguimos algo a que a palavra “desígnio” conviria mais que qualquer outra. Em segundo lugar, contextualizar e mostrar como distinguimos o desígnio de algo produzido naturalmente por lei ou algo que atribuiríamos ao acaso. Até onde se possa supor que o desígnio esteja em questão, há três noções importantes a considerar: contingência, complexidade e especificação. O desígnio não pode ser contingente. O exemplo que Dembski usa é a mensagem extraterrestre recebida no filme Contacto. A sequência de pontos e traços, zero e um, não poderia ser deduzida das leis da física. Mas isto prova a existência de um desígnio inteligente? Suponhamos que possamos interpretar as séries em um modo binário, e que o campo inicial é o grupo de números 2, 3, 5, que representam o começo da sequência de números primos. Com um campo tão pequeno ninguém vai ficar entusiasmado. Poderia simplesmente ser casual. Assim, ninguém insistiria ainda na hipótese do desígnio. Mas, supondo agora que prossiga na série, e ela acaba por se revelar uma sequência exacta e precisa de números primos até 101. Agora o leitor começará a pensar que há algo mais, porque a situação parece demasiado complexa para ser meramente casual. É altamente improvável. “A complexidade que descrevo aqui é uma forma de probabilidade...” (Dembski 2000, 27).
Mas, ainda que o leitor conclua (com base na sequência de números primos) que há extraterrestres, é preciso examinar as provas um pouco mais. “Se eu deitar uma moeda 1000 vezes, participarei de um acontecimento altamente complexo (isto é, altamente improvável) [...] Esta sequência de moedas, todavia, não servirá para inferir o desígnio. Apesar de complexa, não exibirá um padrão aceitável”. Aqui, fazemos um contraponto com a sequência de números primos de 2 a 101. “Esta sequência não somente é complexa, mas também incorpora um padrão aceitável. O pesquisador SETI que, no filme Contacto, descobriu esta sequência, expressou-se do seguinte modo: “Isto não é ruído; tem estrutura"" (pp. 27-8). O que está a acontecer aqui? O leitor reconhece no desígnio algo que não é apenas arbitrário ou casual, ou algo a que se confere estatuto somente após a experiência ou a descoberta, mas sobretudo algo que era ou poderia ter sido de algum modo especificado, ou que mereceria mais atenção, antes de se ter certeza do que se trata. O leitor conhece ou poderia trabalhar com a sequência de números primos a qualquer momento, antes ou depois do contacto com o espaço. A sequência aleatória de moedas virá somente depois do evento. “O conceito crucial é o de “independência"”. Defino uma especificação como uma combinação entre um acontecimento e um padrão dado independentemente. Os acontecimentos que são ao mesmo tempo altamente complexos e que têm um desígnio indicado especificado (isto é, que combinam um padrão dado independentemente) indiciam desígnio."
Dembski está agora em posição de avançar para a segunda parte do argumento, onde nós realmente identificamos o desígnio. Aqui encontramos o que ele chama “filtro explicativo” (Dembski 1998a, b). Temos um fenómeno particular. A questão é: o que o causou? Algo que poderia não ter acontecido, dadas as leis naturais? É contingente? Necessário? A lua gira incessantemente em torno da terra. Nós sabemos que é assim em razão das leis de Newton. Fim da discussão. Nenhum desígnio aqui. Mas agora temos um fenómeno novo e relativamente estranho, a origem casual deste quebra-cabeças. Supondo que haja mutação, apesar de podermos quantificar em números grandes, não podemos fazer o mesmo em níveis individuais. Não há uma subsunção imediata sob a lei, e assim não há razão para pensar que neste nível era necessária. Digamos, como supostamente aconteceu no crescimento da família real europeia, que houve uma mutação de um gene responsável pela hemofilia. É complexo? Obviamente que não, porque leva à extinção mais que ao contrário. Consequentemente, é apropriado falar aqui de acaso. Não há desígnio. A mutação hemofílica foi apenas um acidente.
Vamos supor agora que temos a complexidade. Um padrão mineral razoavelmente intrincado nas rochas permitiria inferir o desígnio. Supondo que temos veios de metais preciosos de outros materiais, sendo a totalidade intrincada e variada — certamente não um padrão que o leitor poderia simplesmente deduzir das leis da física, química, geologia ou o que quer que seja. Nem se poderia entender isto como um colapso, como se poderia deduzir de uma má mutação. Agora temos um desígnio? Quase certamente que não, porque não é possível esse padrão ser pré-determinado. É tudo um tanto ad hoc, e não algo que surge como o resultado de uma intenção consciente. Finalmente, existem fenómenos que são complexos e especificados. Presume-se que o aparato biológico microscópico e os processos discutidos por Behe seriam suficientes para lhe dar razão. São contingentes, porque são irredutivelmente complexos. São semelhantes a um desígnio porque actuam conforme a necessidade, em relação ao organismo no qual se encontram. Isto significa dizer que possuem uma forma pré-especificada. E assim, tendo sobrevivido ao filtro explicativo, são propriamente considerados o produto de verdadeiro desígnio.
Agora, com o argumento conceptual apresentado na sua totalidade, podemos retornar a Behe e ver como o filtro explicativo de Dembski pode deixar o deus de Behe desorientado com relação ao problema do mal. Dado o filtro explicativo, a má mutação certamente derrubaria parcialmente a tese do filtro. Seria posto à parte pelo acaso, se não simplesmente descartado enquanto necessidade. Certamente não passaria no teste de especificação. Isto significa que uma doença genética terrível não poderia ser falha do autor do desígnio, onde os mecanismos complexos bem-sucedidos lhe seriam creditados. Dembski enfatiza que estas alternativas são mutuamente exclusivas. “Atribuir um evento ao desígnio significa dizer que ele não se pode referir de modo plausível à lei ou ao acaso. Caracterizando o desígnio como o complemento teórico da disjunção “lei ou acaso”, garante-se assim que estes três modelos de explicação serão mutuamente exclusivos e exaustivos" (Dembski 1998b, 98).
A afirmação principal feita por Dembski é que o desígnio, a lei e o acaso são mutuamente exclusivos. Este é o ponto central do filtro explicativo. Mas na vida real quem desejaria fazer essa afirmação? Suponha-se que algo seja atribuído ao acaso. Significa isto que não há lei? Claro que não! Quando se argumenta que uma mutação Mendeliana advoga a favor do acaso, o que se quer dizer é que, com relação a esta teoria particular, trata-se de acaso, mas pode-se perfeitamente acreditar que a mutação aconteceu devido a causas regulares normais e que, se estas fossem todas conhecidas, então não se falaria mais de acaso, e sim de necessidade. O ponto é que o acaso é uma confissão de ignorância, e não (como alguém poderia bem pensar no caso do mundo quântico) uma afirmação sobre como as coisas são. Isto é, as asserções em defesa do acaso não têm um carácter ontológico, como presumivelmente as afirmações em defesa do desígnio inteligente têm de ter.
Além disso, pode-se perfeitamente argumentar que o autor do desígnio actua sempre em conformidade com a lei natural. Mas poderíamos entender essa posição como deísta. Portanto, não se trata de um verdadeiro cristianismo. Alguns cristãos insistiriam que Deus às vezes intervém na criação. Mas, cristã ou não, uma divindade que sempre actua em conformidade com a lei certamente não é inconsistente com a hipótese de um desígnio inteligente. O autor do desígnio poderia preferir ter as coisas postas em movimento de tal forma que suas intenções se revelem com o passar do tempo. Um padrão numa peça de tecido feita pela máquina é um objecto de desígnio tanto quanto o padrão do tecido manufacturado. Ou seja, num sentido que estaria de acordo com o uso normal dos termos, pode-se dizer do que é produzido por leis que, em relação a nosso conhecimento ou teoria, é casual e se ajusta ao contexto geral de desígnio pelo grande arquitecto ou criador das coisas. Em poucas palavras, o filtro de Dembski não salva o desígnio inteligente de Behe.
Se o partidário do desígnio pode criar (e com certeza assume o crédito por isso) o muito complexo e bom, então ele poderia evitar (e por esta falha ele é apropriadamente criticado) o muito simples e terrível. Os problemas da teologia são tão sérios quanto os da ciência. (Os teóricos do desígnio inteligente garantiram trabalho para muitos filósofos ansiosos por refutá-los. Pennock 1998 e Sober 2000 são bons exemplos, para começar.)
O criacionismo, no sentido usado nesta discussão, ainda é um fenómeno vivo na cultura da América de hoje e em outras partes do mundo, como o Oeste Canadiano, para onde foi exportado. Mas a popularidade não implica a verdade. Cientificamente, o criacionismo não tem valor; filosoficamente, é confuso; e teologicamente, é sectário para além de qualquer possibilidade de remédio. Mas não se deve subestimar a sua força social e política. Ao entrar no novo milénio, há pressões insistentes para incluir ideias não evolucionárias no currículo de ciências, especialmente no currículo de ciências das escolas públicas dos Estados Unidos da América, graças a Johnson e seus companheiros. As coisas ainda poderiam ficar um pouco piores antes de melhorar, se de facto vão melhorar. Há membros do Supremo Tribunal dos Estados Unidos que tornaram claro que receberiam com simpatia os pedidos para tirar a evolução de um lugar de destaque no ensino das ciências. Se as próximas nomeações incluírem mais membros da justiça com inclinações desta natureza, podemos vir a descobrir que, quase um século depois do julgamento de Scopes, quando os fundamentalistas foram encarados como figuras divertidas, o criacionismo finalmente tem lugar na sala de aula. Se este ensaio servir para convencer uma única pessoa a assumir o combate contra uma consequência tão terrível, terá servido a seu propósito.