Menu
Crítica
7 de Setembro de 2018   Epistemologia

O carácter epistémico da indução em Hume

Em que também se contam alguns episódios da relação pedagógica entre uma professora e uma aluna
Faustino Vaz

Talvez o título do artigo seja recebido com grande surpresa ou mesmo incredulidade. A expectativa para título de um artigo sobre a indução em Hume seria algo como “O problema da indução proposto por Hume”. Mas isso não nos conviria. Imediatamente correríamos o risco, que desde já queremos evitar, de sermos mal interpretados — o de tomarmos como adquirido que, para Hume, a indução não tem justificação. Como tentaremos mostrar, por serem muitas as evidências textuais que não autorizam essa conclusão, há boas razões para defender que Hume considera a indução justificada.

A par disso, este artigo é também um relato profissional. Quisemos desse modo dar-lhe um certo colorido e tornar mais agradável a leitura. Nele contaremos alguns episódios na vida de uma professora que descobriu que Hume não é um céptico a respeito da indução. A professora sentiu nisso um prazer, uma complicação e outra vez um prazer. Um prazer: a perspetiva de Hume acerca da indução passou a parecer-lhe mais plausível. Uma complicação: toda uma tradição de ensino do problema da indução, na qual essa professora se inclui, terá de ser revista. E de novo um prazer: revendo essa tradição de ensino, a perspetiva de Hume acerca da indução será mais acessível para os alunos.

1. A aula em que tudo começou

Antes de mais, devemos uma nota de grande apreço à professora, à sua aluna e à turma, essa protagonista de fundo, ora atenta e curiosa, ora distante e até sonolenta. Algumas das aulas que vimos foram um exemplo da vitalidade inerente à filosofia, e só isso foi já muito bom. Mas prometemos fazer um esforço para resistir à tentação de deixar neste relato um ou outro exagero ditado pela emoção.

A professora dividiu a aula em dois momentos. No primeiro, seria dada a palavra a Hume, para que se apreciasse sem intermediários o raciocínio que conduziu àquele ao que hoje chamamos o problema da indução; no segundo momento, a professora simplificaria esse raciocínio, distinguindo as premissas e a conclusão. Com uma ou outra variação de pormenor, seria uma aula sem novidade, semelhante a muitas outras que já tinha dado sobre o assunto.

De Hume, foram estas as primeiras palavras nessa aula:

Se se dissesse que experimentámos que o mesmo poder continua unido ao mesmo objeto e que objetos idênticos são dotados de idênticos poderes, renovaria a minha pergunta: por que razão, a partir desta experiência, tiramos uma conclusão que ultrapassa os casos passados dos quais tivemos experiência? (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 127)

Quanto à experiência passada, pode-se conceder que ela oferece informação direta e certa apenas acerca dos precisos objetos que lhe foi dado conhecer, e apenas durante aquele preciso período de tempo. Mas por que deveria esta experiência ser levada a abranger tempos futuros, e outros objectos que, tanto quanto sabemos, lhes podem ser similares apenas na aparência? Esta é a questão fundamental sobre a qual gostaria de insistir. (Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, IN-CM, 2002, p. 49)

Apresentados os excertos, a professora explicou o seu significado filosófico. Sublinhou que levantavam um problema de justificação. E perguntou o que tentaria Hume justificar. Alguém respondeu muito bem, cremos que sentado num dos últimos lugares da sala, que Hume tentaria justificar os raciocínios indutivos. Conduzindo de modo muito organizado a aula, a professora disse que Hume reconheceu que o raciocínio indutivo repousa neste princípio:

Os casos de que não tivemos experiência devem assemelhar-se àqueles que experimentámos, e o curso da natureza continua sempre uniformemente o mesmo. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 124)

Supomos, quando vemos qualidades sensíveis idênticas, que elas têm idênticos poderes secretos, e esperamos que delas se sigam efeitos semelhantes àqueles de que tivemos experiência. (Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, IN-CM, 2002, p. 49)

Trata-se, esclareceu, do princípio da uniformidade da natureza, segundo o qual as conjunções de factos observadas se mantêm nos casos não observados. Ora, se o raciocínio indutivo repousa neste princípio, Hume considera que a sua tarefa é clara: bastará encontrar uma justificação para a uniformidade da natureza e a indução estará justificada.

Ensaiou então duas justificações deste princípio. A primeira consistiu em sustentá-lo por meio de um argumento dedutivo, a que chamou demonstrativo. Foi assim que o fez, afirmando no fim que essa tentativa de justificação tinha fracassado.

Não pode haver argumentos demonstrativos para provar que os casos de que não tivemos experiência se assemelham àqueles que experimentámos. Podemos pelo menos conceber uma mudança no curso da natureza, o que é prova suficiente de que tal mudança não é completamente impossível. Formar uma ideia clara de uma coisa é argumento irrefutável a favor da sua possibilidade e é por si só refutação de qualquer pretensa demonstração em contrário. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 125)

Parece evidente que não há argumentos demonstrativos neste caso, visto não implicar contradição que o curso da natureza possa mudar, e que um objecto aparentemente semelhante àqueles de que tivemos experiência possa vir acompanhado de efeitos diferentes ou contrários. Não posso, porventura, conceber clara e distintamente que caia das nuvens um corpo, em todos os outros aspectos semelhante à neve, mas que todavia produza o gosto do sal e a sensação do fogo? Haverá afirmação mais inteligível do que a de que todas as árvores vão florescer em Dezembro e Janeiro e perder as folhas em Maio e Junho? Ora nada que seja inteligível e possa ser distintamente concebido implica contradição, e nunca pode ser provado como falso por qualquer argumento demonstrativo ou raciocínio abstracto a priori. (Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, IN-CM, 2002, p. 51 (adaptado))

E a segunda consistiu em sustentá-lo por meio de um argumento provável — hoje diríamos indutivo. Hume reconheceu que, por envolver circularidade, também essa tentativa não tinha sido bem-sucedida.

A única conexão ou relação de objetos que pode transportar-nos para além das impressões imediatas da nossa memória e sentidos é a de causa e efeito […]. A ideia de causa e efeito provém da experiência, a qual nos informa que tais objectos determinados, em todos os casos passados, estavam constantemente conjugados uns com os outros: e como se deve supor que um objecto semelhante a um desses está imediatamente presente na sua impressão, daí concluímos pela existência de outro objecto semelhante ao que habitualmente acompanha o primeiro. De acordo com esta explicação das coisas, que creio ser inquestionável sob todos os aspectos, a probabilidade baseia-se na suposição de uma semelhança entre os objectos de que tivemos experiência e aqueles de que não a tivemos; portanto, é impossível que esta suposição possa nascer da probabilidade. O mesmo princípio não pode ser ao mesmo tempo causa e efeito de outro […]. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 125–126 (adaptado))

Dissemos que todos os argumentos relativos à existência assentam na relação de causa e efeito, que o nosso conhecimento dessa relação deriva inteiramente da experiência, e que todas as nossas conclusões experimentais assentam na suposição de que o futuro será conforme ao passado. Portanto, tentar provar esta última suposição por meio de argumentos prováveis, ou argumentos relativos à existência, é evidentemente andar em círculos, tomando como estabelecido precisamente o ponto que está em discussão. (Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, IN-CM, 2002, p. 51 (adaptado))

Não havendo outro tipo de argumento para além dos dois já apresentados, Hume concluiu que nenhum argumento poderia justificar o princípio da uniformidade da natureza.

Não só a razão não nos assiste na descoberta da conexão última das causas e efeitos mas, mesmo depois de a experiência nos ter informado da sua conjunção constante, a mesma razão não pode convencer-nos de que devemos estender essa experiência para além dos casos particulares que caíram sob a nossa investigação. Supomos, mas somos incapazes de provar, que deve existir semelhança entre os objectos de que tivemos experiência e os objectos que se encontram fora do alcance da nossa descoberta. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 127 (adaptado))

Por mais regular que se admita ter sido até agora o curso das coisas, apenas isso, sem qualquer novo argumento ou inferência, não prova que no futuro assim continuará a ser. […] A natureza secreta dos corpos e, consequentemente, todos os seus efeitos e influência, podem modificar-se sem qualquer alteração das suas qualidades sensíveis. Isso ocorre algumas vezes, e com relação a alguns objectos. Por que razão não poderia ocorrer sempre e com relação a todos os objectos? Qual é a lógica, qual é o processo de argumentação que nos garante contra essa possibilidade? Direis que a nossa prática refuta as nossas dúvidas. Mas isso é interpretar erradamente o alcance da minha questão. Na qualidade de agente, estou plenamente convencido quanto a este ponto, mas como filósofo que tem a sua parcela de curiosidade, não direi de cepticismo, quero saber qual é o fundamento dessa inferência. Nenhuma leitura ou investigação foi até agora capaz de eliminar a minha dificuldade, ou de me dar qualquer satisfação em assunto de tamanha importância. (Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, IN-CM, 2002, p. 53 (adaptado))

Dessa conclusão, Hume inferiu uma outra, que é o veredicto sobre o assunto. Assim, dado o fracasso das tentativas apresentadas, não há argumentos que justifiquem a indução e, por conseguinte, que justifiquem as crenças acerca de factos não-observados. É o que declara nestas passagens:

Que os homens um dia plenamente se persuadam destes dois princípios: que não há nada num objecto considerado em si mesmo que nos dê qualquer razão para tirar uma conclusão para além dele; e que mesmo depois da observação de uma conjunção frequente ou constante de objectos, não temos qualquer razão para fazer qualquer inferência a respeito de qualquer objecto de que não tivemos experiência. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 179)

A visão intensa destas múltiplas contradições e imperfeições da razão humana tanto me excitou, tanto aqueceu o meu cérebro, que estou pronto para rejeitar toda a crença e raciocínio e não mais posso considerar nenhuma opinião sequer como mais provável ou viável do que outra. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 318 (adaptado))

A professora viu que horas eram. Ainda tinha tempo de arrumar o argumento de Hume. Tratou de o desembaraçar dos aspetos que pudessem dificultar a compreensão dos seus alunos. O resultado foi o argumento extraordinariamente simples e intrigante que a seguir se apresenta.

  1. Qualquer argumento a favor de uma crença acerca de factos não-observados depende do princípio da uniformidade da natureza, segundo o qual conjunções observadas (regularidades) se mantêm em casos não-observados.
  2. Nenhum argumento demonstrativo mostra que o princípio da uniformidade da natureza é necessariamente verdadeiro — é possível que a natureza não seja uniforme.
  3. Nenhum argumento provável sustenta de modo não-circular o princípio da uniformidade.
  4. Logo, não há argumentos que justifiquem o princípio da uniformidade.
  5. Logo, não há justificação para qualquer crença acerca de factos não-observados.

Tocou. Num instante, a sala ficou vazia.

2. As incómodas e desafiadoras questões de uma aluna na aula seguinte

Foi de um lugar no meio da sala de aula que uma aluna, muito descontraidamente, tomou a palavra. Começou por realçar o quanto a surpreendera o argumento da aula anterior. Nunca imaginara que a indução, um tipo de raciocínio tão frequente e tão útil, pudesse não ter justificação. Essa perplexidade levou-a à leitura da Investigação sobre o Entendimento Humano. Confessou que tinha apreciado o estilo de Hume, mas que estava agora ainda mais intrigada do que antes.

Como seria de esperar, a professora quis saber porquê. Era grande a curiosidade que sentia. A aluna perguntou se podia ler duas passagens do livro que lhe pareceram especialmente importantes. A professora, claro está, respondeu que sim. As passagens que leu foram estas:

Se a presença de um objecto não despertasse instantaneamente a ideia dos objectos com ele comummente conjugados, todo o nosso conhecimento teria de ficar limitado à estreita esfera da nossa memória e sentidos. (Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, IN-CM, 2002, p. 68)

A existência de um ser qualquer só pode ser provada por argumentos a partir da sua causa ou do seu efeito; e os argumentos deste tipo assentam inteiramente na experiência. Se raciocinarmos a priori, qualquer coisa pode parecer capaz de produzir qualquer coisa. A queda de uma pedra pode […] extinguir o Sol; ou o desejo de um homem controlar os planetas nas suas órbitas. É somente a experiência que nos ensina a natureza e os limites da relação entre causa e efeito, e nos permite inferir a existência de um objecto a partir da existência de outro. Tal é o fundamento do raciocínio moral, que constitui boa parte do conhecimento humano e é a fonte de toda a acção e comportamento humanos. (Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, IN-CM, 2002, p. 175)

Terminada a leitura, a aluna, sorridente, levantou algumas questões. A primeira foi se, nestas passagens, Hume não afirmaria que a indução servia para conhecer o mundo. E a segunda foi se, caso servisse, este retrato da indução seria compatível com o argumento da aula anterior, segundo o qual não havia justificação para a indução.

A professora elogiou a aluna pela sua intervenção, que considerou brilhante. Agradeceu as perguntas. Com ar divertido, coçou enfaticamente a cabeça e respondeu que, de acordo com as passagens apresentadas, a indução servia para conhecer o mundo; e que, se assim fosse, teria de haver alguma coisa de errado no argumento acerca da indução que tinha exposto na aula anterior. Mas não sabia o quê, confessou sem rodeios.

De caminho, referiu que aquele argumento era uma peça central de toda uma tradição de ensino do famosíssimo problema da indução, uma tradição solidamente estabelecida em manuais da disciplina e livros introdutórios sobre o assunto. Prosseguiu dizendo que as tradições, sejam elas quais forem, não têm de ser aceites. Por fim, afirmou com humildade que teria de regressar ao estudo de Hume; e que só depois de melhorar o seu conhecimento do autor é que se sentiria capaz de dar uma resposta segura às questões incrivelmente importantes que tinham sido levantadas. Cremos, pela reação simpática da turma, que a mistura de rebeldia e de humildade da professora foi muito apreciada.

3. E foi assim que a professora se tornou aluna da aluna

O tempo foi passando sem que a professora conseguisse arranjar tempo para se dedicar ao estudo prometido. Viviam-se tempos estranhos nas escolas. Os professores andavam numa azáfama um pouco tonta entre reuniões, relatórios, observação mútua de aulas, listas de verificação e mais relatórios. A opinião orwelliana de que a burocracia é inimiga da liberdade intelectual mostrava-se muito pertinente. As aulas propriamente ditas, apesar de uma complicação ou outra, eram ainda a única fronteira que resistia ao avanço da rotina burocrática de prestação de contas.

Pediu desculpa à turma, e em especial à sua aluna, por não ter novidades para dar. Mas deixou claro que de modo algum iria abandonar o projeto de rever os seus conhecimentos de Hume. A meio de Junho, terminadas as aulas, começou finalmente a dispor de algum tempo, e de alguma cabeça, para fazer as consultas e ler os livros que reunira nos meses anteriores.

Iremos agora dar conta do desafio de estudar a relação de Hume com a indução, que se revelou mais exigente do que seria de esperar. Apresentaremos a argumentação desenvolvida pela professora. A bem do prazer da leitura, gostaríamos de ser mais parcimoniosos na seleção da evidência textual relevante. Mas tal parcimónia, dada a importância do que está em jogo, poderia ser interpretada como ligeireza. No entanto, as evidências selecionadas estão longe de esgotar a evidência textual a favor das conclusões a que a professora chegou.

É ainda útil lembrar que Hume foi um filósofo muito criativo. Desbravou um território novo e talvez tenha sido o primeiro explorador naturalista da mente. Em casos como o de Hume, sucede habitualmente que as novas ideias apontam em direções diferentes e são deixadas como que algumas pontas soltas. Ficam assim por fazer articulações com outros pontos do território. A interpretação que iremos apresentar é aquela que a professora considera ter mais evidências textuais a seu favor; aquela que, por isso, articula de modo mais promissor as ideias de Hume acerca da indução. Comecemos então.

Hume refere-se a inferências indutivas quando nos fala de inferências causais. Inferimos efeitos de causas, e estas de efeitos, e desse modo somos conduzidos a crenças acerca de factos não-observados. É claro em muitas passagens que as inferências causais são casos de raciocínio bem-sucedido. O que dizer de passagens como as seguintes?

Não devemos tomar como raciocínio qualquer das observações que fazemos acerca da identidade e das relações de tempo e espaço; pois em nenhuma delas o espírito ultrapassa o que está imediatamente presente aos sentidos, seja para descobrir a existência real ou as relações dos objetos. Apenas a causação produz uma conexão capaz de dar-nos a convicção, a partir da existência ou acção de um objeto, de que ela foi seguida ou precedida por outra existência ou acção. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 108)

Daquelas três relações que não dependem somente das ideias, a única que pode ir além dos nossos sentidos e nos informa de existências e objetos que não vemos nem apalpamos é a causação. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 109)

Valerá a pena aqui observar que a experiência passada, da qual dependem todos os nossos juízos relativos a causas e efeitos, pode actuar no nosso espírito de modo tão insensível que nos passe despercebido e talvez seja mesmo em certa medida por nós ignorado. […] Uma pessoa que interrompe repentinamente a sua viagem ao deparar com um rio no caminho prevê as consequências da sua marcha em frente; e o conhecimento que tem destas consequências vem-lhe da experiência passada, que a informa de certas conjunções de causas e efeitos. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 140)

Nenhuma questão de facto pode ser provada senão a partir da sua causa ou do seu efeito. Nada pode ser conhecido como a causa de outro objeto senão pela experiência. (A Treatise of Human Nature, Oxford, Oxford University Press, 1978, p. 654)

Como vemos, as inferências causais permitem descobrir, informam, provam e estendem o conhecimento para além do que os sentidos e a memória proporcionam. Isto significa que são casos de sucesso epistémico. Ora, havendo sucesso epistémico, as crenças acerca de factos não-observados estão justificadas. Para isso bastará que tenham o grau de força adequado.

Além de afirmar que as inferências indutivas fortes obtêm sucesso epistémico, Hume exprime a sua aprovação das inferências indutivas quando afirma que

A única conexão ou relação de objetos, que pode transportar-nos para além das impressões imediatas da nossa memória e sentidos, é a de causa e efeito; pois é a única em que podemos fundamentar uma inferência correta de um objeto a outro. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 125 (adaptado))

Pode receber-se uma convicção mais viva de um raciocínio provável, próximo e imediato, do que de uma longa cadeia de consequências, ainda […] que cada uma delas seja correta e concludente. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 185 (adaptado))

Alguém que conclui que uma outra pessoa está perto quando ouve na escuridão uma voz articulada, raciocina correta e naturalmente, embora esta conclusão não provenha senão do hábito […]. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 272)

Alguém que, no nosso clima, esperasse melhor tempo numa semana de Junho do que numa de Dezembro, estaria a raciocinar corretamente e em conformidade com a experiência […]. (Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, IN-CM, 2002, p. 122)

Certas inferências indutivas são aprovadas porque são corretas e conclusivas. E, quando assim é, estão de acordo com regras de raciocínio corretas ou, o que vai dar ao mesmo, são produzidas por alguém — um agente cognitivo fiável — cujo funcionamento cognitivo é determinado por essas regras.

E já que nos referimos a regras de raciocínio, é pertinente que se dê aqui conta de outra descoberta da diligente professora. Hume defende que devemos regular os nossos raciocínios acerca de causas e efeitos. É com essa finalidade que expõe oito regras gerais. Sobre elas afirma:

Aqui está toda a lógica que julgo conveniente empregar nos meus raciocínios; e talvez mesmo esta não fosse muito necessária, podendo ser suprida pelos princípios naturais do nosso entendimento. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 217)

A quarta regra, por exemplo, segundo a qual para a mesma causa o mesmo efeito, e para o mesmo efeito a mesma causa, tem a particularidade de ser “a fonte da maior parte dos nossos raciocínios filosóficos” (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 216).

Dada a evidência textual considerada, é de admitir que as inferências indutivas tenham uma avaliação epistémica positiva. Nesse caso, seria de esperar que Hume as distinguisse pelo seu grau de força, pela probabilidade das suas conclusões. Será que o fez? Esta questão impunha-se e foi a ela que a professora prontamente se dedicou. A resposta a que chegou foi conclusiva: Hume verificou que há gradações nas evidências indutivas. Ora, se considerasse que as inferências indutivas não estão justificadas, teria de as equiparar, impedindo-se assim de as distinguir pelos seus graus de força.

Hume procedeu a uma espécie de inventário de graus de evidência, fazendo uma distinção entre provas e probabilidade. As primeiras seriam certezas, evidências de alto grau; já a probabilidade teria diferentes graus de força e de evidência. A lição geral a tirar é a de que devemos ajustar as nossas crenças à evidência disponível. E a probabilidade a que Hume chamou filosófica é um tipo de justificação que merece a nossa confiança. São de destacar as passagens seguintes:

Nos nossos raciocínios acerca de questões de facto, coexistem todos os graus imagináveis de confiança, desde a mais alta certeza até à espécie mais baixa de evidência moral.

O homem sagaz, portanto, adequa a sua crença à evidência. Nas conclusões que assentam numa experiência infalível, ele espera o acontecimento com o mais alto grau de segurança, e toma a sua experiência passada como prova cabal da ocorrência futura desse acontecimento. Em outros casos, procede com mais cuidado, sopesando as experiências opostas e vendo qual dos lados é apoiado pelo maior número de experimentos. Inclina-se para esse lado, com dúvidas e hesitações e, quando finalmente estabelece um juízo, a evidência não ultrapassa o que propriamente se denomina probabilidade. (Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, IN-CM, 2002, p. 122 (adaptado))

É assim avançando lentamente que o nosso julgamento chega a uma certeza completa. Mas antes de atingir este grau de perfeição passa por vários graus inferiores e em todos eles deve considerar-se apenas como uma presunção ou probabilidade. A graduação das probabilidades para as provas é pois em muitos casos insensível; e a diferença entre estas espécies de evidência é mais facilmente percebida nos graus remotos do que nos vizinhos e contíguos. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, pp. 169–170)

A nossa confiança na veracidade da [memória]é a maior que se possa imaginar, e em muitos aspectos iguala a certeza de uma demonstração. O grau seguinte […] é o que provém da relação de causa e efeito […]. Mas abaixo deste grau de evidência há muitos outros […]. É por hábito que efectuamos a transição de causa a efeito […]. Mas quando não observámos um número de casos suficiente para produzir um hábito forte; ou quando os casos se contrariam; ou quando a semelhança não é exata; ou a impressão presente é ténue e obscura; ou a experiência em certa medida se apagou da memória; ou a conexão depende de uma longa cadeia de objectos; ou a inferência deriva de regras gerais e contudo não lhes está conforme: em todos estes casos diminui a evidência pela diminuição da força e intensidade da ideia. Esta é pois a natureza do juízo e probabilidade. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, pp. 194–195)

Todas estas espécies de probabilidade são aceites pelos filósofos, que as reconhecem como fundamentos racionais da crença e da opinião. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 183)

Não havia dúvida de que a evidência textual reunida até aqui favorecia uma avaliação positiva da indução. Tratava-se de evidência textual que consistia em afirmações explícitas de Hume acerca da indução. Foi então que ocorreu à professora se, além de ter feito afirmações positivas acerca da indução, Hume não teria incluído a indução na sua prática argumentativa. Verificou sem dificuldade que sim. Havia mesmo uma secção do Livro II do Tratado intitulada “Experiências para confirmar este sistema”. Pela sua importância, reteve em especial duas passagens em que Hume usa evidência indutiva. Numa delas, estabelece o princípio que descreve a relação entre ideias e impressões. Na outra, sustenta uma explicação associacionista das crenças. Vale a pena apresentá-las.

Contentar-nos-emos aqui com estabelecer uma única proposição geral: que todas as nossas ideias simples no seu primeiro aparecimento derivam das impressões simples que lhe correspondem e que elas representam exactamente.

Quando procuro fenómenos para provar esta afirmação, […] primeiro certifico-me, mediante nova revisão, da asserção por mim feita anteriormente de que toda a impressão simples é acompanhada por uma ideia correspondente e toda a ideia simples por uma impressão correspondente. […] Uma tal conjunção constante, num tão ilimitado número de casos, não pode nunca provir do acaso, provando claramente que há dependência das impressões em relação às ideias, ou das ideias em relação às impressões. Para saber de que lado se encontra esta dependência observo a ordem do seu primeiro aparecimento, e verifico mediante uma experiência constante que as impressões simples precedem sempre as ideias correspondentes, nunca aparecendo na ordem inversa. […]

Para confirmação disto, examino outro fenómeno claro e convincente: sempre que um acidente qualquer põe obstrução às operações das faculdades que dão origem a certas impressões, como quando alguém é cego ou surdo de nascença, perdem-se não só as impressões, mas ainda as ideias a elas correspondentes. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, pp. 32–33)

De boamente estabeleceria como máxima geral da ciência da natureza humana a seguinte: quando uma impressão se nos torna presente, não só transporta a mente para as ideias que lhe estão ligadas, mas ainda comunica a estas parte da sua própria força e vivacidade. […]

[…] Devo confessar que é na experiência que deposito a minha maior confiança para provar um princípio tão importante. Podemos portanto observar, como primeira experiência em reforço do nosso presente propósito, que, ao aparecer o retrato de um amigo ausente, a ideia que dele temos aviva-se evidentemente pela semelhança e cada paixão ocasionada por essa ideia, seja de alegria ou de tristeza, adquire nova força e vigor. […]

Podem considerar-se experimentos da mesma natureza as cerimónias da religião Católica Romana. Os devotos desta estranha superstição costumam alegar, como desculpa das cerimónias ridículas que se lhes reprovam, que sentem os bons efeitos desses movimentos exteriores, dessas atitudes e acções para lhes avivar a devoção […]. Nós representamos os objectos da nossa fé, dizem eles, por efígies e imagens sensíveis e tornamo-los mais presentes pela presença imediata destas efígies do que conseguiríamos fazê-lo unicamente por uma visão e contemplação intelectual. […] Apenas infiro destas práticas e deste raciocínio que muito comummente a semelhança tem por efeito avivar as ideias; e como em todos os casos têm de contribuir uma semelhança e uma impressão presente, dispomos de abundantes experimentos para provar a realidade do precedente princípio. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, pp. 135–137)

Um outro facto, que não podemos deixar de realçar, mereceu a atenção da professora. Hume afirma o seguinte na secção conclusiva do Livro I do Tratado:

A visão intensa destas múltiplas contradições e imperfeições da razão humana tanto me excitou, tanto aqueceu o meu cérebro, que estou pronto a rejeitar toda a crença e raciocínio e não mais posso considerar uma opinião mesmo como mais provável ou viável do que outra. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 318)

Que resultados prévios reúne Hume para chegar a este veredicto tão céptico? Hume tem o cuidado de os distinguir. Um é a contradição acerca da matéria; outro é o de que a causação não envolve qualquer conexão fora da mente; e o outro é o “perigoso dilema” de o entendimento ter a capacidade de se subverter a si mesmo. É assim que, pela ordem acabada de expor, Hume os descreve.

Embora estas duas operações sejam igualmente naturais e necessárias no espírito humano, […] em certas circunstâncias elas são directamente opostas e não nos é possível raciocinar correcta e regularmente segundo as causas e os efeitos e ao mesmo tempo acreditar na existência contínua da matéria. Como ajustaremos estes princípios um ao outro? Qual deles havemos de preferir? Ou, se não tivermos preferência e dermos o nosso assentimento sucessivamente a um e ao outro, como é costume entre os filósofos, com que confiança podemos em seguida usurpar este título glorioso, quando assim cientemente aceitamos uma contradição tão manifesta? (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 316)

Não admitimos deter-nos antes de conhecermos na causa a energia que a faz agir sobre o seu efeito […]. E como devemos ficar decepcionados ao sabermos que esta conexão, este laço, esta energia se encontra apenas em nós e não é senão uma determinação da mente, que é adquirida pelo hábito e nos faz passar de um objecto para o seu acompanhante costumeiro e da impressão de um para a ideia viva do outro? (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 316)

A questão é saber até que ponto devemos ceder [às ilusões da imaginação]. É uma questão muito difícil, que nos leva a um dilema muito perigoso, de qualquer modo que respondamos. Com efeito, se dermos o nosso assentimento a todas as sugestões triviais da imaginação […], seremos por elas levados a erros absurdos e obscuridades tais que teremos finalmente de nos envergonharmos da nossa credulidade. […]

Mas, por outro lado, se a consideração destes casos nos fizer tomar a resolução de […] nos cingirmos ao entendimento, isto é, às propriedades gerais e mais estáveis da imaginação; mesmo esta resolução […] será perigosa […]. Pois já mostrei que o entendimento quando actua isoladamente e segundo os seus princípios mais gerais, destrói-se completamente a si próprio e não deixa o mínimo grau de evidência em nenhuma proposição da filosofia ou da vida comum. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 317)

Não seria legítima a expectativa de que, neste contexto, Hume usasse aquele que é visto como o seu argumento céptico acerca da indução? De acordo com uma certa tradição interpretativa, em que por sua vez se apoia toda uma tradição de ensino do problema da indução, não é esse argumento uma importante peça do cepticismo de Hume? Esta omissão não podia ser iludida. É razoável ver nela mais uma razão para duvidar da interpretação céptica do tratamento da indução por Hume. E foi isso o que, também a nossa professora, viu nela.

4. A professora abandona a ideia de que Hume é um céptico acerca da indução

Tornou-se óbvio que um problema teria de ser enfrentado e, se possível, resolvido. Os dados do problema são os seguintes: a abundante evidência textual de que Hume considera a indução justificada; a defesa de que não há argumentos cogentes, sejam demonstrativos ou prováveis, a favor do princípio da uniformidade da natureza, também ela apoiada em evidência textual. Como sabemos, é nesta defesa que se funda a convicção de que Hume é um céptico acerca da indução.

Uma vez que a evidência textual de que Hume considera a indução justificada é irresistível, pareceu plausível à professora indagar se não haveria algum erro no argumento que sustentava a interpretação céptica. Representaria o argumento com exatidão o pensamento de Hume? O único aspeto em que isso poderia parecer duvidoso residia na inferência final. Era de toda a pertinência, por isso, a questão seguinte: Será que, de acordo com Hume, do facto de não haver um argumento que sustente o princípio da uniformidade da natureza se segue que não pode haver justificação para as crenças acerca de factos não observados?

Era claro que uma resposta afirmativa a esta questão dependia de uma perspetiva internista de justificação. Tomamos a liberdade de reproduzir aqui o rectângulo que a professora desenhou no pequeno caderno com que se fazia sempre acompanhar e a distinção epistémica que, no interior dele, apresentou.

Perspectivas fundamentais acerca da justificação

A professora dedicou-se então à tarefa de verificar se Hume teria adoptado uma perspetiva externista de justificação. Haveria evidências textuais a favor dessa hipótese? A dialéctica de Hume é motivada pela competição entre duas hipóteses. É deste modo que ele formula o problema:

Tornando-se manifesto que a transição de uma impressão presente à memória ou aos sentidos para a ideia de um objecto, que denominamos causa ou efeito, se baseia na experiência passada e na nossa recordação da sua conjunção constante, o problema que se põe a seguir é saber se a experiência produz a ideia por meio do entendimento ou da imaginação; se somos determinados pela razão a fazer esta transição, ou por uma certa associação e relação de percepções. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 124)

Por um lado, temos a razão, que consiste no entendimento. Será por meio de um argumento demonstrativo (dedutivo) ou de um argumento provável (indutivo) que, servindo-nos da razão, poderemos sustentar o princípio da uniformidade da natureza. Por outro, temos uma faculdade de associação de percepções. É a esta que, de acordo com certos princípios, se deve a transição de uma ideia para outra. Diz Hume:

A razão jamais pode mostrar-nos a conexão de um objecto com outro, ainda que ajudada pela experiência ou pela observação da sua conjunção constante em todos os casos passados. Quando portanto o espírito passa da ideia ou impressão de um objecto para a ideia ou crença de outro, não é determinado pela razão, mas por certos princípios que associam umas às outras as ideias destes objectos e os unem na imaginação. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 128 (adaptado))

Visto que denominamos costume tudo o que provém de uma repetição passada, sem qualquer novo raciocínio ou conclusão, podemos estabelecer como verdade […] que toda a crença que se segue de uma impressão presente deriva unicamente dessa origem. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 139)

Não há conexão que se possa descobrir entre os objectos; e não há outro princípio, além da acção do costume sobre a imaginação, pelo qual possamos do aparecimento de um inferir a existência do outro. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 140)

Depois de uma resposta negativa, expressa na conclusão de que as inferências indutivas não são produzidas pela razão, Hume oferece-nos um resultado construtivo. Assim, as inferências indutivas devem-se a uma faculdade de associação e, em especial, a um dos seus princípios — o costume ou hábito. Trata-se de um mecanismo que funciona deste modo: quando a mente tem, repetidamente, a experiência da conjunção de dois objetos ou factos, sempre que tenha a experiência de um deles, tenderá a formar a ideia do outro.

Em seguida, como seria de esperar, a professora procurou conhecer as considerações de Hume sobre o hábito. Não lhe restava outra hipótese senão indagar se residiria no hábito a justificação das inferências indutivas. Contra o que aprendera, não viu nessas considerações uma avaliação negativa do hábito, cujo tom, de resto, não era pejorativo.

O que ficou claro, isso sim, foi que as dúvidas cépticas de Hume apenas envolviam o âmbito da razão. As operações argumentativas da razão tinham limites. Um deles, como sabemos, é o de não justificarem o princípio da uniformidade da natureza. O que começava a ser duvidoso era que, por isso, a indução não estivesse justificada.

A questão decisiva era, então, se haveria no hábito, quando este opera nas inferências indutivas, alguma propriedade que conferisse justificação. Nesse caso, factos naturais inerentes à operação do hábito seriam responsáveis pelo estatuto epistémico das crenças obtidas por indução. A professora não deu o seu tempo por perdido. Vejamos algumas evidências textuais acerca do hábito.

Como esta operação da mente pela qual inferimos efeitos semelhantes de causas semelhantes, e vice-versa, é tão essencial à subsistência de todas as criaturas humanas, não é provável que ela pudesse ser confiada às falaciosas deduções da nossa razão […]. É mais conforme à habitual sabedoria da natureza assegurar um acto mental tão necessário por algum instinto ou tendência mecânica, capaz de ser infalível nas suas operações, de se manifestar desde o primeiro aparecimento da vida e do pensamento e de agir independentemente de todas as laboriosas deduções do entendimento. Tal como a natureza nos ensinou o uso dos nossos membros, sem nos dar o conhecimento dos músculos e nervos que os comandam, do mesmo modo ela implantou em nós um instinto que fez avançar o pensamento por um curso correspondente ao que ela estabeleceu para os objectos exteriores, embora ignoremos os poderes e forças dos quais esse curso e sucessão regulares de objectos totalmente depende. (Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, IN-CM, 2002, pp. 68-69)

Tenho de distinguir […] entre os princípios que são permanentes, irresistíveis e universais, tais como a transição habitual das causas para os efeitos e dos efeitos para as causas; e os princípios variáveis, fracos e irregulares […]. Os primeiros servem de base a todos os nossos pensamentos e acções, de modo que, com o seu desaparecimento, a natureza humana tem de perecer e arruinar-se imediatamente. Os segundos nem são inevitáveis, nem necessários, nem mesmo úteis para a conduta da vida: pelo contrário, nota-se que só têm lugar em espíritos fracos e, como se opõem aos outros princípios do hábito e do raciocínio, podem facilmente destruir-se por um contraste e uma oposição convenientes. Por esta razão, a filosofia aceita os primeiros e rejeita os segundos. Alguém que conclui que outra pessoa está perto quando ouve na escuridão uma voz articulada, raciocina correcta e naturalmente, embora esta conclusão não provenha senão do hábito, que fixa e aviva a ideia de uma criatura humana em razão da sua habitual conjunção com uma impressão presente. Mas alguém que fica atormentado sem saber porquê, pela apreensão de espectros na escuridão, talvez possa dizer-se que raciocina, e que raciocina naturalmente, mas só se for no mesmo sentido em que se diz que uma doença é natural, porque tem origem em causas naturais, embora seja contrária à saúde, que é a situação mais agradável e mais natural do homem. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, pp. 271–272)

Nada nos mostra melhor a força do hábito para nos familiarizar com qualquer fenómeno do que o facto de os homens não se espantarem com as operações da sua própria razão, ao mesmo tempo que admiram o instinto dos animais e encontram dificuldade em explicá-lo porque não podem reduzi-lo exactamente aos mesmos princípios. Bem vista a questão, a razão não é senão um instinto maravilhoso e ininteligível da nossa alma, que nos arrasta para uma certa sequência de ideias e lhes dá qualidades particulares em função das suas situações e relações particulares. É verdade que este instinto nasce da observação e da experiência passadas; mas quem pode dar a razão última por que são a experiência e a observação passadas que produzem tal efeito e não a natureza por si só que o produz? A natureza pode certamente produzir tudo o que nasce do hábito; mais ainda, o hábito não é senão um dos princípios da natureza, e recebe desta origem toda a sua força. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, pp. 221)

Nestas passagens são claros os elementos de uma perspetiva externista de justificação. Eles permitem compreender a aprovação da indução por Hume e a sua prática argumentativa baseada na indução. Mas não escapou à leitura atenta da professora um outro argumento a favor de uma perspetiva externista de justificação. Encontra-se nas passagens que Hume dedicou à razão dos animais não-humanos, das crianças e dos campónios ignorantes. O conhecimento de rotina destas criaturas, que não é obtido por meio de argumentos, é considerado por Hume uma realização cognitiva. A esse respeito são esclarecedoras estas passagens:

Nenhuma verdade me parece mais evidente do que a afirmação de que os animais são dotados de pensamento e de razão tal como os homens. […]

[…] Aqui temos de fazer uma distinção entre aquelas acções dos animais que são de natureza banal e parecem estar ao nível das suas capacidades correntes, e os exemplos mais extraordinários de sagacidade que eles mostram às vezes para conservação e propagação da sua espécie. Um cão que evita o fogo e os precipícios, foge dos estranhos e acaricia o dono, apresenta-nos um exemplo da primeira espécie. Uma ave que escolhe com tanto cuidado e precisão o local e os materiais para o seu ninho, e choca os ovos o tempo necessário e na época conveniente com todas as precauções de que é capaz um químico na reacção mais difícil, fornece-nos um exemplo vivo do segundo.

[…] Os animais certamente não apreendem qualquer conexão real entre os objectos. É pois por experiência que eles inferem um objecto de outro. Nunca podem estabelecer por argumentos a conclusão geral de que os objectos de que não tiveram experiência se assemelham àqueles que experimentaram. É portanto só mediante o hábito que a experiência actua sobre eles. Tudo isto era suficientemente evidente em relação ao homem. Mas com relação aos animais não pode haver a mínima suspeita de erro; o que, temos de concordar, é uma forte confirmação, ou melhor, uma prova invencível do meu sistema. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, pp. 219-221)

Parece evidente que os animais, tal como os seres humanos, aprendem muitas coisas com a experiência, e inferem que os mesmos eventos sempre se irão seguir das mesmas causas. Através deste princípio, adquirem familiaridade com as propriedades mais óbvias dos objectos exteriores, e vão gradualmente, desde o nascimento, acumulando conhecimento acerca da natureza do fogo, da água, da terra, das pedras, das alturas, das profundezas, etc., e dos efeitos que resultam das suas operações. […]

Em todos esses casos, podemos observar que o animal infere algum facto para além daquilo que impressiona imediatamente os seus sentidos, e que essa inferência assenta inteiramente na experiência passada, quando a criatura espera do objecto presente as mesmas consequências que a sua observação sempre lhe mostrou resultarem de objectos similares.

[…] É impossível que essa inferência do animal possa derivar de qualquer processo de argumento ou raciocínio, pelo qual ele possa concluir que resultados semelhantes deverão seguir-se a objectos semelhantes, e que o curso da natureza será sempre regular nas suas operações. […]É simplesmente o costume que leva os animais a inferirem, de cada objecto que impressiona os sentidos, o seu acompanhante habitual. (Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, IN-CM, 2002, pp. 116–117)

Segundo o meu sistema, todos os raciocínios são apenas efeitos do hábito, e o hábito só exerce influência enquanto aviva a imaginação e nos faz conceber fortemente um objecto. Poder-se-á portanto concluir que o nosso juízo e imaginação jamais podem ser contrários, e que o hábito não pode agir sobre a segunda destas faculdades de maneira a fazê-la opor-se à primeira. Esta dificuldade só pode ser eliminada se supusermos a acção das regras gerais […] pelas quais devemos dirigir os nossos juízos sobre as causas e os efeitos […]. Por elas aprendemos a distinguir as circunstâncias acidentais das causas eficazes […]. (Tratado da Natureza Humana, Lisboa, FCG, 2012, p. 190)

A compreensão de todos os casos de realização cognitiva requer uma perspectiva externista de justificação. Só esta explica que, para Hume, o sucesso epistémico não esteja reservado aos seres cujos poderes racionais são mais sofisticados. Desde os animais aos seres humanos mais sofisticados, a operação do hábito confere justificação às crenças obtidas por indução.

Os adultos mais reflexivos sabem filtrar as crenças que têm origem no hábito, regulando as inferências indutivas por meio de regras de raciocínio, de que já falámos aqui. Essa é a razão pela qual as crenças indutivas dos adultos mais reflexivos tendem a ser mais fiáveis e mais adaptativas. Mas isso não significa que os raciocínios indutivos de animais, crianças ou pessoas comuns não produzam crenças fiáveis e adaptativas, e não estejam, portanto, justificados.

O hábito permite-nos compreender simultaneamente as operações do entendimento dos humanos e da razão dos animais. Nisto reside, aliás, o caráter anticartesiano da epistemologia de Hume. Chegada aqui, a professora pensou que seria de toda a conveniência didáctica distinguir projectos epistemológicos cartesianos de projectos epistemológicos anticartesianos. Imaginando-se a dar uma aula, escreveu no seu caderno de apontamentos o que em seguida reproduzimos.

Tipos de projectos epistemológicos

E foi por se imaginar a dar uma aula que não resistiu à seguinte confissão profissional, que pela sua importância merece uma secção autónoma.

5. Nota sentimental e pedagógica

Recordou com nostalgia o momento em que tudo começou. Aquele momento em que, inteligentemente, a sua aluna a levou a ter dúvidas sobre se estaria a ensinar bem o problema da indução proposto por Hume. Sentiu gratidão, reconhecendo na sua aluna a mestre involuntária que a guiara até aqui. É verdade que, por um lado, o seu ensino teve a virtude de motivar a aluna a sentir curiosidade e a ir mais longe na compreensão de Hume; no entanto, é ainda mais importante que essa aprendizagem da aluna tenha motivado uma mudança no seu ensino.

Talvez seja a esta dialéctica que se refere o conceito, um pouco vago e estafado, de ensino-aprendizagem. Sempre tivera dúvidas sobre o que significava. Se era isto, que a sua experiência parecia confirmar, concordava que exprimia o que de melhor poderia acontecer numa sala de aula. E já que falamos em sala de aula, está na hora de aí voltarmos.

6. Regresso à sala de aula: o problema da indução redefinido

Recordemos o argumento que a tradição de ensino consagrou como a exposição adequada do problema da indução. É útil apresentá-lo de novo:

  1. Qualquer argumento a favor de uma crença acerca de factos não-observados depende do princípio da uniformidade da natureza, segundo o qual conjunções observadas (regularidades) se mantêm em casos não-observados.
  2. Nenhum argumento demonstrativo mostra que o princípio da uniformidade da natureza é necessariamente verdadeiro — é possível que a natureza não seja uniforme.
  3. Nenhum argumento provável sustenta de modo não-circular o princípio da uniformidade.
  4. Logo, não há argumentos que justifiquem o princípio da uniformidade.
  5. Logo, não há justificação para qualquer crença acerca de factos não-observados.

O estudo levado a cabo pela professora aconselhava uma importante mudança. Havendo indícios, como de facto há, de que Hume considera a indução justificada, não estamos autorizados a inferir a conclusão final. Tais indícios fazem dessa inferência um passo duvidoso. Portanto, até à conclusão afirmada em 4, o argumento não merece reparos. Daí que o problema da indução proposto por Hume, dadas as evidências textuais, deva ser redefinido: é o problema de não dispormos de argumentos que justifiquem a indução, mas não, como se viu, o problema de que a indução não está justificada.

No que à indução diz respeito, o cepticismo de Hume incide apenas, e já não é pouco, na capacidade de a razão justificar a indução por meio de argumentos prováveis ou demonstrativos. A razão, afinal, tem mais limites do que até aí se julgava.

A mudança que a professora teria de introduzir quando apresentasse o problema da indução era, sem dúvida, importante, mas também surpreendentemente simples. Podemos resumi-la em três passos. O primeiro consiste em eliminar a conclusão final do argumento. Em seguida, e esse é o segundo passo, devem ser fornecidas, por exemplo, evidências textuais que apontem para uma perspectiva externista, como as já aqui apresentadas.

Finalmente, no terceiro passo, é de toda a pertinência expor o quadro em que figuram as perspetivas acerca da justificação, de modo a que seja claro que as evidências textuais apresentadas apoiam uma perspetiva externista de justificação. Aceitando que Hume é um externista quanto à justificação, a aprovação epistémica da indução e os casos de sucesso epistémico da indução deixam de ser incompreensíveis. Portanto, ainda que não tenhamos argumentos que a justifiquem, a indução não deixa de estar justificada. Deste modo, as ideias de Hume acerca da indução recuperam a coerência que parecia faltar-lhes e menos pontas soltas ficam por resolver.

Este tratamento da indução em Hume pareceu adequado à professora, que não via razões para que se perpetuasse a tradição de ensino do problema da indução proposto por Hume, uma tradição, diga-se, aparentemente inabalável. O que explicaria a força dessa tradição? Foi a esta intrigante questão que a professora dedicou algum do seu tempo.

7. Uma explicação filosófica para a tradição de ensino do problema da indução

A professora verificou com agrado que não estava sozinha nas conclusões a que chegou a respeito do problema da indução em Hume. O que a ela, na sua modéstia, parecia razoável, tinha sido já devidamente considerado por comentadores de Hume, em particular nas últimas décadas.

A consulta ao comentário especializado deixou claro que havia três tradições interpretativas de Hume. A professora foi compelida pelo seu treino didáctico a organizar a informação recolhida, distinguindo essas tradições do modo que a seguir se expõe.

Tradições interpretativas de Hume

Regressemos à questão que motivou esta secção. O que explicaria que o ensino do problema da indução fosse determinado por uma tradição interpretativa de Hume que muitos consideram errada? Porque se perpetuaria essa tradição? Afinal, o que explicaria a resistência à mudança que uma boa parte do comentário especializado de Hume aconselhava? Na opinião da professora, sobressaía uma resposta a estas questões. Passamos a expô-la.

Essa resistência à mudança deve-se a uma convicção filosófica extraordinariamente enraizada. Trata-se da convicção de que a justificação consiste em relações inferenciais, que a epistemologia se encarregaria de descobrir a priori. Ora, esta é uma convicção internista. Daí que, durante muito tempo, os indícios externistas que se encontram em Hume não tenham sido devidamente considerados. É ainda comum ouvir-se que Hume cometeu o erro de confundir epistemologia com psicologia, como se mecanismos naturais de caráter psicológico e factos naturais do funcionamento da mente não pudessem justificar adequadamente as nossas crenças. Supõe-se que estes factos dizem respeito apenas ao contexto de descoberta e que, portanto, não têm qualquer relevância no contexto de justificação das crenças.

8. Despedida

Não surpreenderá ninguém se dissermos que uma relação pedagógica pode não ser uma relação qualquer. O seu fim coincide geralmente com o fim das aulas. Mas a relação pedagógica entre a professora e a sua aluna foi um caso especial que se prolongou sem dia marcado para terminar. Agora que o seu fim chegava, era altura de romper essa espécie de cordão intelectual que o tempo ajudou a formar. Uma troca de e-mails assinalou essa despedida.

Com a promessa de que não revelaríamos a identidade das autoras, pedimos a ambas autorização para transcrever esses e-mails. Não é que neles se vislumbre o que quer que seja de especial: são mesmo um pouco secos e banais. A sua importância reside simplesmente em terem selado o fim de uma jornada. E, já agora, aproveitamos a boleia para dizer que selam também o fim desta mistura de relato profissional e de artigo académico. Obrigado pela paciência com que nos aturaram.

Olá, Rita

Como é que estás? O 12.º tem corrido bem?

Se calhar vais achar estranho, mas tenho uma notícia para te dar. Lembras-te de teres levantado dúvidas sobre o problema da indução? E de eu não ter uma resposta para essas dúvidas? Bem, tive de estudar Hume mais uma vez, como depois te disse. Aprendi muito e agradeço-te por isso. As tuas dúvidas revelaram-se pertinentes. Se tiveres curiosidade de ver o resultado do meu trabalho, aí o tens.

Desejo-te as maiores felicidades.

A, finalmente, ex-professora de Filosofia,
Ana Dias

Olá, professora

Não me passou pela cabeça que tivesse levado tão a sério as minhas dúvidas. Até me sinto importante. Vi o ficheiro e digo-lhe que isso é que foi estudar. Ainda bem que valeu a pena. Quanto ao meu 12.º, está tudo a correr bem, obrigado.

Felicidades para si.

A, finalmente, ex-aluna,
Rita

Faustino Vaz

Notas

Referências

Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457