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Crítica
11 de Novembro de 2023   História da filosofia

A Náusea, de Jean-Paul Sartre

Uma leitura
Paulo Ruas

A Náusea foi publicado pela primeira vez em 1938, nas Éditions Gallimard, num momento em que o autor ainda era um desconhecido. Na opinião de críticos e admiradores, o livro de Sartre é um clássico da literatura do século XX. A sua publicação foi, no entanto, rejeitada num primeiro momento: só depois da intervenção de Gaston Gallimard, que leu a obra com entusiasmo, viria a ser aceite. O título (Sartre tinha optado por Melancolia), ao que parece, foi uma exigência do próprio Gallimard, com a qual o autor concordou.

O livro viria a sofrer diversas alterações ao longo de tempo, acabando por se transformar em romance quando, inicialmente, foi projectado como um ensaio filosófico. Foi Simone de Beauvoir quem sugeriu a ideia: Sartre tinha-lhe dado a forma de um diário e retomou o trabalho.1 Uma nova versão foi redigida em Berlim, cidade onde Sartre permaneceria durante o ano académico de 1933-34 ao abrigo de uma bolsa de investigação concedida pelo Instituto Francês para estudar as relações entre o psiquismo e a fisiologia.

O objectivo de Sartre, no entanto, era a fenomenologia de Edmund Husserl, uma corrente filosófica então pouco divulgada em França, e da qual ele próprio viria a tornar-se num dos mais conhecidos representantes. Interrompeu as suas actividades de professor de Filosofia no liceu de Le Havre, uma cidade costeira na Normandia cujos traços serviram de cenário ao livro,2 e viajou para Berlim.

Durante dez meses, Sartre passou os dias a ler Husserl no original alemão e a refazer o manuscrito do seu romance. Não tinha pela frente uma tarefa fácil: transformar em literatura um projecto de ensaio filosófico sobre a contingência acabaria por se revelar um enorme desafio. A filosofia é geralmente uma disciplina austera, e esta característica ambígua, que parece excluir todo o dramatismo em benefício do rigor e da abstracção, nem sempre se coaduna bem com a arte do romance. Apesar das revisões a que o texto foi submetido, a impressão de que estas dificuldades não foram totalmente superadas permanece. Mas, feitas as contas, as suas virtudes (que são variadas) tendem em geral a ultrapassar os seus defeitos.

Embora a versão inicial tenha sido escrita antes de Sartre descobrir a filosofia de Husserl, a fenomenologia forneceu-lhe a moldura conceptual de que precisava para o seu tema, além de um método narrativo centrado na descrição aos fenómenos tal como se apresentam à consciência (aquilo a que Husserl chamou Erlebnis e que Sartre designaria por vécu — o vivido). No entanto, não se encontra nele, como acontece numa certa literatura, a exposição da vida interior do protagonista, que aqui surge reduzida a um ponto sem espessura sem psicologia. A Náusea adopta a perspectiva da primeira pessoa mas, como se verá, vai além de Husserl.

O facto é que, tratando-se de um conjunto de anotações sobre a contingência, nada seria mais propício do que a estrutura de um diário. É deste modo, de resto, que o livro é apresentado pelos editores (na verdade, pouco se sabe das circunstâncias da sua publicação), e este quase anonimato tende a sublinhar o que há de único na experiência que estas páginas registam. Sobre a sua personagem, escreverá Sartre — citando L.-F. Céline na epígrafe de A Náusea — não passa de “um rapaz sem importância colectiva; um indivíduo, nada mais”. No entanto, algo de decisivo tem lugar:

[…] Sábado, uns garotos estavam a atirar pedrinhas ao mar para as fazer saltar de ricochete, e pretendi atirar uma, como eles. Nesse momento detive-me, deixei cair a pedra e fui-me embora. Devia ir com uns ares de transviado, com certeza, porque os garotos desataram a rir quando voltei as costas. […] Havia qualquer coisa que me repugnou. […] Se ao menos soubesse de que tive de medo, já seria um grande passo em frente.

O que é curioso é que não estou disposto de modo algum a considerar-me louco. Vejo até com evidência que não estou louco: estas mudanças ocorrem todas nos objectos. É isso, pelo menos, que queria ter a certeza. […]

Gosto imenso de apanhar do chão castanhas, trapos velhos, principalmente papéis. Sinto prazer de pegar neles, em fechá-los na mão; pouco falta para os levar à boca, como fazem as crianças. Anny ficava furiosa quando me via levantar por uma ponta bocados de papel pesados e sumptuosos, mas provavelmente sujas de trampa […]; depois limpo a palmas das mãos cheias de lama a uma parede ou ao tronco de um a árvore. […]

[…] Ora bem, hoje pusera-me eu a olhar para as botas fulvas dum oficial de cavalaria que vinha a sair do quartel. Ao segui-las com os olhos, vi um papel que estava caído ao lado de uma poça. Julguei que o oficial, com o calcanhar, fosse enterrar o papel na lama, mas não: de um passo só, ultrapassou o papel e a poça. Aproximei-me: era uma página de papel pautado arrancado dum caderno escolar. A chuva tinha-a repassado e retorcido; estava cheia de folhas e de tumefacções, como uma mão queimada. O traço vermelho da margem desbotara, tornando-se uma humidade cor-de-rosa; em alguns sítios, a tinta escorrido. A parte debaixo da página estava escondida sob uma crosta de lama. Abaixei-me; já sentia o prazer de mexer naquela massa tenra e fresca que me rolaria entre os dedos em bolinhas cinzentas… Não pude.

[…] Depois endireitei-me, de mãos vazias. Já não sou livre, já não posso fazer o que quero.

Os objectos não deviam impressionar-nos o tacto, visto que não vivem. Servimo-nos deles, pomo-los no seu lugar, vivemos no meio deles: não úteis, nada mais. E, a mim, os objectos tocam-me; é insuportável. Tenho medo de entrar em contacto com eles, como se fossem animais vivos.

Agora percebo; lembro-me melhor do que senti, no outro dia à beira-mar, quando tinha a pedra na mão. Era uma espécie de enjoo adocicado. Que desagradável que era! E a sensação vinha da pedra. […] Sim, é isso, é exactamente isso: uma espécie de náusea nas mãos.3

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Dúvidas?

É desta forma, com tudo o que estes episódios possuem de insólito e de sintomático, que encontramos Antoine Roquentin: imerso num mundo de objectos que ora o atraem ou repelem (a náusea), e que parecem dispor de vida própria — uma experiência inesperada e perturbadora que tem dificuldade em compreender e ainda menos controlar. Roquentin é o que por vezes se chamou um ser associal: este homem solitário e de espírito instável vê-se confrontado, através das suas deambulações, perplexidades e inconsequências (está a escrever a biografia de outro aventureiro, o marquês de Rollebon, que conhece Marie Antoinette, depois a República, o Império e, por fim, a Restauração, e a quem Sartre se diverte a atribuir um certo número dos seus traços — a fealdade, o prazer na companhia das mulheres e o gosto pelas viagens, por exemplo — e que acabará por abandonar), com o facto de, bem vistas as coisas, não ter o direito de existir, uma vez que, em última análise, como não existe um deus, nada poderia justificar a existência.

Mas como descrever a contingência? A resposta encontra-a na fenomenologia de Husserl. Embora o seu ponto de partida não pudesse, à primeira vista, ser mais estranho às preocupações de Sartre, quer saber como é o conhecimento possível e identificar a base em que assenta. Para isso, recorre à intencionalidade da consciência e à epoqué: é ela que se permite suspender o juízo acerca da existência do mundo exterior e revelar as estruturas da consciência que fazem dos fenómenos o objecto de experiência que de facto são. É, segundo Husserl, o regresso às próprias coisas e ao modo como se manifestam à consciência. Sartre irá deitar fora a epoqué, mas guarda ciosamente o que considera ser a grande conquista de Husserl: a intencionalidade da consciência. É ela que lhe permitirá romper com a herança cartesiana na convicção de que a consciência só existe na medida em que se transcende em direcção ao seu objecto. Desprovida de interioridade, em si mesma é um nada.

Tudo está fora dela, aliás: um gato que passa, o corpo que dói, e até, por estranho que pareça, o Eu que apenas pela reflexão se dá a conhecer.4 Esta ausência de interioridade é uma marca da intencionalidade: a consciência, escreverá Sartre mais tarde em O Ser e o Nada, é sempre consciência de alguma coisa que não ela própria.

Que quer dizer tudo isto? Husserl notou que os objectos (o lápis que seguro nos dedos, etc.) aparecem à consciência como existentes, isto é, como algo que seria independente da percepção que deles temos. Mesmo que decidamos colocar a existência do mundo entre parêntesis, suspendendo voluntariamente o juízo quanto à sua efectividade (a epoqué), nada de decisivo se altera: continuaremos a experimentá-los como existentes ainda que o mundo lá fora não exista. Vejamos com algum cuidado o que isto implica.

Um lápis, ao ser observado, oferece-se numa experiência muito diferente daquela que dele temos ao captá-lo através da imaginação. No entanto, a diferença entre actos perceptivos e actos da imaginação continua a estar presente na experiência quer o lápis exista realmente quer não. A existência seria, portanto, uma característica dos objectos tal como nos são dados na percepção; numa palavra, daquilo que, na medida em que se manifestam, eles significam para nós. Por esta razão, em virtude da epoqué, Husserl considera a existência não só como uma componente de uma certa classe de fenómenos, mas como algo que faria parte da sua essência. Ora, este ponto está longe de ser trivial. Uma vez que a essência de um lápis é constituída pelo grupo de características que fazem do lápis o tipo de fenómeno que ele é — ou seja, aquilo que significa ser um lápis — é necessário concluir que existência e significado estão rigorosamente no mesmo plano. E é isto que Sartre contesta.

A náusea revelar-nos-ia, pelo contrário, que a existência precede a essência. Esta fórmula, que depressa se tornou célebre, nem sempre foi bem compreendida. As suas raízes remontam à Idade Média, onde a distinção entre essência e existência seria amplamente tratada pelos escolásticos. A essência de um objecto é constituída pelo conjunto de características que podemos usar para definir o seu conceito. Um triângulo, por exemplo, pode ser definido como um polígono com três lados, e é nisto que reside a sua essência.

Em todo o caso, não são apenas as figuras geométricas que têm uma essência; o mesmo sucede com os objectos físicos ou as criações da nossa imaginação: Pégaso, a caverna de Ali Babá ou uma sereia, por exemplo. Embora Pégaso não exista, sabemos o que ele é. Podemos falar de cavalos alados e, conhecendo o que “Pégaso” significa, ficamos a conhecer a essência do objecto a que o nome se refere. Como se vê, um objecto pode ter uma essência e não existir. Mas o que é a existência? Outra maneira de fazer a pergunta seria a seguinte: o que é necessário acontecer para que Pégaso, ou uma sereia, existam? A resposta é simples: que ambos estejam presentes no mundo. Existir é, portanto, estar presente no mundo. O romance de Sartre dá-nos a exposição (dramatizada) desta ideia.

O que significa, então, afirmar que a existência precede a essência? Significa, em primeiro lugar que, antes de o mundo ter para nós qualquer sentido, o que a consciência nele apreende é unicamente a existência; em segundo lugar, que a consciência, ao contrário de constituir o mundo (como pretendia Kant e depois Husserl), revela-o. É esta revelação, aliás, que explica a náusea de Roquentin.

A revelação da existência tem uma dupla natureza. Por um lado, o mundo é apreendido na sua nudez, despido de qualquer significado. A consciência permitir-nos-ia captar directamente os objectos como existentes e não apenas as suas características, o seu significado ou essência. Este mundo, em toda a sua opacidade primordial, é inumano (ou, se quisermos, pré-humano): está ali, à nossa frente, sem que nos seja possível desembaraçarmo-nos dele, compacto e imóvel, precisamente como se estivesse a mais. Mas, como o que captamos neste tipo de experiência é apenas a existência, assim, quer se queira quer não, é a própria existência que está a mais. Seria isto a contingência: nada justifica ou pode justificar o facto de alguma coisa existir. A náusea é a descoberta do absurdo.

Ora, por outro lado, o sentimento de estranheza que esta experiência provoca é um convite a que nos comprometamos. Se tudo é contingente e rapidamente passa do ser ao não-ser, então tudo está por fazer: a contingência será também a descoberta da liberdade. Se é inútil esperar que o mundo nos revele uma razão de ser que, aliás, não possui, e com ela a chave para compreender a nossa existência, é que somos nós, afinal, os responsáveis pela sua criação. Esta ideia, cujo desenvolvimento irá ocupar Sartre em O Ser e o Nada, obra da qual A Náusea constitui um breve prelúdio, contém muito de surpreendente. Num só golpe, eis que nos tornamos irremediavelmente livres e responsáveis pelo que o mundo é.

Numa passagem célebre, Sartre descreve esta descoberta como se segue:

[…] Fiquei sem respiração. Nunca, antes destes últimos dias, eu tinha pressentido o que queria dizer “existir”. Era como os outros, como os que passeiam à beira-mar nos seus trajes de primavera. Dizia, como eles: “O mar é verde; aquele ponto branco, acolá, é uma gaivota”; mas não sentia que essas coisas existiam, que a gaivota era uma “gaivota existente”; geralmente a existência esconde-se. Está presente à nossa volta, em nós, somos nós; não se podem dizer duas palavras sem falar dela, e afinal não lhe tocamos. Quando eu julgava pensar nela, é de crer que não pensava em nada, tinha a cabeça vazia ou, quando muito, uma palavra na cabeça, a palavra “ser”. […] Dizia para comigo que o mar pertencia à classe dos objectos verdes, ou que o verde fazia parte das qualidades do mar. […] Se me tivessem perguntado o que era a existência, teria respondido de boa-fé que não era nada, era apenas uma forma vazia que vinha juntar-se às coisas por fora, sem lhes modificar em nada a natureza. E depois sucedeu aquilo: de repente ali estava, ali estava, era claro como água: a existência dera-se subitamente a conhecer. Perdera o seu aspecto inofensivo de categoria abstracta: era a própria massa das coisas; aquela raiz estava amassada em existência. Ou antes, a raiz, o gradeamento do jardim, o banco, a relva rala do tabuleiro, tudo se tinha evaporado: a diversidade das coisas, a sua individualidade, já não era mais do que uma aparência, um verniz. Este verniz derretera-se; restavam massas monstruosas e moles, em desordem — nuas, de uma medonha e obscena nudez.

[…] Vem-me agora à pena a palavra “absurdo”; há bocadinho, no jardim, não a encontrei, mas também não a procurava, não precisava dela: ia pensando sem palavras, sobre as coisas, com as coisas. […] E sem formular claramente nenhum pensamento, eu compreendia que tinha encontrado a chave da Existência, a chave das minhas Náuseas, da minha própria vida. De facto, tudo o que pude alcançar em seguida me fez voltar à noção desse absurdo fundamental. […] É claro que eu não sabia tudo, não tinha visto a semente germinar nem a árvore crescer. Mas, diante daquela espessa massa rugosa, nem a ignorância nem o saber tinha importância: o mundo das explicações e das razões não é o da existência. […] Aquela raiz existia na medida em que eu não podia explicá-la. Cada uma das suas qualidades lhe escapava um pouco, escorria para fora ela, tornava-se meio sólida, quase uma coisa; cada uma estava a mais na raiz, e o cepo inteiro dava-me a impressão de sair um pouco para fora de si próprio, de se perder num estranho excesso. Raspei com o calcanhar aquela garra preta: tinha vontade de a esfolar um pouco. Por nada, por desafio, para fazer surgir no couro curtido o cor-de-rosa absurdo duma escoriação. Para brincar com o absurdo do mundo. Mas quando afastei o pé, vi que a casca tinha permanecido preta.

[…] Esse momento foi extraordinário. Eu estava ali, imóvel e gelado, mergulhado um êxtase horrível. Mas, no próprio seio desse êxtase, qualquer coisa de novo acabava de aparecer; eu compreendia a Náusea, possuía-a. A bem dizer, não formulava intimamente as minhas descobertas. Mas creio que me seria fácil agora traduzi-las por palavras. O essencial é a contingência. Quer dizer que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é estar presente, simplesmente; os existentes aparecem, deixam que os encontremos, mas não se podem deduzir. Há pessoas, creio eu, que perceberam isto. […] Nenhum ser necessário poderia explicar a existência: a contingência não é uma ilusão de ótica, uma aparência que se possa dissipar; é o absoluto, por conseguinte, a gratuitidade perfeita. Tudo é gratuito: este jardim, esta cidade e eu mesmo. É o sentimento disso, quando acontece ele entrar em nós, que nos dá a volta ao estômago, e então começa tudo a andar à roda como da outra vez no Rendez-vous dos Ferroviários; aí está a Náusea, aí está o que os safados […] tentam esconder a si próprios com a sua mania dos direitos. Mas […] ninguém existe por direito.

[…] Deixei-me ficar no meu banco, sem resistência, aturdido, confundido por aquela profusão de seres sem origem: de todos os lados eclosões, desabrochamentos; a existência zumbia-me aos ouvidos, a minha própria carne era sensível à sua pressão e entreabria-se, abandonava-se à germinação universal; era repugnante. “Mas porquê?”, pensei eu, “porquê tantas existências, já que todas se parecem?” […] Pus-me a rir.

É neste mundo inóspito, despido de significado, e que nada parece capaz de justificar, que a liberdade irrompe. Existir, para uma consciência, é projectar-se para além de si própria, perder-se no que a transcende. O homem será aquilo que projectar ser — isto é, o que for capaz de fazer de si próprio e das circunstâncias que o ligam aos outros homens. Sem lhe roubar a gratuitidade — o que, evidentemente, nos escapa — poderá fazer da situação em que se viu lançado (a expressão é de Heidegger), um mundo de sentido e de realizações. Na falta de um desígnio predefinido, ou de um ser capaz de justificar a existência — Deus — é a liberdade que nos define.

Não admira que até a um leitor mais distraído a náusea surja como o sintoma de um mal-estar sem remissão: a morte de Deus, para utilizar uma expressão cara a Nietzsche, é, como a liberdade, não tanto um motivo de regozijo mas um fardo que será preciso carregar. Porque, se somos livres, é para fazer da situação em que nos encontramos o contexto para o que queremos vir a ser, e não apenas por nós próprios, mas, sobretudo, porque o desejamos para todos os homens. Este ponto, onde a influência de Kant não podia ser mais transparente, só irá ser tratado quase uma década depois, na conferência que deu origem a O Existencialismo é um Humanismo; contudo, o resultado deixa Sartre insatisfeito.5 É, no essencial, a tragédia de Abraão, tal como Kierkegaard a entende: nada lhe prova que a voz que julga escutar e lhe exige que mate o seu filho Isaac é realmente a voz de Javé ou se está simplesmente a ser vítima de uma alucinação. Em qualquer caso, o resultado é inescapável: cavaleiro da fé ou doido varrido,6 é preciso de uma vez por todas escolher. Para um ateu como Sartre a situação não é melhor: em parte porque o que escolhemos para nós próprios equivale a comprometermo-nos com o que desejamos para todos os homens, e em parte porque nada, à partida, nos pode indicar o que fazer, cada escolha é uma aposta e não um destino. Se não usarmos a liberdade para nos comprometermos, condenamo-nos a pairar sobre o mundo como uma bela alma, ou, o que é pior, um espectro; deixar-nos-emos alienar, e é a própria liberdade que se esvazia. Pelo contrário, o compromisso devolve-nos à terra, mas esmaga-nos com o seu peso ao mesmo tempo que nos revela o que somos.7

Roquentin, porém, hesita. Pouco dado a abandonar a sua solidão (na qual não se sente confortável) para se comprometer com a história, este homem pouco sociável e que teme pelo seu equilíbrio mental, parece encontrar-se num beco sem saída. Será Roquentin um niilista? É pouco provável. Os factos são estes: a descoberta do absurdo parece ter feito dele um esteta (se é que já não o era antes), e não um compagnon de route, um negociante ou um mero funcionário. No Rendez-vous dos Ferroviários, por exemplo, num momento em que a náusea se instala e ameaça engolir tudo à sua volta, a música acalma-o. Aos poucos, tudo regressa ao normal: através da arte, a irremediável desordem do mundo entra nos eixos e, por um momento, deixa-se dominar. É o regresso a Nietzsche, para quem sem a música a existência teria sido um erro? Seja como for, nada nos obriga a pôr de lado essa hipótese.

Talvez Sartre, num momento ou noutro, tenha encontrado na concepção terapêutica da arte um motivo de conforto. Antoine Roquentin é, no entanto, um inconsequente: tal como Moisés ao avistar a Terra Prometida, descobre a liberdade mas não sabe o que fazer com ela. Mathieu Delarue, outro alter ego de Sartre e o protagonista de Os Caminhos da Liberdade — uma tetralogia que começou a ser publicada logo após a Libertação (ficou-se por três volumes completos) — está na mesma situação. Contudo, apesar dos prazeres do piano, ao que parece uma herança familiar (tocava sobretudo Beethoven e Chopin), Sartre acabaria por seguir outro caminho.

Há, no entanto, em Roquentin muito de exemplar. O valor da arte e da literatura (como o do diário que decide escrever num esforço para compreender a náusea que o assola), só se explica pelo desejo que impele cada homem na procura de um sentido para a sua vida e, em simultâneo, a encontrar uma resposta (por mais limitada, titubeante e ingénua que seja) para o problema da existência em geral. Sem este esforço, também a filosofia seria mais pobre.8

Paulo Ruas
Versão inglesa originalmente publicada em Forma de Vida. Tradução portuguesa do autor.

Bibliografia

Obras de Sartre

Bibliografia secundária

Notas

  1. Sartre pôde mais tarde reconhecer publicamente que, sem a extensa revisão de Simone de Beauvoir, o seu manuscrito nunca teria chegado a atingir um patamar adequado para publicação. Por outro lado, aos setenta anos, numa entrevista a Michel Contat, afirmou que A Náusea é um dos livros (a par dos dez volumes das Situations e da Critique de la Raison Dialectique, a sua segunda grande obra de filosofia) que gostaria que continuasse a ser lido após a sua morte.↩︎
  2. Le Havre surge no romance sob a designação de Bouville (isto é: boue + ville), literalmente cidade da lama, um bom indicativo da relação pouco harmoniosa que Sartre manteve com a cidade onde foi professor de liceu durante alguns anos, antes de obter uma colocação em Paris, e na qual uma parte de A Náusea foi escrita (a primeira versão), antes da estadia em Berlim.↩︎
  3. A tradução dos extractos citados é da responsabilidade de António Coimbra Martins (Livros do Brasil).↩︎
  4. Veja-se, a este respeito, La Transcendence de l’Ego, obra escrita na mesma época e na qual Sartre se distancia da filosofia de Husserl, em particular, da ideia de um ego como estrutura interna da consciência, de cuja função unificadora resultaria o carácter pessoal e integrado da experiência.↩︎
  5. Ao que parece, O Existencialismo é um Humanismo é a única obra que Sartre lamentou ter publicado. Embora seja considerada uma boa introdução ao seu pensamento — numa época hoje remota chegou a ser frequente a sua utilização pelos professores de Filosofia do ensino secundário em Portugal — o seu tom informal não evita que transpareçam algumas das dificuldades teóricas que Sartre viria a sentir ao escrever a sua ética, projecto do qual desistiu e cujos cadernos preparatórios seriam publicados postumamente por Arlette Elkaïm-Sartre (Cahiers pour une Morale). A conferência foi proferida em Paris, no Club Maintenant, em Outubro de 1945.↩︎
  6. Cavaleiro da fé é uma expressão do próprio Kierkegaard que, a propósito de Abraão, lhe confere uma tonalidade celebratória e edificante. A escolha imposta a Abraão está, segundo este autor, para lá dos limites da razão (veja-se, por exemplo, Temor e Tremor, na edição da Relógio d’Água).↩︎
  7. A posição de Sartre sobre a liberdade seria reformulada após a publicação de O Ser e o Nada. Veja-se, por exemplo, a Critique de la Raison Dialétique ou o estudo sobre Flaubert, L’Idiot de la Familie).↩︎
  8. Um leitor interessado em conhecer a obra de Sartre e que pretenda adquirir alguns dos seus livros em português, encontra-se infelizmente numa posição ingrata. Existem, além de O Existencialismo é um Humanismo (integrado nas obras completas de Vergílio Ferreira, o autor da tradução e de um extenso estudo sobre Sartre e a fenomenologia), apenas três outros títulos disponíveis. A Náusea, que durante anos foi sendo reeditado como livro de bolso na Europa-América, está agora na colecção Dois Mundos, da Livros do Brasil; Os Dados estão Lançados e As Mãos Sujas, duas peças de teatro, foram nos últimos anos reeditadas pela Minotauro. A autobiografia de Sartre, As Palavras, outro clássico do século XX, há décadas publicado na Unibolso, talvez se encontre em bom estado nos sítios da Bibliofeira ou do OLX. O mesmo se poderá dizer de alguns volumes das Situações (não estão traduzidos todos), dos Cadernos de Guerra (1939-40), e dos três volumes que constituem Os Caminhos da Liberdade.↩︎
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