A Náusea foi publicado pela primeira vez em 1938, nas Éditions Gallimard, num momento em que o autor ainda era um desconhecido. Na opinião de críticos e admiradores, o livro de Sartre viria a tornar-se um clássico da literatura do século XX. A sua publicação foi, no entanto, rejeitada num primeiro momento: só depois da intervenção de Gaston Gallimard, que leu a obra com entusiasmo, acabaria por ser aceite. O título (Sartre optara por Melancolia, numa referência à gravura de Albrecht Dürer), foi uma exigência do próprio Gallimard, com a qual Sartre felizmente concordou.
O livro sofreu diversas alterações ao longo de tempo, acabando por se transformar em romance quando, inicialmente, fora projectado como um ensaio filosófico. Foi Simone de Beauvoir quem sugeriu a ideia. Sartre tinha-lhe dado a forma de um diário e retomou o trabalho.1 Uma nova versão foi redigida em Berlim, cidade onde o autor permaneceria durante o ano académico de 1933–1934 ao abrigo de uma bolsa de investigação concedida pelo Instituto Francês para estudar as relações entre o psiquismo e a fisiologia.
Porém, o verdadeiro objectivo de Sartre era a fenomenologia de Husserl, uma corrente filosófica então ainda pouco divulgada em França, e da qual ele próprio viria a tornar-se um dos mais conhecidos representantes. Interrompeu as suas actividades de professor de Filosofia no liceu de Le Havre, uma cidade costeira na Normandia cujos traços serviram de cenário ao livro,2 e viajou para Berlim.
Durante dez meses, Sartre passou os dias a ler Husserl no original alemão e a refazer o manuscrito do seu romance. Não tinha pela frente uma tarefa fácil. Transformar em literatura um projecto de ensaio filosófico sobre a contingência acabaria por se revelar um enorme desafio. A filosofia é geralmente uma disciplina austera, e esta característica ambígua, que parece excluir todo o dramatismo em benefício do rigor e da abstracção, nem sempre se coaduna bem com a arte do romance. Apesar das revisões a que o texto foi submetido, a impressão de que estas dificuldades não foram totalmente superadas permanece. Mas, feitas as contas, as suas virtudes (que são variadas) superam com facilidade os seus poucos defeitos.
Embora a versão inicial tenha sido escrita antes de Sartre descobrir a filosofia de Husserl, a fenomenologia forneceu-lhe a moldura conceptual de que precisava para o seu tema, além — o que não é pouco — de um método narrativo centrado na descrição aos fenómenos tal como se apresentam à consciência (aquilo a que Husserl chamou Erlebnis e que Sartre designaria por vécu — o vivido). No entanto, não se encontra nele, como acontece numa certa literatura, a exposição da vida interior do protagonista, que aqui surge reduzido a um ponto sem espessura nem psicologia. A Náusea adopta a perspectiva da primeira pessoa (como, de resto, a fenomenologia) mas vai além de Husserl e, em pontos essenciais, opõe-se-lhe.
Ao protagonista, Antoine Roquentin, descobrimo-lo imerso num mundo povoado de objectos que em simultâneo o atraem e repelem — a náusea — e que parecem dispor de vida própria, uma experiência inesperada e perturbadora que tem dificuldade em compreender e controlar. Roquentin é o que há muito se chamou um ser associal: este homem solitário e de espírito instável irá confrontar-se, através das suas deambulações, perplexidades e inconsequências (está a escrever a biografia de outro aventureiro, o marquês de Rollebon, que conhece Marie Antoinette, depois a República, o Império e, por fim, a Restauração, e a quem Sartre se diverte a atribuir um certo número dos seus traços — a fealdade, o prazer na companhia das mulheres e o gosto pelas viagens, mas não o da intriga — e que acabará por abandonar), com o facto de, bem vistas as coisas, não ter o direito de existir, uma vez que, em última análise, como não existe um deus, nada poderia justificar a existência.
Mas como descrever a contingência? A resposta, mais uma vez, encontra-se (em parte) na fenomenologia de Husserl. O seu ponto de partida não poderia, à primeira vista, ser mais estranho às preocupações de Sartre: quer saber como é o conhecimento possível e identificar os fundamentos — isto é, as verdades mais básicas — em que este assenta. Daí o recurso à intencionalidade da consciência e à epoqué. A epoqué permite-lhe suspender o juízo acerca da existência do mundo exterior e revelar as estruturas da consciência que fazem dos fenómenos o objecto de experiência que de facto são; é, segundo Husserl, o regresso às próprias coisas e ao modo como se manifestam à consciência. Sartre irá deitar fora a epoqué, mas guarda ciosamente o que considera ser a grande conquista de Husserl: a intencionalidade da consciência. É ela que lhe permitirá romper com a herança cartesiana na convicção de que a consciência só existe na medida em que se transcende em direcção ao seu objecto. Desprovida de interioridade, em si mesma é um nada.
Tudo está fora dela, aliás: um gato que passa, o corpo que dói, e até, por estranho que pareça, o Eu que apenas pela reflexão se dá a conhecer.3 Esta ausência de interioridade é uma marca da intencionalidade: a consciência, escreverá Sartre mais tarde em L’Être et le Néant, é sempre consciência de alguma coisa diferente de si própria.
Que quer dizer tudo isto? Husserl notou que os objectos (o lápis que seguro nos dedos, etc.) aparecem à consciência como existentes, isto é, como algo independente da percepção que deles temos. Mesmo que decidamos colocar a existência do mundo entre parêntesis, suspendendo voluntariamente o juízo quanto à sua efectividade (a epoqué), nada de decisivo se altera quanto a isto: continuamos a experimentá-los como existentes ainda que o mundo lá fora não exista. Vejamos com algum cuidado o que isto significa.
Um lápis, ao ser observado, oferece-se numa experiência muito diferente daquela que dele temos ao captá-lo através da imaginação. No entanto, a diferença entre actos perceptivos e actos da imaginação continua a estar presente na experiência quer o lápis exista realmente quer não. A existência seria, portanto, uma característica dos objectos tal como nos são dados na percepção; numa palavra, daquilo que, na medida em que se manifestam, eles significam para nós. Por esta razão, em virtude da epoqué, Husserl considera a existência não só como uma componente de uma certa classe de fenómenos, mas como algo que faria parte da sua essência. Ora, este ponto está longe de ser trivial. Uma vez que a essência de um lápis é constituída pelo grupo de características que fazem do lápis o tipo de fenómeno que ele é — ou seja, aquilo que significa ser um lápis — é necessário concluir que existência e significado estão rigorosamente no mesmo plano. E é isto que Sartre contesta.
A náusea revelar-nos-ia, pelo contrário, que a existência precede a essência. Esta fórmula, que depressa se tornou célebre, nem sempre foi bem compreendida. As suas raízes remontam à Idade Média, onde a distinção entre essência e existência seria amplamente tratada pelos escolásticos. A essência de um objecto é constituída pelo conjunto de características que podemos usar para definir o seu conceito. Um triângulo, por exemplo, pode ser definido como um polígono com três lados, e é neste conjunto de características (ser um polígono e possuir três lados) que reside a sua essência.
Em todo o caso, não são apenas as figuras geométricas que têm uma essência; o mesmo sucede com os objectos físicos ou as criações da nossa imaginação: Pégaso, a caverna de Ali Babá ou uma sereia, por exemplo. Embora Pégaso não exista, sabemos o que ele é. Podemos falar de cavalos alados e, conhecendo o que “Pégaso” significa, ficamos a conhecer a essência do objecto a que o nome se refere. Como se vê, um objecto pode ter uma essência e não existir. Mas o que é a existência? Outra maneira de fazer esta pergunta é a seguinte: o que é necessário acontecer para que Pégaso, ou uma sereia, existam? A resposta é simples: que ambos estejam presentes no mundo. Existir é, portanto, estar presente no mundo. O romance de Sartre dá-nos a exposição (dramatizada) desta ideia.
O que significa, então, afirmar que a existência precede a essência? Significa, em primeiro lugar que, antes de o mundo ter para nós qualquer sentido, o que a consciência nele apreende é unicamente a existência; em segundo lugar, que a consciência, ao contrário de constituir o mundo (como pretendia Kant e depois Husserl), revela-o. É esta revelação, aliás, que explica a náusea de Roquentin.
A revelação da existência tem uma dupla natureza. Por um lado, o mundo é apreendido na sua nudez, despido de qualquer significado. A consciência permitir-nos-ia captar directamente os objectos como existentes e não apenas as suas características, o seu significado ou essência. Este mundo, em toda a sua opacidade primordial, é inumano (ou, se quisermos, pré-humano): está ali, à nossa frente, sem que nos seja possível desembaraçarmo-nos dele, compacto e imóvel, precisamente como se estivesse a mais. Mas, como o que captamos neste tipo de experiência é apenas a existência, assim, quer se queira quer não, é a própria existência que está a mais. Seria isto a contingência: nada justifica ou pode justificar o facto de alguma coisa existir. A náusea é a descoberta do absurdo.
Ora, por outro lado, o sentimento de estranheza que esta experiência provoca é um convite a que nos comprometamos. Se tudo é contingente e rapidamente passa do ser ao não-ser, então tudo está por fazer: a contingência será também a descoberta da liberdade. Se é inútil esperar que o mundo nos revele uma razão de ser que, aliás, não possui, e com ela a chave para compreender a nossa existência, é que somos nós, afinal, os responsáveis pela sua criação. Esta ideia, cujo desenvolvimento irá ocupar Sartre em L’Être et le Néant, obra da qual A Náusea constitui um breve prelúdio, contém muito de surpreendente. Num só golpe, eis que nos tornamos irremediavelmente livres e responsáveis pelo que o mundo é.
Numa passagem célebre, Sartre descreve esta descoberta como se segue:
Fiquei sem respiração. Nunca, antes destes últimos dias, eu tinha pressentido o que queria dizer “existir”. Era como os outros, como os que passeiam à beira-mar nos seus trajes de primavera. Dizia, como eles: “O mar é verde; aquele ponto branco, acolá, é uma gaivota”; mas não sentia que essas coisas existiam, que a gaivota era uma “gaivota existente”; geralmente a existência esconde-se. Está presente à nossa volta, em nós, somos nós; não se podem dizer duas palavras sem falar dela, e afinal não lhe tocamos. Quando eu julgava pensar nela, é de crer que não pensava em nada, tinha a cabeça vazia ou, quando muito, uma palavra na cabeça, a palavra “ser”. […] Dizia para comigo que o mar pertencia à classe dos objectos verdes, ou que o verde fazia parte das qualidades do mar. […] Se me tivessem perguntado o que era a existência, teria respondido de boa-fé que não era nada, era apenas uma forma vazia que vinha juntar-se às coisas por fora, sem lhes modificar em nada a natureza. E depois sucedeu aquilo: de repente ali estava, ali estava, era claro como água: a existência dera-se subitamente a conhecer. Perdera o seu aspecto inofensivo de categoria abstracta: era a própria massa das coisas; aquela raiz estava amassada em existência. Ou antes, a raiz, o gradeamento do jardim, o banco, a relva rala do tabuleiro, tudo se tinha evaporado: a diversidade das coisas, a sua individualidade, já não era mais do que uma aparência, um verniz. Este verniz derretera-se; restavam massas monstruosas e moles, em desordem — nuas, de uma medonha e obscena nudez.
[…]
Vem-me agora à pena a palavra “absurdo”; há bocadinho, no jardim, não a encontrei, mas também não a procurava, não precisava dela: ia pensando sem palavras, sobre as coisas, com as coisas. […] E sem formular claramente nenhum pensamento, eu compreendia que tinha encontrado a chave da Existência, a chave das minhas Náuseas, da minha própria vida. De facto, tudo o que pude alcançar em seguida me fez voltar à noção desse absurdo fundamental. […] É claro que eu não sabia tudo, não tinha visto a semente germinar nem a árvore crescer. Mas, diante daquela espessa massa rugosa, nem a ignorância nem o saber tinha importância: o mundo das explicações e das razões não é o da existência. […] Aquela raiz existia na medida em que eu não podia explicá-la. Cada uma das suas qualidades lhe escapava um pouco, escorria para fora ela, tornava-se meio sólida, quase uma coisa; cada uma estava a mais na raiz, e o cepo inteiro dava-me a impressão de sair um pouco para fora de si próprio, de se perder num estranho excesso. Raspei com o calcanhar aquela garra preta: tinha vontade de a esfolar um pouco. Por nada, por desafio, para fazer surgir no couro curtido o cor-de-rosa absurdo duma escoriação. Para brincar com o absurdo do mundo. Mas quando afastei o pé, vi que a casca tinha permanecido preta.
[…]
Esse momento foi extraordinário. Eu estava ali, imóvel e gelado, mergulhado num êxtase horrível. Mas, no próprio seio desse êxtase, qualquer coisa de novo acabava de aparecer; eu compreendia a Náusea, possuía-a. A bem dizer, não formulava intimamente as minhas descobertas. Mas creio que me seria fácil agora traduzi-las por palavras. O essencial é a contingência. Quer dizer que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é estar presente, simplesmente; os existentes aparecem, deixam que os encontremos, mas não se podem deduzir. Há pessoas, creio eu, que perceberam isto. […] Nenhum ser necessário poderia explicar a existência: a contingência não é uma ilusão de ótica, uma aparência que se possa dissipar; é o absoluto, por conseguinte, a gratuitidade perfeita. Tudo é gratuito: este jardim, esta cidade e eu mesmo. É o sentimento disso, quando acontece ele entrar em nós, que nos dá a volta ao estômago, e então começa tudo a andar à roda como da outra vez no Rendez-vous dos Ferroviários; aí está a Náusea, aí está o que os safados […] tentam esconder a si próprios com a sua mania dos direitos. Mas […] ninguém existe por direito.
[…]
Deixei-me ficar no meu banco, sem resistência, aturdido, confundido por aquela profusão de seres sem origem: de todos os lados eclosões, desabrochamentos; a existência zumbia-me aos ouvidos, a minha própria carne era sensível à sua pressão e entreabria-se, abandonava-se à germinação universal; era repugnante. “Mas porquê?”, pensei eu, “porquê tantas existências, já que todas se parecem?” […] Pus-me a rir.
É neste mundo inóspito, despido de significado, e que nada parece capaz de justificar, que a liberdade irrompe. Existir, para uma consciência, é projectar-se para além de si própria, perder-se no que a transcende. O homem será aquilo que projectar ser — isto é, o que for capaz de fazer de si próprio e das circunstâncias que o ligam aos outros homens. Sem lhe roubar a gratuitidade — o que, evidentemente, nos escapa — poderá fazer da situação em que se viu lançado (a expressão é de Heidegger), um mundo de sentido e de realizações. Na falta de um desígnio predefinido, ou de um ser capaz de justificar a existência — Deus — é a liberdade que nos define.
Não admira que até a um leitor mais distraído a náusea surja como o sintoma de um mal-estar sem remissão: a morte de Deus, para utilizar uma expressão cara a Nietzsche, é, como a liberdade, não tanto um motivo de regozijo mas um fardo que será preciso carregar. Porque, se somos livres, é para fazer da situação em que nos encontramos a ponte para o que queremos vir a ser, e não apenas por nós próprios, mas, sobretudo, porque o desejamos para todos os homens. É, além do mais, a tragédia de Abraão, tal como Kierkegaard a entende: nada prova que a voz que supõe ouvir e lhe exige que mate o seu filho Isaac é a voz de Iavé ou se está apenas a ser vítima de uma alucinação. Em qualquer caso, o resultado é inescapável: cavaleiro da fé ou doido varrido,4 será preciso de uma vez por todas escolher. Estes pontos, onde se faz sentir a influência de Kant com bastante clareza, serão discutidos anos mais tarde na conferência que iria dar origem ao volume O Existencialismo é um Humanismo. Contudo, o resultado deixa-o insatisfeito.5 O facto é que para um ateu como Sartre a situação não é a melhor: em parte porque o que escolhemos para nós próprios equivale a comprometermo-nos com o que desejamos para todos os homens, e em parte porque nada, à partida, nos diz o que fazer, cada escolha é uma aposta e não um destino. Se não usarmos a liberdade para nos comprometermos, condenamo-nos a pairar sobre o mundo como uma bela alma, ou, o que é pior, um espectro; deixar-nos-emos alienar, e é a própria liberdade que se esvazia. Pelo contrário, o compromisso devolve-nos à terra, mas esmaga-nos com o seu peso ao mesmo tempo que nos revela o que somos.
Roquentin, porém, hesita. Pouco dado a abandonar a sua solidão (na qual não se sente confortável) para se envolver com a história, este homem pouco sociável e que por vezes teme pelo seu equilíbrio mental, parece encontrar-se num beco sem saída. Será Roquentin um niilista? É pouco provável. Os factos são estes: a descoberta do absurdo parece ter feito dele um esteta (se é que já não o era antes), e não um compagnon de route, um negociante ou um mero funcionário. No Rendez-vous dos Ferroviários, por exemplo, num momento em que a náusea se instala e ameaça engolir tudo à sua volta, a música acalma-o. Aos poucos, tudo regressa ao normal: através da arte, a irremediável desordem do mundo entra nos eixos e, por um momento, deixa-se dominar. É o regresso a Nietzsche, para quem sem a música a existência teria sido um erro? Seja como for, nada nos obriga a pôr de lado essa hipótese.
Talvez Sartre, num momento ou noutro, tenha encontrado na concepção terapêutica da arte um motivo de conforto. Antoine Roquentin é, no entanto, um inconsequente: tal como Moisés ao avistar a Terra Prometida, descobre a liberdade mas não sabe o que fazer com ela. Mathieu Delarue, outro alter ego de Sartre e o protagonista de Os Caminhos da Liberdade — uma tetralogia que começou a ser publicada logo após a Libertação (ficou-se por três volumes completos) — está na mesma situação. Contudo, apesar dos prazeres do piano, ao que parece uma herança familiar (tocava sobretudo Beethoven e Chopin), Sartre acabaria por seguir outro caminho. Ao homem solitário, que receia perder a sua liberdade, sucede no pós-guerra o compromisso com o futuro de todos os homens.
Há, no entanto, em Roquentin muito de exemplar. O valor da arte e da literatura (como o do diário que decide escrever num esforço para compreender a náusea que o assola), só se explica pelo desejo que impele cada homem na procura de um sentido para a sua vida e, em simultâneo, a encontrar uma resposta (por mais limitada, titubeante e ingénua que seja) para o problema da existência em geral. Sem este esforço, também a filosofia seria mais pobre.6