A ciência empírica ocidental moderna tem certamente sido o desenvolvimento intelectual mais impressionante desde o século XVI. A religião tem marcado presença desde há bastante mais tempo, é claro, e está hoje em crescimento, talvez como nunca o esteve antes. (É verdade que há a tese do secularismo, segundo a qual a ciência e a tecnologia, por um lado, e a religião, por outro, estão inversamente relacionadas: à medida que a primeira cresce, a segunda diminui. Contudo, o ressurgimento da religião e da crença religiosa em muitas partes do mundo levantam dúvidas consideráveis a esta tese.) A relação entre estas duas grandes forças culturais tem sido tumultuosa, multifacetada e confusa. Este artigo concentrar-se-á na relação entre ciência e as religiões teístas: cristianismo, judaísmo, islamismo, sendo o teísmo a crença de que há uma pessoa imaterial todo-poderosa, omnisciente e perfeitamente boa que criou o mundo, criou os seres humanos “à sua imagem”, e a quem devemos reverência, obediência e fidelidade. A maior parte deste artigo aplicar-se-á também às variedades monoteístas e henoteístas de budismo e hinduísmo.
Há muitos problemas e questões importantes nesta área; este artigo concentrar-se-á apenas em alguns deles. A questão que talvez mais salte à vista é se a relação entre religião e ciência se caracteriza pelo conflito ou pela concórdia. (Claro que é possível que exista simultaneamente conflito e concórdia: conflito no que respeita a certos aspectos, e concórdia noutros.) Esta questão será o ponto central do artigo. Outras questões importantes a considerar serão a natureza da religião, a natureza da ciência, as epistemologias da ciência e, em particular, da crença religiosa, e a questão de como a última figura no conflito ou concórdia (alegado ou efectivo) entre a religião e a ciência.
A primeira coisa a dizer, aqui, é que é extremamente difícil caracterizar estes fenómenos. Primeiro, considere-se a ciência: o que é exactamente a ciência? Como podemos caracterizá-la? Quais são as condições necessárias e suficientes para que uma dada investigação ou teoria ou tese seja científica, faça parte da ciência? Está longe de ser fácil sabê-lo. Propôs-se várias condições essenciais da ciência. Segundo Jacques Monod, “O crucial do método científico é o postulado de que a natureza é objectiva [...] Por outras palavras, a negação sistemática de que o “verdadeiro” conhecimento possa ser obtido interpretando a natureza em termos de causas finais [...]” (Monod 1971, 21, itálico de Monod). Na década de 1930, o eminente químico alemão Walter Nernst defendeu que a ciência, por definição, exige um universo infinito; logo, a teoria do Big Bang, afirmou, não é ciência (von Weizsäcker 1964, 151). Outra restrição proposta: a ciência não pode envolver juízos morais, ou juízos de valor mais em geral.
Há obviamente uma conexão íntima entre a natureza da ciência e o seu objectivo, as condições sob as quais algo é ciência bem-sucedida. Há quem diga que a ciência é explicação (seja isto posto, ou não, ao serviço da verdade). Há quem afirme (os realistas) que o objectivo da ciência é apresentar teorias verdadeiras; outros afirmam que o objectivo da ciência é fornecer teorias empiricamente adequadas, sejam verdadeiras ou não (van Fraassen 1980). Há quem diga que a ciência não pode lidar com o subjectivo, mas apenas como que é público e partilhável (e, portanto, os relatos sobre a consciência constituem uma matéria mais adequada de estudo científico do que a própria consciência). Há quem diga que a ciência só pode lidar como que é repetível; há quem o negue. No furor sobre o ensino do “Desígnio Inteligente” (DI) nas escolas públicas, houve quem dissesse que as teorias científicas têm de ser falsificáveis, e, dado que a proposição de que as coisas vivas (os coelhos, por exemplo) foram concebidas por um ou mais agentes inteligentes não é falsificável, o DI não é ciência. Há quem faça notar que muitas teses eminentemente científicas — por exemplo, há electrões — não são falsificáveis isoladamente: o que é falsificável são teorias completas sobre electrões. E apesar de a proposição de que as coisas vivas foram concebidas por um ser inteligente não ser falsificável isoladamente, a proposição de que um ser inteligente concebeu e criou coelhos de meio quilo que vivem em Cleveland é claramente falsificável (e falsa). O primeiro grupo pode responder que esta proposição sobre coelhos de meio quilo é apenas equivalente, na verdade, às suas implicações empíricas, i.e., à proposição de que há coelhos de meio quilo que vivem em Cleveland, de modo que o pedaço sobre quem os concebeu desaparece, na verdade. O segundo grupo pode então retorquir que, sendo assim, o mesmo tem de se aplicar às teorias sobre electrões; mas nesse caso as teorias sobre electrões são apenas equivalentes, na verdade, às suas implicações empíricas, de modo que os electrões desaparecem.
Há ainda quem afirme que a ciência se limita ao “naturalismo metodológico” (NM) — a ideia de que nem os dados para uma investigação científica nem uma teoria científica podem referir-se apropriadamente a seres sobrenaturais (Deus, anjos, demónios); assim, não se poderia apropriadamente propor (como parte da ciência) uma teoria segundo a qual a irrupção recente de comportamentos estranhos e irracionais em Washington D.C. se deve ao aumento de comportamentos demoníacos nessa área. Como saber se o NM é realmente uma limitação essencial da ciência? Há quem diga que é apenas uma questão de definição; é o caso de Nancey Murphy: “[...] há o que poderíamos chamar ateísmo metodológico, que é por definição comum a toda a ciência da natureza” (Murphy 2001, 464). E continua: “Trata-se simplesmente do princípio de que as explicações científicas procedem em termos de entidades e processos naturais (e não sobrenaturais)”. De modo semelhante, Michael Ruse: “Os criacionistas crêem que o mundo começou milagrosamente. Mas os milagres estão fora dos limites da ciência, que por definição lida apenas com o natural, o repetível, o que é regido por leis” (Ruse 1982, 322). Por definição do quê? Por definição do termo “ciência”, supostamente. Mas há então quem pergunte: que dizer do Big Bang? Se afinal for irrepetível, teremos de concluir que não pode ser estudado cientificamente? E considere-se a tese de que a ciência, por definição, lida apenas com o que é regido por leis — leis da natureza, supostamente. Alguns empiristas (em particular, Bas van Fraassen) defendem que não há leis da natureza (só há regularidades): se tiverem razão, seguir-se-á que não há coisa alguma para ser estudada pela ciência? Além disso, apesar de algumas pessoas argumentarem que o NM é uma limitação essencial da ciência, outras põem isso em causa: mas pode uma disputa séria ser resolvida citando apenas uma definição?
Apresentar condições necessárias e suficientes plausíveis da ciência está consequentemente longe de ser trivial; e muitos filósofos da ciência desistiram do “problema da demarcação”, o problema de propor tais condições (Laudan 1988). Talvez o melhor que podemos fazer é apontar para exemplos paradigmáticos de ciência e exemplos paradigmáticos de não-ciência. Claro que pode ser um erro supor que estamos aqui perante uma só actividade, e um só objectivo. As ciências são muitíssimo variáveis; há o género de actividade que ocorre em ramos muitíssimo teóricos da física (por exemplo, investigações sobre o que aconteceu nos primeiros 10-43 segundos, ou a tentativa de descobrir como sujeitar a teoria das cordas a verificação empírica). Mas há também o género de projecto exemplificado por uma tentativa de saber como a população de touconderos respondeu à devastação da selva amazónica ao longo dos últimos vinte e cinco anos. No primeiro tipo de explicação pode fazer sentido pensar que o que se quer é uma teoria empiricamente adequada, pondo-se pelo menos temporariamente entre parêntesis a questão da verdade da teoria. Mas o mesmo não acontece em casos do segundo tipo; aqui, nada servirá a não ser a verdade sóbria.
O mesmo acontece com o naturalismo metodológico. Alguns projectos científicos são claramente limitados pelo NM (veja-se abaixo); uma condição de adequação teórica, nesses casos, será certamente que a explicação em causa seja naturalista. Mas é o NM em si parte da própria natureza da ciência enquanto tal? Segundo Isaac Newton, que se diz muitas vezes ter sido o maior cientista de todos os tempos, as órbitas dos planetas cairiam no caos sem intervenção externa; consequentemente, propôs que Deus ajustava periodicamente as suas órbitas. Apesar de esta ser uma hipótese de que já não precisamos, será óbvio que acrescentá-la à explicação de Newton dos movimentos dos planetas tem como resultado algo que não é realmente ciência? Isso parece desnecessariamente excessivo.
Talvez devamos ver o conceito de ciência como um daqueles conceitos aglomerativos para os quais Tomás de Aquino e Ludwig Wittgenstein chamaram a atenção. Talvez haja várias actividades bastante diferentes a que damos o nome “ciência;” estas actividades relacionam-se entre si por semelhança e analogia, mas não há uma actividade única que seja apenas ciência em si. Há projectos para os quais o critério de sucesso envolve fornecer teorias ¬verdadeiras; há outros onde o critério de sucesso envolve fornecer teorias que são empiricamente adequadas, sejam ou não também verdadeiras. Há projectos limitados pelo NM; há outros projectos que não têm essa limitação. Estes projectos ou actividades caem todos sob o significado do termo “ciência;” mas não há uma actividade única da qual todos sejam exemplos. (Do mesmo modo, o xadrez, o basquetebol e o póquer são todos jogos; mas não há um jogo único do qual todos sejam versões.) Talvez o melhor que podemos fazer, com respeito à caracterização da ciência, é dizer que o termo “ciência” se aplica a qualquer actividade que seja 1) uma actividade sistemática e disciplinada que visa descobrir a verdade sobre o mundo,1 e 2) tem um envolvimento empírico significativo. Isto é, evidentemente, vago (quão sistemática? Quão disciplinada? Quanto envolvimento empírico?) e talvez demasiado tolerante. (A astrologia conta como ciência, ainda que seja má ciência?) Apesar de tudo, temos muitos exemplos excelentes de ciência, e exemplos excelentes de não-ciência.
Se é difícil explicar a natureza da ciência, não é muito mais fácil dizer o que é exactamente uma religião. Claro que há muitíssimos exemplos: cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo e muitos outros. Que características são necessárias e suficientes para que algo seja uma religião? Como distinguimos uma religião de um modo de vida, como o confucionismo? Não é fácil dizer. Nem todas as religiões envolvem a crença em algo como o Deus todo-poderoso, omnisciente e moralmente perfeito das religiões teístas, ou até em seres sobrenaturais. (Claro que uma maioria substancial das religiões envolve tais crenças.) Com respeito à nossa investigação, o que é de especial importância é a noção de uma crença religiosa: como tem de ser uma crença para ser religiosa?
Uma vez mais, não é fácil dizer. Para citar uma vez mais o furor quanto ao desígnio inteligente, há quem diga que a proposição de que há um arquitecto inteligente do mundo vivo é religião, e não ciência. Mas nem toda a crença que envolva um arquitecto inteligente — na verdade, nem toda a crença que envolva Deus — é religiosa. Segundo o livro de Tiago do Novo Testamento, “os demónios crêem [que Deus existe] e enchem-se de terror”; as crenças dos demónios não são, presumivelmente, religiosas.2 Uma pessoa poderia propor teorias sobre um ser omnipotente, omnisciente e sumamente bom como parte crucial de um sistema metafísico: a crença em tais teorias não tem de ser religiosa. E que dizer de um sistema de crenças que responde às mesmas grandes questões humanas a que dão resposta os exemplos óbvios de religiões? Questões sobre a natureza fundamental do universo, e do que é sumamente real e básico nele, sobre o lugar dos seres humanos nesse universo, sobre se há pecado ou algo análogo e, se há, o que fazer quanto a isso, se temos de tentar melhorar a condição humana, se os seres humanos sobrevivem às suas mortes e como deve agir uma pessoa racional. Uma vez mais, não é fácil dizer; talvez não. A verdade aqui é, talvez, que uma crença não é religiosa apenas em si. A propriedade de ser religiosa não é intrínseca da crença; é antes uma propriedade que uma crença adquire quando funciona de certo modo na vida de uma dada pessoa ou comunidade. Para ser uma crença religiosa, a crença em questão teria de estar apropriadamente conectada com atitudes caracteristicamente religiosas por parte do crente, nomeadamente atitudes de veneração, amor, compromisso, maravilhamento e afins. Considere-se alguém que crê que a pessoa de Deus existe, certamente, porque a sua existência ajuda a resolver vários problemas metafísicos (por exemplo, sobre a natureza da causalidade, a natureza das proposições, propriedades e conjuntos, e a natureza da função apropriada em criaturas que não sejam artefactos humanos). Contudo, esta pessoa não tem qualquer inclinação para venerar ou amar Deus, nenhum compromisso para tentar levar por diante os projectos de Deus no nosso mundo; talvez, como os demónios, odeie Deus e faça intencionalmente tudo o que pode para frustrar os propósitos de Deus no mundo. Para tal pessoa, a crença de que a pessoa de Deus existe não tem de ser religiosa. Deste modo, é possível que duas pessoas partilhem uma dada crença que funciona como religiosa na vida de apenas uma delas.
Consequentemente, é extremamente difícil apresentar condições necessárias e suficientes (informativas) tanto da ciência como da religião. Talvez para os nossos propósitos presentes isso não seja um problema sério; temos vários excelentes exemplos de cada uma delas, e talvez isso seja suficiente para a nossa investigação.
Há muitas questões epistemológicas interessantes quanto à ciência. Um tópico central tem sido a subdeterminação da teoria pelos dados: os dados a favor de uma teoria raramente implicam a teoria, caso em que haverá várias teorias empiricamente equivalentes — teorias com as mesmas consequências com respeito à experiência. Podem as teorias empiricamente equivalentes diferir em estatuto ou valor epistémico? Em caso afirmativo, o que faz a diferença? Neste caso é comum apelar para as chamadas virtudes teóricas, como a simplicidade, fecundidade, beleza, etc. O que pensar da “indução pessimista”, segundo a qual quase todas as teorias científicas do passado foram mais tarde rejeitadas? Deve isso reduzir a nossa confiança nas teorias científicas actuais? Das convicções científicas actuais, quantas constituem conhecimento, se é que algumas o são? E até onde vai o método científico? Haverá assuntos que a ciência não tem competência para lidar? É a ciência mais competente para lidar com uns assuntos do que com outros? Os modos científicos de proceder parecem ter sido mais bem-sucedidos nas ciências duras; as ciências humanas parecem ficar para trás. Haverá diferenças quanto à boa fundamentação epistémica entre as diferentes ciências, ou talvez entre as ciências duras e as ciências mais leves? Perguntas deste género, apesar de serem de grande interesse intrínseco, não são directamente relevantes para a nossa investigação. O que é mais importante ver é que a epistemologia da ciência é na realidade a epistemologia das principais faculdades cognitivas humanas: memória, percepção, intuição racional (lógica e matemática), testemunho, talvez a empatia de Reid, indução, etc. O que é característico da ciência é que estas faculdades são empregues de um modo particularmente disciplinado e sistemático, e que há uma ênfase particular na experiência perceptiva.
Com respeito à crença religiosa, também há várias questões epistemológicas. Haverá bons argumentos a favor da existência de Deus? Se não há, é isso importante? É a existência do mal, em todas as horríveis formas que exibe, indício contra a crença teísta? É algo que refuta da crença teísta? E quanto à questão do pluralismo: a religião conhece tantos tipos diferentes — cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo (com diferentes versões de cada tipo), mas também vários tipos menos comuns. Segundo Jean Bodin, “cada uma é refutada por todas” (Bodin 1975, 256); constituirá esta diversidade algo que refuta cada variedade particular de crença religiosa? Algumas doutrinas religiosas — Trindade, Incarnação, Expiação — não são fáceis de entender; significa isso que não podem ser conhecidas ou sequer ser objecto de crença racional? Se a crença religiosa se baseia na fé e não na razão, significa isso que é na melhor das hipóteses seriamente insegura, de modo que é apropriado falar de um “salto de fé” ou de “fé cega”? Estas questões têm sido mais aturadamente investigadas no que respeita à crença cristã; assim, este artigo incide principalmente em algumas questões que dizem respeito à epistemologia da crença cristã.
Para os nossos propósitos, talvez a questão epistemológica central seja esta: qual é a fonte da racionalidade, ou aval, ou estatuto epistémico positivo da crença religiosa, se é que o tem? É do mesmo género do que o que tem a crença nos ensinamentos da ciência actual? São os indícios a favor da crença religiosa, se é que existem, do mesmo género do que os indícios a favor das crenças científicas? Ou há uma fonte especial de estatuto epistémico positivo da crença religiosa? Esta é, na verdade, uma versão contemporânea de uma questão bastante antiga: a questão sobre a relação entre a fé e a razão. Relaciona-se com a questão de haver ou não argumentos cogentes (argumentos racionais, argumentos que emanam do que a razão nos dá) a favor da crença religiosa, e se a existência de argumentos cogentes é necessária para a aceitação racional da crença religiosa.
Aqui, há fundamentalmente duas perspectivas. Segundo o “indiciarismo”, a fonte do estatuto epistémico positivo da crença religiosa, se é que tem tal estatuto, é apenas a razão — o conjunto das faculdades racionais, incluindo, principalmente, a percepção, a memória, a intuição racional, o testemunho, etc. A fonte do estatuto epistémico positivo da crença religiosa é, consequentemente, a mesma que existe para a crença científica. Esta perspectiva remonta pelo menos a John Locke (1689) e tem representantes contemporâneos proeminentes. Deste ponto de vista, a existência de argumentos cogentes a favor da crença religiosa é uma condição necessária da aceitação racional dessa crença, ou pelo menos está intimamente relacionada com a aceitação racional. Algumas pessoas que aceitam este ponto de vista crêem que esses argumentos cogentes não existem; assim, rejeitam a crença religiosa por ser infundada e racionalmente inaceitável (Mackie 1982); outros sustentam que há de facto excelentes argumentos a favor do teísmo, e até especificamente a favor da crença cristã. Aqui o porta-voz contemporâneo mais proeminente seria Richard Swinburne, cuja obra dos últimos trinta anos, aproximadamente, teve como resultado o desenvolvimento mais poderoso, completo e sofisticado da teologia natural que o mundo viu até hoje (veja-se, e.g., Swinburne 1979, 2004; 1981, 2005).
A outra perspectiva principal, adoptada, por exemplo, por Tomás de Aquino (Summa Theologiae) e João Calvino (1559), é que 1) a crença em Deus e 2) os ensinamentos cristãos podem ser objecto de aceitação racional ainda que não existam argumentos cogentes a seu favor que partam do que a razão nos oferece; têm uma fonte de aval ou estatuto epistémico positivo independente do que a razão nos dá. Este ponto de vista tem também representação contemporânea proeminente (Alston 1991; Plantinga e Wolterstorff 1984; Plantinga 2000). Usando a terminologia de Calvino, há o sensus divinitatis, que é uma fonte de crença em Deus, e o testemunho interno do Espírito Santo, que é a fonte da crença nas doutrinas próprias do cristianismo. As crenças produzidas por estas fontes ultrapassam a razão no sentido em que a fonte do seu aval não é o que a razão nos dá; claro que não se segue que tais crenças são irracionais, ou contrárias à razão; nem se segue que há algo nelas de especialmente arriscado ou inseguro, ou incerto, como se a fé fosse necessariamente cega ou um salto no escuro. Na verdade, João Calvino define a fé como “um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para connosco [...]” (Calvino 1559, p. 551, itálico meu). Deste ponto de vista, a religião e a fé têm uma fonte de crença apropriadamente racional independente da razão e da ciência; seria portanto possível que a religião e a fé corrigissem a ciência e a razão, e também que fossem por estas corrigidas.
Há alguma razão para pensar que se o teísmo for de facto verdadeiro, se realmente houver uma pessoa todo-poderosa, omnisciente e perfeitamente boa que criou o mundo e os seres humanos à sua imagem, então a crença religiosa será independente dos argumentos baseados na razão; não exigirá tais argumentos para ser racional ou ter estatuto epistémico positivo. Pois se o teísmo for verdadeiro, Deus presumivelmente quererá que os seres humanos conheçam a sua presença (e de facto a vasta maioria da população humana acredita em Deus ou algo parecido a Deus); disporá portanto as coisas de modo a que os seres humanos sejam capazes de ter conhecimento de si. Mas se o conhecimento de Deus dependesse dos argumentos teístas, ou de outros argumentos que resultam do que a razão nos dá, então, como afirma Tomás, só alguns seres humanos chegariam ao conhecimento desta verdade, e mesmo assim só depois de muito tempo, e com uma mistura substancial de erro.
Comecemos com a concórdia. Os primeiros pioneiros e heróis da ciência ocidental — Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Boyle, etc. — eram todos seriamente cristãos, ainda que ocasionalmente, como no caso de Newton, não fossem cristologicamente ortodoxos. Além disso, muitos autores (Foster 1934, 1935, 1936; Ratzsch 2009) fizeram notar que a crença teísta e a ciência empírica exibem uma concórdia profunda, combinando-se bem entre si. Isto resulta em parte das doutrinas da criação que as religiões teístas abraçam — em particular, dois aspectos dessas doutrinas. Primeiro, há a ideia de que Deus criou o mundo, tendo também consequentemente, é claro, criado os seres humanos. Além disso, criou os seres humanos à sua imagem. Ora Deus, segundo a crença teísta, é uma pessoa: um ser que tem conhecimento, afeição (gosta de umas coisas e não de outras) e vontade executiva, podendo agir com base nas suas crenças para atingir os seus fins. Uma das características centrais da imagem divina nos seres humanos é, então, a capacidade para formar crenças e adquirir conhecimento. Como afirmou Tomás de Aquino, “Uma vez que se diz que os seres humanos foram feitos à imagem de Deus em virtude de terem uma natureza que inclui um intelecto, tal natureza é à imagem de Deus sobretudo em virtude de ser o que mais consegue imitar Deus” (ST Ia q. 93 a. 4). Deus criou portanto quer os seres humanos quer o mundo, e dispôs as coisas de modo a que os primeiros conheçam o segundo. Concebendo a ciência no seu nível mais básico como o projecto de adquirir conhecimento de nós e do nosso mundo, é claro, desta perspectiva, que a doutrina da imago dei subscreve este projecto. Na verdade, a ciência é um exemplo claro do desenvolvimento e aprofundamento da imagem de Deus nos seres humanos, tanto individual como colectivamente.
Segundo, há o pensamento de que a criação divina é contingente. Segundo o teísmo, muitas das propriedades de Deus — a sua omnisciência e omnipotência, a sua bondade e amor — são-lhe essenciais: tem-nas em todos os mundos possíveis em que existe. (E uma vez que, segundo o pensamento teísta, Deus é um ser necessário, existindo em todos os mundos possíveis, tem essas propriedades em todos os mundos possíveis.) Mas isso não acontece, contudo, com a sua propriedade da criação. Deus não está obrigado, pela sua natureza ou seja pelo que for, a criar o mundo; trata-se, antes, de uma acção livre da sua parte. Além disso, quando Deus cria, não está obrigado a fazê-lo de qualquer modo particular, nem a criar quaisquer tipos particulares de seres; que tenha criado os tipos de coisas que efectivamente encontramos é uma vez mais contingente, uma acção livre da sua parte.
É esta doutrina da contingência da criação divina que subjaz ao carácter empírico da ciência ocidental moderna (Ratzsch, 2009). Pois o domínio do necessário é (na sua maior parte) o domínio do conhecimento a priori; é onde temos a matemática e a lógica e grande parte da filosofia.3 O que é contingente, por outro lado, é o território ou domínio do conhecimento a posteriori,4 o género de conhecimento produzido pela percepção, memória e os métodos empíricos da ciência. Esta relação entre a contingência da criação e a importância do empírico foi reconhecida desde muito cedo. Assim, escreveu Roger Cotes, no prefácio ao Principia Mathematica, de Newton:
“Sem dúvida alguma, este mundo, tão diversificado com essa pluralidade de formas e movimentos que nele encontramos, de nada poderia provir senão da vontade perfeita de Deus, dirigindo-o e presidindo-o.
É desta fonte que essas leis, a que chamamos leis da natureza, fluíram, e nas quais se vê muitos traços do mais sábio engenho, mas nem a mínima sombra de necessidade. Esta, consequentemente, não devemos procurar partindo de conjecturas incertas, mas antes descobrir pela observação e pela experimentação.” (Cotes 1953, 132–133; itálicos meus)
O que vimos é que, de certo modo, a crença teísta sustenta a ciência moderna ao permitir ou sancionar todo o projecto da investigação empírica; afirma-se também por vezes que a ciência sustenta a crença teísta. Neste caso, há vários argumentos, que historicamente se agruparam em dois tipos básicos: biológicos e cosmológicos. Um exemplo do primeiro tipo é o argumento proposto por Michael Behe (Behe, 1996), segundo o qual algumas estruturas ao nível molecular exibem uma “complexidade irredutível”. Estes sistemas exibem várias partes que se ajustam delicadamente e interagem entre si, sendo que todas têm de estar presentes e funcionando apropriadamente para que o sistema faça o que faz; a eliminação de qualquer das partes impediria o seu funcionamento. Entre os fenómenos que Behe cita encontra-se o estolho bacteriano, os cílios usados por vários tipos de células para se locomoverem, entre outras funções, a coagulação do sangue, o sistema imunitário, o transporte de materiais nas células e a sequência incrivelmente complexa e em cascata de reacções bioquímicas e acontecimentos que ocorrem na visão. Tais estruturas e fenómenos irredutivelmente complexos, defende, não poderiam ter surgido por evolução darwinista gradual, passo-a-passo (sem a intervenção da mão de Deus ou de qualquer outra pessoa); em qualquer caso, a probabilidade de isso acontecer seria diminuta. Estes são exemplos que apresentam, pois, o que Behe denomina um desafio liliputiano ao darwinismo cego; se ele tiver razão, constituem também um desafio colossal ao darwinismo. Mas não se limitam a pôr em causa o darwinismo; foram também, afirma, obviamente concebidos; que foram concebidos é tão óbvio como um elefante numa sala de estar: “para uma pessoa que não se sinta obrigada a restringir a sua procura a causas não-inteligentes, a conclusão directa é que muitos sistemas bioquímicos foram concebidos” (Behe, p. 193). Outros, por exemplo, Paul Draper (2002) e Kenneth R. Miller (1999, 130–164), argumentam que Behe não provou o que pretendia.
Um segundo tipo de argumento a favor do teísmo parte do ajustamento delicado aparente de vários parâmetros físicos. A partir dos anos sessenta e do começo dos setenta, os astrofísicos, entre outros, deram-se conta que várias das constantes físicas básicas têm de se situar dentro de limites muito estreitos para que a vida inteligente se desenvolva — em qualquer caso, de um modo semelhante ao que pensamos que efectivamente ocorreu. Assim, B. J. Carr e M. J. Rees:
“As características básicas das galáxias, estrelas, planetas e do mundo quotidiano são essencialmente determinadas por algumas constantes microfísicas e pelos efeitos da gravitação [...] Vários aspectos do nosso universo — alguns dos quais parecem pré-requisitos para a evolução de qualquer forma de vida — dependem muito delicadamente de “coincidências” aparentes entre as constantes físicas”. (Carr e Rees, 1979, 605).
Por exemplo, se a força da gravidade fosse mais forte, ainda que ligeiramente, todas as estrelas seriam gigantes azuis; se fosse muito ligeiramente mais fraca, todas seriam anãs vermelhas; em nenhum desses casos poderia a vida ter-se desenvolvido (Carter 1979, 72). O mesmo se pode dizer das forças nucleares fracas e fortes; se qualquer delas tivesse sido ainda que ligeiramente diferente, a vida, em qualquer caso a vida do género que temos, não poderia provavelmente ter-se desenvolvido.
Aparentemente, a vida é possível apenas porque o universo está a expandir-se na proporção exactamente necessária para evitar o colapso. E no passado o ajuste delicado teve de ser ainda mais extraordinário:
“[...] sabemos que teve de ter havido um equilíbrio muito delicado entre os efeitos contrários da expansão explosiva e da contracção gravitacional que, na época mais recuada sobre a qual podemos sequer fingir falar (denominada tempo de Planck, 10-43 segundos depois do Big Bang), teria correspondido ao grau incrível de precisão representado por um desvio da unidade no seu rácio de apenas uma parte em 10 elevado à sexagésima”. (Polkinghorne 1989, 22)
Outros exemplos: o valor da constante cosmológica, do valor da expectativa de vácuo do campo de Higgs, e o rácio da massa entre o protão e o electrão têm de estar delicadamente ajustados num grau incrível para que o universo permita a vida (Barr 2003, 123–130). Uma explicação particularmente bem informada e tecnicamente pormenorizada de alguns destes ajustamentos delicados encontra-se em Robin Collins, “Evidence of Fine-Tuning” (Collins 2003). Há quem considere que estas enormes coincidências aparentes substanciam a tese teísta de que o universo foi criado por um Deus pessoal que tem a intenção de que haja vida, e na verdade vida inteligente; consideram que o ajustamento delicado oferece os elementos para um argumento teísta apropriadamente restringido. Estes argumentos assumem várias versões; talvez a mais bem-sucedida delas seja a que argumenta que a probabilidade epistémica destes fenómenos de ajuste delicado é muito maior sob a hipótese teísta do que a sua probabilidade epistémica sob a hipótese ateísta do acaso. Aqui, a conclusão não é (enquanto tal) que o teísmo é provavelmente verdadeiro, mas antes que o teísmo é muito mais bem sustentado por estes fenómenos do que a hipótese do acaso (Swinburne 2003; Collins 1999).
As objecções são muito diversificadas. Há quem ofereça estes argumentos, em particular quem está associado ao chamado movimento do “Desígnio Inteligente”, considerando-os contribuições para a ciência e não para a filosofia ou para a teologia; a objecção mais comum é que não obedecem às condições necessárias para ser ciência, em particular porque a conclusão, que o universo foi concebido por um ser inteligente, não é falsificável. Outros há (como vimos) que respondem que a falsificabilidade não é comummente uma propriedade de proposições individuais, mas antes de teorias completas, e que as teorias que envolve o desígnio inteligente podem muito bem ser falsificáveis.
Uma objecção mais interessante aos argumentos do ajuste delicado é a sugestão da “multiplicidade de universos”: talvez haja muitíssimos universos ou mundos diferentes, talvez em número infinito; as constantes cosmológicas assumem diferentes valores em mundos diferentes, de modo que muitíssimos conjuntos diferentes de tais valores (talvez todos os possíveis) são exemplificados num ou noutro mundo. Não poderia haver um ciclo eterno de “Big Bangs”, seguidos de expansão até um certo limite, e depois uma contracção até ao “Big Crunch”, no qual os valores cosmológicos são arbitrariamente reiniciados? (Dennett 1995, 179) Alternativamente, não poderia ter ocorrido que no Big Bang houve uma inflação inicial enorme, resultando daí muitos cosmoi, com muitos valores diferentes nas suas constantes físicas? Em qualquer dos casos não é surpreendente que num ou noutro dos universos resultantes, os valores das constantes cosmológicas sejam tais que permitam a vida. Nem é surpreendente que o universo em que nos encontramos tenha valores que permitam a vida; não poderíamos existir em qualquer outro. Sendo assim, o argumento do ajuste delicado não é eficaz: a probabilidade de haver ajuste delicado dada a hipótese da pluralidade de mundos juntamente com o ateísmo é pelo menos tão grande quanto a probabilidade do ajuste delicado juntamente com o teísmo. Há respostas (por exemplo, que nesta maneira de ver as coisas teria de haver um gerador de universos que estivesse, também ele, delicadamente ajustado (Collins 1999), ou que mesmo que seja provável que alguns universos estejam delicadamente ajustados, continua a ser verdade que a probabilidade de que este universo esteja delicadamente ajustado não é afectada pela sugestão do pluriverso (White 2003)) e respostas às respostas, etc.; não há consenso, o que não é surpreendente, quanto a saber se estes argumentos do ajuste delicado são bem-sucedidos.
A doutrina cristã da criação sustenta uma concórdia profunda entre a crença cristã e a ciência; contudo, é claro que é compatível com este género de concórdia que também haja conflito. Muitos autores afirmaram existir conflito, ou até guerra, entre a religião e a ciência (Draper 1875; White 1895). Isto é certamente demasiado forte; mas é óbvio que a relação entre as duas nem sempre tem sido suave e irénica. Há o famoso incidente de Galileu, muitas vezes retratado como uma disputa no seio da hierarquia católica, representando as forças da repressão e da tradição, a voz do velho mundo, a mão morta do passado, e, por outro lado, as forças do progresso e a suave voz da razão e da ciência. Este modo de ver a questão é simplista (Brooke 1991, 8-9); em causa estavam muitos outros factores. O pensamento aristotélico dominante do dia era fortemente apriorístico; logo, parte do que estava em causa era uma disputa sobre a importância relativa da observação e do pensamento a priori na astronomia. Em causa estavam também questões sobre o que a Bíblia cristã (e judaica) ensina nesta área: será que uma passagem como a de Josué 10:12–15 (em que Josué ordenou ao Sol para se imobilizar) favorece o sistema ptolemaico em detrimento do coperniciano? E é claro que as questões habituais de poder e autoridade estavam também presentes.5
Mais recentemente, um lugar central de alegado conflito tem sido a teoria da evolução. Este pânico particular está, é claro, ainda muito presente. Muitos fundamentalistas cristãos aceitam uma interpretação literal da narrativa da criação dos primeiros dois capítulos do Génesis; consideram por isso incompatíveis as explicações darwinistas contemporâneas das nossas origens e a fé cristã, pelo menos tal como a entendem. Muitos fundamentalistas darwinistas (como o falecido Stephen J. Gould lhes chamava) aceitam essa moção: também eles defendem que há conflito entre a evolução darwinista e a crença cristã ou teísta clássica. Os contemporâneos que defendem esta perspectiva do conflito incluem, por exemplo, Richard Dawkins (1986, 2003) e Daniel Dennett (1995). Uma parte importante do alegado conflito depende da crença cristã de que os seres humanos e as outras criaturas foram concebidos — concebidos por Deus; segundo a evolução, contudo (pelo que dizem Dawkins e Dennett), os seres humanos não foram concebidos, sendo antes produto do processo cego sem direcção da selecção natural, operando sobre uma fonte de variação genética como a mutação genética. Eis Dawkins:
“Apesar das aparências em contrário, o único relojoeiro na natureza é as forças cegas da física, ainda que aplicadas de uma maneira muito especial. Um verdadeiro relojoeiro é dotado de antevisão: concebe as suas engrenagens e molas, e planeia as suas interconexões, tendo em mente um propósito futuro. A selecção natural, e o processo automático cego, inconsciente, que Darwin descobriu, e que sabemos hoje ser a explicação da existência e da forma aparentemente dotada de propósito de toda a vida, não tem em mente qualquer propósito. Não tem mente e não tem seja o que for em mente. Não planeia em função do futuro. Não tem qualquer visão, antevisão, não vê coisa alguma. Se podemos dizer que desempenha o papel de relojoeiro na natureza, é o relojoeiro cego.” (Dawkins 1986, 5)
Outros autores fazem notar que este suposto conflito está longe de ser óbvio. A característica central da doutrina moderna da evolução é que a força motriz do processo é a selecção natural, peneirando uma forma de variação genética, sendo a mais popular a mutação genética aleatória. Não faz parte da teoria a afirmação de que estas mutações ocorrem apenas ao acaso no sentido em que esse termo sugere que não têm causa; são aleatórias apenas no sentido em que não emergem do plano arquitectónico das criaturas que as sofrem, e não ocorrem para melhorar a capacidade reprodutiva do organismo. Eis Ernst Mayr, o decano da biologia do pós-guerra: “Quando se afirma que a mutação ou variação é aleatória, isto quer simplesmente dizer que não há qualquer correlação entre a produção de novos genótipos e as necessidades adaptativas de um organismo no meio ambiente em causa” (Mayr 1998, 98). Sendo assim, a evolução, tal como é actualmente formulada e entendida, é perfeitamente compatível com um deus que orquestre e supervisione todo o processo; na verdade, é perfeitamente compatível com essa teoria que Deus cause as mutações genéticas que são peneiradas pela selecção natural. Quem defende que a evolução mostra que a humanidade e as outras coisas vivas não foram concebidas, defendem os seus oponentes, confundem uma interpretação naturalista da teoria científica com a própria teoria. A afirmação de que a evolução demonstra que os seres humanos e as outras criaturas vivas não foram concebidas, contra todas as aparências, não faz parte nem é uma consequência da teoria científica, mas antes um acrescento metafísico ou teológico (van Inwagen 2003).6
Uma segunda área de alegado conflito tem a ver com a acção divina no mundo. Segundo a religião teísta clássica, Deus criou o mundo; também o sustém e preserva, mantendo-o em existência. Sem a sua actividade de preservação, o mundo desapareceria como a chama de uma vela ao vento. Assim, há criação e preservação; mas, afirmam as religiões teístas clássicas, há também acção divina especial, acção que vai além da criação e da preservação. Há milagres relatados tanto na Bíblia judaica como na cristã: a separação das águas do Mar Vermelho, por exemplo, assim como Jesus caminhando sobre as águas, o fornecimento de alimento a cinco mil pessoas, e o renascimento dos mortos. Os milagres são igualmente relatados no Alcorão. Muitos crentes não pensam que estas acções divinas especiais se restringem aos tempos bíblicos: ainda hoje Deus responde às orações e efectua curas milagrosas. Além disso, segundo o modo cristão de pensar, Deus opera nos corações e espíritos dos seus filhos, de modo a produzir a fé; Tomás de Aquino chamou a esta actividade divina “o incitamento interno do Espírito Santo” e João Calvino chamou-lhe “o testemunho interno do Espírito Santo”. Todos estes seriam exemplos de acção divina especial.
Ora, há quem veja aqui um conflito com a ciência moderna. Entre esses autores conta-se Langdon Gilkey:
“[...] A teologia contemporânea não espera, nem fala, de acontecimentos divinos assombrosos à superfície da vida natural e histórica. O nexo causal no espaço e no tempo que a ciência e filosofia do Iluminismo introduziram na mentalidade ocidental [...] é também pressuposto pelos teólogos e estudiosos modernos; uma vez que participam no mundo moderno da ciência, tanto intelectual como existencialmente, dificilmente poderiam fazer outra coisa. Ora, este pressuposto de uma ordem causal entre os acontecimentos fenoménicos, e portanto da autoridade da interpretação científica dos acontecimentos observáveis, faz uma grande diferença no que respeita à validade que se atribui às narrativas bíblicas, e portanto ao modo como se entende o seu significado. Subitamente, uma vasta panóplia de feitos divinos e acontecimentos registados na escritura não são já encarados como se tivessem efectivamente acontecido [...] Seja o que for que os hebreus acreditavam, nós acreditamos que as pessoas bíblicas viviam no mesmo contínuo causal do espaço e do tempo em que nós vivemos, e portanto um contínuo em que não ocorrem quaisquer prodígios divinos nem se ouve quaisquer vozes divinas”. (Gilkey 1983, 31)
Claro que muitos filósofos e cientistas concordariam. O problema é, supostamente, a acção especial de Deus no mundo; não há qualquer problema particular no que respeita à criação e preservação, mas a acção divina para lá disso é largamente considerada incompatível com a ciência moderna. Onde se considera exactamente que surge a incompatibilidade? Ao que parece, a ideia é que a actividade divina especial seria incompatível com as leis da natureza que a ciência põe a descoberto. Eis o distinto biólogo H. Allen Orr:
“Não que algumas facções de uma religião invoquem milagres: muitas facções de muitas religiões o fazem. (Afinal, Moisés separou as águas e Krishna curou os doentes.) Concordo, é claro, que nenhum cientista sensato pode tolerar tais excepções no que respeita às leis da natureza”. (Orr, 2004)
Ora, Gilkey, como outros autores, pensa aparentemente em termos de uma mundividência newtoniana, segundo a qual o universo é como uma máquina gigantesca que funciona segundo as leis postas a nu pela ciência. Mas isto não é suficiente para a teologia do afastamento e da não-intervenção destes teólogos. Afinal de contas, o próprio Newton, supostamente, aceitava a mundividência newtoniana, mas propôs que Deus ajustava periodicamente as órbitas planetárias, que sem isso, segundo os seus cálculos, dariam gradualmente para o torto. O que Gilkey e os seus amigos acrescentam aqui, aparentemente, é o determinismo: a ideia de que as leis da natureza, juntamente com o estado do universo em qualquer momento dado, implicam o estado do universo em qualquer outro momento. A fonte clássica aqui é Pierre Laplace:
“Devemos encarar o estado presente do universo como o efeito do seu estado anterior e como a causa do que se lhe seguirá. Dado, por um instante, um espírito que pudesse compreender todas as forças que animam a natureza, e a situação respectiva dos seres que a compõem — um espírito suficientemente vasto para analisar estes dados — esse espírito abrangeria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e do menor dos átomos; para ele, nada seria incerto e o futuro, como o passado, estaria presente aos seus olhos”. (Laplace 1796)
É a mundividência de Laplace que aparentemente anima Gilkey, et al. Vale a pena fazer notar, contudo, que o determinismo e a mundividência laplaciana não se seguem da ciência clássica. Isto porque as grandes leis da conservação deduzidas das leis de Newton são formuladas para sistemas fechados ou isolados. Eis Sears e Zemansky (1963):
“O princípio da conservação da energia afirma que a energia interna de um sistema isolado permanece constante. Esta é a formulação mais geral do princípio da conservação da energia”. (p. 415)
As leis de Newton (tal como a posterior física da electricidade e do magnetismo de Maxwell) aplicam-se a sistemas isolados ou fechados; descrevem como o mundo funciona desde que o mundo seja um sistema fechado (isolado), não estando sujeito a qualquer influência causal externa. Mas não faz parte da mecânica newtoniana nem da ciência clássica em geral a declaração de que o universo material é realmente um sistema fechado. (Como poderia uma coisa dessas ser verificada experimentalmente?) Logo, nada há na ciência clássica (pelo menos nesta área) que seja incompatível com Deus mudar a velocidade ou direcção de uma partícula, ou de todo um sistema de partículas (ou, já agora, com a criação ex nihilo de um cavalo adulto). A energia, a força cinética e coisas do género conservam-se num sistema fechado; mas a tese de que o universo material é de facto um sistema fechado não faz parte da física clássica; é um acrescento metafísico ou teológico. Logo, não há conflito entre a física clássica e a acção divina especial no mundo.
Esta imagem clássica, laplaciana, foi, evidentemente, ultrapassada pelo desenvolvimento da mecânica quântica, que começou nos primeiros pares de décadas do século XX. Segundo a mecânica quântica, associado a qualquer sistema físico, um sistema de partículas, por exemplo, há uma função de onda cuja evolução ao longo do tempo é regida pela equação de Schrödinger para esse sistema. Ora, o interessante no que respeita à mecânica quântica é que, ao contrário da mecânica clássica, não especifica nem prevê uma configuração única para este sistema de partículas num momento futuro do tempo, t. A função de onda atribui um valor em t a cada uma das configurações possivelmente resultantes das condições iniciais; pela aplicação da regra de Born a esses valores, obtemos uma atribuição de probabilidades a cada uma dessas possíveis configurações em t. Assim, não nos é dito que configuração irá de facto resultar (dadas as condições iniciais) quando o sistema é medido em t; ao invés, é-nos dada uma distribuição de probabilidades para os muitos resultados possíveis. É claro que os milagres (a separação das águas, o renascimento dos mortos, etc.) não são incompatíveis com estas atribuições. (Sem dúvida que a tais acontecimentos seriam atribuídas probabilidades muito baixas; mas é claro que não precisamos da mecânica quântica para saber que tais acontecimentos são improváveis.) Além disso, em interpretações em termos de colapso, como as de Ghirardi, Rimini e Weber, há muito espaço para a actividade divina. Na verdade, Deus pode ser afinal a causa dos colapsos, e do modo como ocorrem (i.e., sendo P a possibilidade que é efectivada em t, pode ser Deus a causa de P se efectivar em t). (Isto poderia talvez ser visto como um meio caminho entre o ocasionalismo e a causalidade secundária.) Com o advento da mecânica quântica, portanto, parece haver ainda menos razão para ver a acção divina especial no mundo como uma coisa que de algum modo é incompatível com a ciência.
Contudo, muitos autores inteiramente cientes da revolução da mecânica quântica vêem mesmo assim um problema na acção divina especial. Por exemplo, há o “Divine Action Project” (Wildman 1988-2003, 31–75), uma série de conferências e publicações com quinze anos que começou em 1988. Até agora, estas conferências resultaram em seis volumes de ensaios, envolvendo pelo menos cinquenta ou mais autores de vários campos da ciência, juntamente com filósofos e teólogos, incluindo muitos dos mais proeminentes autores da área. A maior parte destes autores consideram problemática a acção divina especial. Isto porque crêem que uma explicação satisfatória da acção de Deus no mundo teria de ser não-intervencionista, como Wildman afirma. Eis Arthur Peacocke, comentando uma certa proposta de acção divina:
“Deus teria de ser concebido como alguém que efectivamente manipula micro-acontecimentos (aos níveis, atómico, molecular e, segundo alguns autores, quântico) nestas flutuações iniciais do mundo natural para produzir os resultados a nível macroscópico que Deus quer. Mas tal concepção da acção de Deus [...] não seria então diferente em princípio da intervenção de Deus na ordem da natureza, com todos os problemas que isso evoca com respeito a uma crença racionalmente coerente em Deus como o criador dessa ordem”. (Peacocke 2004)
O projecto é assim, aparentemente, desenvolver uma concepção da acção divina especial (acção para lá da criação e da preservação) que não envolva intervenção. Mas o que seria a intervenção na imagem da mecânica quântica? Não é fácil dizer. Na verdade, não é fácil ver como a intervenção poderia ser diferente da acção divina para lá da criação e da preservação. Contudo, se não há qualquer diferença entre elas, a acção divina especial seria apenas intervenção, caso em que o projecto de desenvolver uma concepção da acção divina especial que não envolva intervenção não é promissora.
Mesmo assim, uma terceira área de alegado conflito entre a crença religiosa e a ciência tem a ver com as diferentes atitudes epistémicas associadas a cada uma delas. Eis, por exemplo, John Worrall:
“A ciência, ou antes, a atitude científica, é incompatível com a crença religiosa. A ciência e a religião estão num conflito irreconciliável [...] Não há maneira de ter uma mentalidade apropriadamente científica e ser um verdadeiro crente religioso”. (Worrall 2004, p. 60).
Na ciência, a atitude epistémica dominante (segundo esta tese) é a investigação empírica crítica, propondo teorias que são sustentadas hipotética e temporariamente; estamos sempre dispostos a abandonar uma teoria a favor de uma sucessora mais satisfatória. Na crença religiosa (e.g., cristã), a atitude epistémica da fé desempenha um papel importante, uma atitude que difere tanto quanto à fonte da crença em questão, como na disponibilidade para a abandonar.
Outros autores (Ratzsch, 2004), contudo, fazem notar que não há aqui obviamente um conflito. É claro que essas duas atitudes são diferentes, e talvez não possam ser assumidas simultaneamente com respeito à mesma proposição. Mas mostra isso um conflito entre a ciência e a crença religiosa? Talvez alguns modos de formar crenças sejam apropriados numa área e outros modos noutras áreas. Para que tenhamos um conflito, temos de acrescentar que a atitude epistémica científica é a única apropriada a qualquer área de actividade cognitiva. Esta tese, contudo, não é em si parte da atitude científica; é uma declaração epistemológica, a favor da qual se exige argumentação substancial (mas que até agora não é visível). Além disso, não parece que os próprios cientistas assumam a atitude epistémica científica (acima caracterizada) com respeito a tudo o que acreditam, ou mesmo com respeito a tudo o que acreditam como cientistas. Assim, é comum que os cientistas acreditem que houve passado, e na verdade dizem-nos muitas vezes há quanto tempo a Terra, ou a nossa galáxia, ou até o universo inteiro, se formou. Os cientistas raramente sustentam esta crença — que houve passado — em resultado da investigação empírica; nem comummente a sustentam desse modo hipotético, crítico, procurando sempre uma alternativa melhor.
Consequentemente, nestas áreas é difícil encontrar conflito entre a crença religiosa teísta e a ciência contemporânea.
Parece haver outras áreas da ciência, contudo, que produzem conflito. Primeiro, há a disciplina relativamente nova mas em rápido crescimento da psicologia evolutiva. A alma e coração deste projecto é o esforço para explicar traços distintamente humanos — a nossa arte, humor, ludicidade, poesia, sentido de aventura, gosto por histórias, a nossa música, a nossa moralidade e a nossa religião — em termos da nossa origem e história evolutiva. E aqui encontramos realmente teorias incompatíveis com a crença religiosa. Um tópico importante nesta área tem sido o comportamento altruísta — comportamento que promove a boa adaptação reprodutiva de outra pessoa às custas da boa adaptação reprodutiva do próprio altruísta. Como explicar que haja pessoas como os missionários e a Madre Teresa, pessoas que dedicam as suas vidas ao serviço dos outros, dando pouca atenção às suas próprias perspectivas reprodutivas? Herbert Simon procura explicar o altruísmo de um ponto de vista evolutivo, em termos de dois mecanismos, a docilidade e a racionalidade limitada:
“As pessoas dóceis tendem a aprender e acreditar no que pensam que os outros membros da sociedade querem que elas aprendam e creiam. Assim, o conteúdo do que aprendem não será completamente analisado quanto ao contributo dado à boa adaptação reprodutiva.
Devido à racionalidade de grupo, o indivíduo dócil será muitas vezes incapaz de distinguir entre os comportamentos socialmente prescritos que contribuem para a boa adaptação e o comportamento altruísta [i.e., o comportamento socialmente prescrito que não contribui para a boa adaptação]. De facto, a docilidade irá reduzir a inclinação para avaliar de modo independente quão contribui um comportamento para a boa adaptação [...]. Em virtude da racionalidade de grupo, a pessoa dócil não pode adquirir a aprendizagem pessoalmente vantajosa que fornece o incremento de boa adaptação sem adquirir também os comportamentos altruístas que têm como custo a sua diminuição”. (Simon 1990, 3, 4)
A teoria de Simon foi cuidadosamente trabalhada e bem desenvolvida, sendo de considerável interesse; é também incompatível com a crença religiosa. Segundo esta teoria, a explicação do comportamento altruísta consiste em não se ver que o comportamento em questão compromete a boa adaptação evolutiva. Assim, segundo a teoria de Simon, a resposta à pergunta “Por que razão se comporta a Madre Teresa de um modo que compromete a sua boa adaptação evolutiva?” é “Devido à racionalidade de grupo, ela é incapaz de ver que o seu modo de se comportar compromete a sua boa adaptação”. De uma perspectiva cristã, esta não é de modo algum a resposta correcta, que seria algo como “Ela quer seguir o exemplo de Jesus, fazendo o que pode para ajudar os pobres e doentes”.
Outro exemplo desta área é fornecido por muitas teorias da religião e da crença religiosa. Segundo algumas destas teorias, a crença religiosa é falsa, mas adaptativa; segundo outras, é falsa e contra-adaptativa. Um exemplo do primeiro grupo seria a teoria proposta por David Sloan Wilson, que afirma que a religião é uma adaptação de grupo: “Muitas características da religião, como a natureza dos agentes sobrenaturais e as suas relações com os seres humanos, podem ser explicadas como adaptações concebidas para permitir que os grupos de seres humanos funcionem como unidades adaptativas” (Wilson 2002, p. 51). A crença religiosa, afirma, é fictícia, mas adaptativa a nível de grupo: promove a cooperação, o respeito mútuo e a solidariedade, permitindo assim que o grupo se saia bem em competição com outros grupos.
Que a religião possa funcionar como uma adaptação de grupo é, evidentemente, consistente com a crença teísta; e que dizer do pedaço sobre a crença religiosa — a crença teísta, por exemplo — ser fictícia? Como poderia a tese de que a pessoa de Deus não existe fazer parte da ciência empírica? E mesmo que o pudesse, a teoria de Wilson, ao que parece, estaria em terreno mais sólido se esse acrescento teológico facilmente eliminável fosse excluído. O que não é tão fácil de excluir é a tese de que a crença religiosa (ao contrário da memória, crenças perceptivas, intuição racional) é produzida por faculdades cognitivas ou processos que não visam a produção de crenças verdadeiras. Segundo Wilson, estes processos ou faculdades têm uma função que lhes foi conferida pela evolução; mas essa função não é a de produzir crenças verdadeiras. É antes a função de produzir crenças que promovam a cooperação e a solidariedade; em última análise, a sua função é fornecer crenças que são adaptativas, i.e., promovem a boa adaptação reprodutiva.
Neste ponto, uma comparação com a perspectiva de Sigmund Freud da crença teísta pode ser esclarecedor. Freud sustenta que a crença teísta é uma ilusão. Isto não significa que seja falsa (apesar de Freud pensar que é falsa); o que significa é que a crença teísta é produzida por um processo cognitivo (sonhar alto) que não se “orienta pela realidade”; o seu propósito não é a produção da crença verdadeira, mas (neste caso) uma crença que permita ao crente evitar a depressão e apatia que se instalaria se ele visse claramente a miserável chocante condição em que os seres humanos se encontram. A perspectiva de Wilson é assim como a de Freud, uma vez que também ele propõe que a crença teísta é produzida por faculdades cognitivas que não se orientam pela realidade. Ao passo que Freud assume uma perspectiva pessimista da crença teísta, Wilson é muito mais elogioso:
“Em primeiro lugar, muitas crenças religiosas não estão separadas da realidade [...] Ao invés, estão intimamente conectadas com a realidade, motivando comportamentos que são adaptativos no mundo real — um feito espantoso quando nos damos conta da complexidade exigida para ficarmos conectados neste sentido prático [...]. A adaptação é o padrão máximo contra o qual a racionalidade tem de ser ajuizada, juntamente com todas as outras formas de pensamento. Os biólogos evolucionistas devem entender este aspecto especialmente bem porque estão cientes de que uma mente bem adaptada é em última análise um órgão de sobrevivência e reprodução”. (Wilson 2002, p. 228)
Apesar de Wilson dirigir palavras simpáticas à religião, a sua tese de que a crença religiosa não visa a verdade é incompatível com a crença religiosa teísta. Segundo o cristianismo, por exemplo, a fé, incluindo a crença nos aspectos essenciais da fé cristã, é uma dádiva divina; e o processo de a produzir no crente (o incitamento interno do Espírito Santo, segundo Tomás de Aquino, o testemunho interno do Espírito Santo, segundo João Calvino) visa realmente a verdade e tem como função a produção de crença verdadeira.
Assim, há um conflito entre a ciência e a religião. O que o explica? Várias coisas, sem dúvida; mas parte da explicação encontra-se no naturalismo metodológico, uma restrição muitíssimo aceite na ciência. Segundo o naturalismo metodológico (NM), ao fazer ciência temos de proceder “como se Deus não fosse dado”, para usar as palavras de Hugo Grócio. O que significa isto exactamente? Há várias sugestões; eis uma delas. Segundo o NM, 1) o conjunto de dados (o modelo) de uma teoria apropriadamente científica não pode referir Deus ou outros agentes sobrenaturais (anjos, demónios), ou empregar o que sabemos ou pensamos saber por meio da revelação (divina). Assim, os dados para uma teoria não incluiriam, por exemplo, a proposição de que houve recentemente um surto de possessão demoníaca em Washington, D. C. 2) Uma teoria científica apropriada não pode referir Deus ou quaisquer outros agentes sobrenaturais, nem empregar o que sabemos ou pensamos saber por meio da revelação. Assim, se o modelo contiver a proposição de que houve um surto de comportamentos bizarros e irracionais em Washington, D. C., não seria apropriado propor uma teoria que envolvesse a possessão demoníaca para o explicar. 3) Note-se, para começar, que a probabilidade ou plausibilidade de possíveis teorias e a sua capacidade para explicar os dados, assim como as suas implicações empíricas, é sempre relativa a uma série de informações de fundo ou uma base epistémica. A terceira restrição é, então, que a base epistémica de uma teoria apropriadamente científica não pode incluir proposições que impliquem obviamente7 a existência de Deus ou quaisquer outros agentes sobrenaturais, ou proposições que sabemos ou pensamos que sabemos por meio da revelação. Pois considere-se alguém que de facto aceita as linhas principais de uma das religiões teístas, e trabalha na área da psicologia evolucionista. Sem dúvida que irá honrar o NM como restrição à sua actividade científica. Se o fizer, para todos os propósitos científicos irá eliminar do seu corpo de dados as proposições que impliquem obviamente a existência de Deus ou de outros seres sobrenaturais, tal como o que ela sabe ou pensa que sabe por meio da fé ou da revelação. Mas então ela poderá muito bem produzir teorias do género que temos vindo a apontar, teorias incompatíveis com a religião teísta.
Uma área bastante diferente, mas com a mesma dialéctica: a crítica bíblica histórica (CBH). A CBH é diferente do comentário bíblico tradicional. O praticante deste último pressupõe que a Bíblia é a palavra de Deus, e tenta pôr a nu o significado do que é ensinado em várias partes da Bíblia. O praticante da CBH, por outro lado, põe especificamente entre parêntesis a crença de que a Bíblia é revelação divina, e tenciona ao invés estudá-la cientificamente. Assim, o falecido Raymond Brown, um estudioso católico das escrituras muitíssimo respeitado, crê que a CBH é “crítica bíblica científica” (Brown 1973, p. 6); dá origem a “resultados factuais” (p. 9); pretende que os seus próprios contributos sejam “cientificamente respeitáveis” (p. 11); e os praticantes da CBH investigam as escrituras com “exactidão científica” (pp. 18–19); veja- se também Meier 1991, p. 6. Estudar a Bíblia cientificamente, portanto, é estudá-la de um modo que obedeça às restrições do NM. (Veja-se também Sanders 1985, p. 5; Levenson 1993, p. 109; e Lindars 1986, p. 91).
Tem havido, como seria de esperar, uma tensão considerável entre a CBH, entendida deste modo, e os cristãos tradicionais, remontando pelo menos a David Strauss, em 1835: “Não, se fôssemos cândidos connosco mesmos, o que era história sagrada para o crente cristão é, para a porção iluminada dos nossos contemporâneos, apenas fábula”. Quanto a tensões contemporâneas, segundo Luke Timothy Johnson:
“Os investigadores do Jesus histórico insistem que temos de encontrar o “Jesus real” nos factos da sua vida antes da sua morte. A ressurreição é vista, quando chega a ser tida em consideração, em termos de uma experiência visionária, ou como uma continuação de uma “emancipação” que começou antes da morte de Jesus. Explícita ou não, a premissa operativa é que não há qualquer “Jesus real” depois da sua morte”. (Johnson 1997, p. 144)
E, segundo Van Harvey, “No que respeita ao historiador bíblico, [...] não há praticamente qualquer crença tradicional popular sobre Jesus que não seja encarada com considerável cepticismo” (Harvey 1986, p. 193).
Uma característica absolutamente central da CBH é este esforço de ser científica. Claro que podemos perguntar-nos se a CBH, ou qualquer estudo histórico, é realmente ciência; os seus defensores dizem que o é, mas terão razão? Dada a dificuldade do problema da demarcação, contudo, não é provavelmente avisado transformar esta pergunta numa objecção. (Além disso, ainda que os estudos históricos deste tipo não sejam precisamente ciência, são certamente muito parecidos à ciência.) E na medida em que a CBH exige a conformidade ao NM, quem a pratica põe entre parêntesis ou suspende ou põe de lado quaisquer perspectivas teológicas, ou o que é conhecido por revelação.8 Tal como acontece com a psicologia evolucionista, portanto, quem trabalha na CBH pode de facto aceitar uma ou outra religião teísta, mas no seu trabalho como praticante de CBH, chegar a conclusões incompatíveis com a sua crença religiosa. Até agora, portanto, temos aqui a mesma dialéctica que vimos na psicologia evolucionista: teorias incompatíveis com a religião teísta que resultam (pelo menos em parte) do NM.
Pelo menos nestas duas áreas, portanto, há um conflito entre as teorias científicas e a crença religiosa. Num aspecto muitíssimo importante, contudo, este conflito é superficial. Isto porque as teorias e teses da psicologia evolucionista e a CBH não precisam de refutar, nem sequer parcialmente,9 aqueles elementos da crença religiosa com os quais são incompatíveis — ainda que o teísmo esteja obrigado a levar a ciência muito a sério e ainda que se conceda que as teorias em questão constituem boa ciência. E isto precisamente porque o NM é encarado como uma restrição à actividade científica. Podemos ver isto como se segue. Como já foi sugerido, a investigação científica é sempre conduzida contra um pano de fundo de um corpo de dados, um corpo de conhecimento ou crença de fundo. Uma parte importante do NM, além disso, é que este corpo de dados não pode conter proposições que impliquem obviamente a existência de seres sobrenaturais, ou proposições que são aceites por meio da fé. Segue-se que o corpo de dados de um partidário de uma religião teísta irá conter o corpo científico de dados como uma parte própria; irá incluir todas as proposições que encontramos no corpo científico de dados, além de outros — talvez os que são específicos da crença cristã. Suponha-se agora que uma dada teoria — a teoria do altruísmo de Simon, ou a teoria da religião de Wilson, ou uma explicação minimalista da vida e actividade de Jesus — é de facto ciência apropriada, e que é de facto a resposta teórica mais plausível e cientificamente mais satisfatória aos dados, dado o CCD, o corpo científico de dados. Isto significa que do ponto de vista do CCD, juntamente com os dados actuais, essa teoria é o melhor ou mais plausível resultado. Mesmo assim, isso não dá automaticamente a um crente algo que refuta aquelas suas crenças com as quais a teoria é incompatível. Isto porque o CCD é apenas uma parte do seu corpo de dados. E pode muito bem acontecer que uma proposição P seja a resposta plausível, dada uma parte da minha base de dados (juntamente com os dados actuais), que P seja incompatível com uma das minhas crenças, e que P não me dê algo que refute essa crença.
Por exemplo, suponha-se que lhe digo que o vi ontem à tarde no centro comercial. Então, com respeito a parte do seu corpo total de dados — a parte que inclui o seu conhecimento de que eu lhe disse que o vi lá, juntamente com o seu conhecimento de que eu tenho uma visão decente e sou, de ordinário, confiável, etc. — a coisa certa a pensar é que você esteve no centro comercial. Contudo, suponhamos, você sabe perfeitamente que não esteve lá; lembra-se de ter estado toda a tarde em casa, pensando sobre o naturalismo metodológico. Aqui, a coisa certa a pensar da perspectiva de uma parte própria do seu corpo de dados é que você esteve no centro comercial; mas isto não lhe fornece algo que refute a sua crença de que não esteve lá. Outro exemplo: podemos imaginar um grupo renegado de físicos extravagantes que se propõem reconstruir a física, recusando-se a usar crenças de memória, ou, se isso for demasiado fantasioso, memórias com mais de um minuto. Talvez algo se possa fazer nesta direcção, mas seria uma coisa pobre, insignificante, mutilada e fútil. E agora suponha-se que a melhor teoria, do ponto de vista deste corpo limitado de dados, é inconsistente com a relatividade geral. Deve isso preocupar os físicos mais tradicionais que usam o que sabem por meio da memória, assim como o que os físicos renegados usam? Penso que não. Esta física mutilada dificilmente poderia pôr em questão a física mais ampla, e o facto de, ao partir de uma parte própria do corpo científico de dados, algo inconsistente com a teoria da relatividade constituir a melhor teoria — esse facto dificilmente daria aos físicos mais tradicionais algo que refutasse a teoria da relatividade.
O mesmo ocorre no caso em discussão. O cristão tradicional pensa que sabe pela fé que Jesus era divino e que ressuscitou dos mortos. Mas então não tem de ficar impressionado pelo facto de estas proposições não serem especialmente objecto de prova com base no corpo de dados a que a CBH se limita — i.e., um corpo de dados restringido pelo NM e que portanto elimina qualquer conhecimento ou crença que dependa da fé. As descobertas da CBH, se é que o são, não têm de lhe dar algo que refute as suas crenças com as quais são incompatíveis. O que está em causa não é que a CBH, a psicologia evolucionista e outras teorias científicas não podem em princípio fornecer algo que refute a crença cristã;10 o que está em causa é apenas o aparecimento de teorias, nessas áreas, incompatíveis com a crença cristã não produz automaticamente algo que a refute. Tudo depende dos dados particulares aduzidos no caso em questão, e as implicações desses dados dado o corpo completo de dados do crente. No caso em questão, por exemplo, pode ser que, dado o CCD e o corpo relevante de dados, é improvável que Jesus tenha renascido dos mortos. Mas dado um corpo de dados que inclua não apenas o CCD mas também a crença em Deus, juntamente com as crenças especificamente cristãs de que Jesus é a segunda pessoa da Trindade encarnada, e que o Novo Testamento é uma fonte de informação fidedigna nestas questões — dadas estas coisas, a proposição de que Jesus renasceu dos mortos pode não ser improvável. Considerações semelhantes se poderiam fazer, é claro, para outras religiões teístas, e com respeito a outras supostas refutações científicas.
Uma pessoa poderia protestar que isto parece uma receita para a irresponsabilidade intelectual, para nos agarrarmos a crenças face aos dados. Não poderá um crente dizer sempre algo como isto, seja qual for a refutação que se apresente? “Talvez B (a crença a refutar) seja improvável com respeito a uma parte do que acredito”, poderá o crente dizer, “mas certamente não é improvável com respeito à totalidade do que acredito, totalidade essa que inclui, é claro, a própria B.” É óbvio que isto não pode estar certo; se estivesse, tudo o que hipoteticamente poderia refutar algo seria posto de lado deste modo, e a refutação seria impossível. Mas a refutação não é impossível; acontece por vezes que adquirimos algo que refuta uma crença B, ao descobrir que B é improvável com respeito a um dado subconjunto próprio do nosso corpo de dados. Segundo o livro de Isaías (41:9), Deus afirma “fui buscar-te aos confins da Terra,
chamei-te dos cantos mais remotos. Eu disse-te: Tu é que és o meu servo. Foi a ti que escolhi e não te rejeitarei”. Uma pessoa poderia acreditar que R, a proposição de que a Terra é um sólido rectangular, com cantos, na base deste texto; terá algo que refuta esta crença quando for confrontada com os dados científicos — fotografias da Terra vista do espaço, por exemplo — que a contrariam. Em qualquer caso, terá algo que refuta R se o resto da sua estrutura noética for como a nossa. O mesmo acontece com alguém que sustente crenças pré-copernicianas com base em textos como “A Terra permanece imóvel; não será deslocada” (Salmos 104:5). Por que há refutadores em alguns casos, mas não noutros? O que faz a diferença?
Eis uma sugestão. Considere-se uma crença religiosa B, incompatível com um resultado de uma teoria científica actual: B poderia ser, por exemplo, a crença de que a Madre Teresa era perfeitamente racional ao comportar-se daquele modo altruísta. Seja a teoria científica a explicação do altruísmo de Herbert Simon, e seja CDC o corpo de dados do crente. A nossa questão é se A, a crença de que a teoria de Simon é apropriadamente ciência (e que implica a negação de B), refuta B. Acrescente-se A ao corpo de dados de S; agora a questão correcta é, talvez, esta: é B epistemicamente improvável com respeito à conjunção de A com CDC? Claro que a própria B poderia ser inicialmente um membro do CDC, caso em que não seria certamente improvável com respeito a ele. Se isso fosse suficiente para A não refutar B, contudo, nenhum membro do corpo de dados poderia alguma vez ser refutado por uma nova descoberta; e isso não pode estar certo. Assim, apague-se B do CDC. Chame-se ao resultado de apagar B do corpo de dados de S “CDC reduzido com respeito a B” — “CDC-B”, abreviando.11 E agora a sugestão — chamemos-lhe “o teste por redução da refutação” — é que A refuta B apenas se B for apropriadamente improvável com respeito à conjunção de A com CDC-B.
Suponha-se que aplicamos este teste à crença B de que a Madre Teresa era racional ao comportar-se de modo altruísta, sendo A a crença de que a teoria de Simon do altruísmo é boa ciência e é incompatível com B; e suponhamos que S é um crente cristão. Para aplicar o teste por redução temos de perguntar se B é improvável com respeito à conjunção de A com CDC-B. A resposta, penso, é que B não é improvável com respeito a essa conjunção. Pois CDC-B inclui os dados empíricos, seja eles quais forem exactamente, usados por Simon, mas também a proposição de que nós, seres humanos, fomos criados por Deus e fomos criados à sua imagem, juntamente com o resto das ideias principais da história cristã. Com respeito à conjunção de A com esse corpo de proposições, não é provável que se a Madre Teresa tivesse sido mais racional, mais esperta, teria agido para aumentar a sua boa adaptação reprodutiva, em vez de viver de modo altruísta. Logo, no proposto teste por redução, o facto de que a teoria de Simon é boa ciência, e é mais provável do que improvável com respeito ao corpo científico de dados — esse facto não dá a S algo que refute o que ele pensa sobre a Madre Teresa.
Considere-se, por outro lado, a crença B* de que a Terra tem cantos e arestas, e os dados fotográficos contra essa crença: aqui, plausivelmente, o teste por redução tem como resultado que os segundos refutam B*. (É verdade que um cristão poderia pensar que a Bíblia é infalível, dado Deus ser o seu autor último; mas é claro que isso deixa em aberto a questão de saber o que visa Deus ensinar-nos na passagem em questão.) Assim, o teste por redução dá resultados sensatos nestes dois casos. Contudo, não pode estar certo em geral — mais exactamente, está certo em geral apenas aceitando um pressuposto muito importante, que o crente provavelmente rejeitará. Pois poderá acontecer, obviamente, que B tenha bastante aval em si mesma, aval que não obtém dos outros membros do CDC ou, na verdade, de quaisquer outras proposições. B pode ser básica com respeito ao aval; B pode obter aval de uma fonte diferente de qualquer fonte envolvida na teoria científica com a qual é incompatível. Se isso acontecer, o facto de B ser improvável com respeito a CDC-B não mostra que S tem algo que refuta B pelo facto de B ser improvável com respeito a CDC-B juntamente com a A relevante.
Como exemplo ilustrativo, você está a ser julgado por um dado crime; os dados contra si são fortes, e você é condenado. Contudo, você lembra-se muito claramente que no momento em que o crime ocorreu estava a passear sozinho no bosque. A sua crença de que estava a caminhar no bosque não se baseia em argumentos ou inferências de outras proposições. (Você não repara, e.g., que se sente um pouco cansado e que os seus sapatos têm lama, e que está um mapa da área no bolso do seu casaco, concluindo que a melhor explicação destes fenómenos é que esteve a caminhar no bosque.) Assim, considere-se o seu corpo de crenças, SCC, menos P, a proposição de que não cometeu o crime e estava a caminhar no bosque quando este foi cometido. Com respeito a SCC-P, P é epistemicamente improvável; afinal, você tem os mesmos dados do que o júri a favor de ¬P, e o júri está muito apropriadamente (ainda que erradamente) convencido de que você cometeu o crime. Contudo, você não tem aqui, certamente, algo que refuta a sua crença de que está inocente. A razão, é claro, é que P é para si uma fonte de aval independente do resto das suas crenças: você lembra-se disso. No caso destes, ter ou não algo que refute a crença P em questão irá depender, por um lado, da força do aval intrínseco que tem P, e, por outro lado, da força dos dados contra P quanto a SCC-P. O aval intrínseco será muitas vezes mais forte.
O mesmo se aplica a crenças religiosas, se estas de facto tiverem aval intrínseco. Se S tem uma crença religiosa B e se B tiver aval do modo básico, então mesmo que a probabilidade de B quanto a CDC-B juntamente com a A relevante seja baixa, não se segue que A refuta B para S. Talvez o teste por redução ofereça uma condição necessária para que A refute B para S; é também suficiente apenas se as crenças religiosas não tiverem aval ou estatuto epistémico positivo de um modo básico, e apenas se não adquirem aval ou estatuto epistémico positivo de uma fonte além das que conferem esse estatuto às crenças científicas. É por isso, em parte, que a questão mencionada na secção 2 é importante.
Examinámos até agora o alegado conflito entre a crença religiosa e a ciência, com respeito a várias áreas: evolução, acção divina no mundo, a diferença entre a atitude científica e a religiosa, psicologia evolucionista e CBH. Mas houve quem sugerisse um conflito entre a ciência e a religião (ou entre a ciência e a quase-religião) de um género totalmente diferente: entre o naturalismo e a ciência (Otte 2002; Plantinga 1993, 2002a; Rea 2002; Taylor 1963; há também sugestões disto em Nietzsche 2003 e no próprio Darwin 1887).
Ora bem, o naturalismo é muito diversificado. Primeiro, há a perspectiva de que a natureza é tudo o que há; não há seres sobrenaturais. Claro que isto é um pouco fraco como explicação do naturalismo; precisamos de saber o que é a natureza, e como poderiam ser os alegados seres sobrenaturais. Talvez um modo de proceder seja dizer que o naturalismo, concebido deste modo, é a perspectiva de que não há uma pessoa como o Deus do teísmo, ou algo como Deus (veja-se, por exemplo, Beilby 2002). Chame-se a isto “naturalismo1”. Outra variedade de naturalismo, “naturalismo científico”, como lhe poderíamos chamar, seria a tese de que não há entidades além das que são sancionadas pela ciência actual (Kornblith 1994).12 Dado que a ciência actual não sanciona seres sobrenaturais, o naturalismo científico implica o naturalismo1. Há também o que poderíamos chamar “naturalismo epistemológico”, segundo o qual, grosso modo, os métodos da ciência são os únicos métodos epistémicos apropriados (Krikorian 1994). Com a ajuda de um par de premissas razoavelmente óbvias, o naturalismo epistemológico implica também o naturalismo1, e eu irei usar “naturalismo” para referir a disjunção das três versões de naturalismo esboçadas. Os partidários do naturalismo, concebido deste modo, seriam (por exemplo) Bertrand Russell (1957), Daniel Dennett (1995), Richard Dawkins (1986), David Armstrong (1978) e muitos outros de quem por vezes se diz que subscrevem “a mundividência científica”.
O naturalismo não é, presumivelmente, uma religião. Num aspecto muito importante, contudo, é parecido a uma religião: pode-se dizer que desempenha a função de uma religião. Há o domínio de questões profundamente humanas a que uma religião tipicamente responde (veja-se acima, secção I): qual é a natureza fundamental do universo: por exemplo, é a mente primordial, ou a matéria (não mental)? O que há de mais real e básico na realidade, e que tipos de entidades exibe? Qual é o lugar dos seres humanos no universo, e que relação têm com o resto do mundo? Há perspectivas de uma vida depois da morte? Existe pecado, ou algo a análogo ao pecado? Se sim, que perspectivas existem de o combater ou ultrapassar? Onde temos de atentar para melhorar a condição humana? Há realmente um summum bonum, um bem mais elevado para os seres humanos, e se sim, o que é? Como uma religião típica, o naturalismo dá um conjunto de respostas a estas e outras questões semelhantes. Podemos portanto dizer que o naturalismo desempenha a função cognitiva de uma religião, e portanto é sensato concebê-lo como uma quase-religião.
Acresce que muitos pensadores, remontando pelo menos a Nietzsche (2003) e possivelmente a William Whewell (Curtis 1986), fizeram notar uma implicação potencialmente preocupante da teoria da evolução. A preocupação pode ser formulada como se segue. Segundo o darwinismo ortodoxo, o processo da evolução é conduzido principalmente por dois mecanismos: mutação genética aleatória e selecção natural. O primeiro é a fonte principal de variabilidade genética; em virtude da segunda, uma mutação que resulte num traço transmissível geneticamente e que aumente a boa adaptação irá provavelmente espalhar-se por essa população e ser preservada como parte do genoma. São os comportamentos e traços que aumentam a boa adaptação que são recompensados pela selecção natural; o que é penalizado são traços e comportamentos que dificultam a boa adaptação. Ao produzir as nossas faculdades cognitivas, a selecção natural irá favorecer as faculdades e processos cognitivos que resultem em comportamento adaptativo; não se importa nem um pouco com a crença verdadeira (enquanto tal) nem com as faculdades cognitivas que conduzem de modo fidedigno à crença verdadeira. Como afirmou o psicólogo evolucionista David Sloan Wilson, “a mente bem adaptada é em última análise um órgão de sobrevivência e reprodução” (Wilson 2002, 228). Se as nossas mentes servem para algo, não é a produção de crenças verdadeiras, mas antes a produção de comportamento adaptativo: que a nossa espécie tenha sobrevivido e evoluído garante, no máximo, que o nosso comportamento é adaptativo; não garante, nem sequer torna provável, que os nossos processos de produção de crenças sejam na sua maior parte fidedignos, ou que as nossas crenças sejam na sua maior parte verdadeiras. Isto porque o nosso comportamento poderia perfeitamente ser adaptativo, mas as nossas crenças serem tão frequentemente falsas como verdadeiras. O próprio Darwin se preocupou aparentemente com esta questão:
“Comigo, levanta-se sempre a dúvida horrível de as convicções da mente humana, que foi desenvolvida a partir da mente dos animais inferiores, terem ou não algum valor, ou serem realmente dignas de confiança. Confiaria alguém nas convicções da mente de um macaco, se é que em tal mente há quaisquer convicções?” (Darwin 1887)
Podemos formular brevemente a dúvida de Darwin como se segue. Seja R a proposição de que as nossas faculdades cognitivas são fidedignas, N a proposição de que o naturalismo é verdadeiro e E a proposição de que nós e as nossas capacidades cognitivas surgimos dos processos apontados pela teoria evolucionista contemporânea: qual é a probabilidade condicional de R dado N&E? I.e., qual é o valor de P(R | N&E)? Darwin receia que seja muito baixo.
Mas é claro que só a evolução natural que não seja guiada dá origem a esta preocupação. Se a selecção natural for guiada e orquestrada pelo Deus do teísmo, por exemplo, a preocupação desaparece; Deus usará todo o processo, presumivelmente, para criar criaturas do género que quer, criaturas à sua própria imagem, criaturas com faculdades cognitivas fidedignas. Assim, é a evolução que não é guiada, e as crenças metafísicas que implicam a evolução que não é guiada, que dão origem a esta preocupação quanto à fiabilidade das nossas faculdades cognitivas. Ora, o naturalismo implica que a evolução, se ocorre, não é realmente guiada. Mas então, segundo esta sugestão, é improvável que as nossas faculdades cognitivas sejam fidedignas, dada a conjunção do naturalismo com a proposição de que nós e as nossas faculdades cognitivas surgimos por meio da selecção natural, peneirando a variação genética aleatória. Sendo assim, quem crê nesta conjunção terá algo que refuta a proposição de que as nossas faculdades são fidedignas — mas se isso for verdadeiro, terá também algo que refuta qualquer crença produzida pelas suas faculdades cognitivas — incluindo, é claro, a conjunção do naturalismo com a evolução. Assim se vê que essa conjunção é auto-refutante. Se o for, contudo, tal conjunção não pode racionalmente ser aceite, caso em que há um conflito entre o naturalismo e a evolução, e portanto entre o naturalismo e a ciência.
Podemos formular esquematicamente o argumento como se segue:
Claro que esta é uma versão concisa e meramente esquemática do argumento; não há aqui espaço para as necessárias ressalvas.
A defesa de 1 seria algo como o seguinte. Primeiro, para evitar a influência do nosso pressuposto natural de que as nossas faculdades cognitivas são fidedignas, pensemos não sobre nós, mas sobre criaturas hipotéticas muito parecidas connosco, existindo talvez noutra parte do universo; e suponha-se que N e E são verdadeiras com respeito a elas. De seguida, note-se que o naturalismo implica aparentemente o materialismo (quanto aos seres humanos); a ciência actual não sustenta a existência de almas imateriais ou mentes ou eus. Assim, considere-se que o naturalismo inclui o materialismo. O que seria uma crença, deste ponto de vista? Presumivelmente, algo como um acontecimento ou estrutura de longo prazo no sistema nervoso — talvez um grupo estruturado de neurónios conectados e relacionados de certos modos. Tal estrutura neuronal terá propriedades neurofisiológicas (“propriedades NF”): propriedades que especificam o número de neurónios envolvidos, o modo como estes neurónios estão conectados entre si e com outras estruturas (como músculos, glândulas, órgãos dos sentidos, outros acontecimentos neuronais, etc.), a cadência e intensidade médios dos disparos neuronais em várias partes deste acontecimento, e os modos como estas cadências de disparos mudam ao longo do tempo e em resposta aos dados de entrada de outras áreas. Se este acontecimento for realmente uma crença, contudo, terá também conteúdo; será a crença de que p, para uma dada proposição p — talvez a proposição de que o naturalismo está na berra hoje em dia.
Qual é a relação entre as propriedades NF, por um lado, e as propriedades do conteúdo — propriedades como ter como conteúdo a proposição de que o naturalismo está na berra hoje em dia —, por outro? Talvez a posição mais popular aqui seja o “materialismo não redutor” (MNR): as propriedades do conteúdo são distintas mas são sobrevenientes relativamente às propriedades NF.13 A sobreveniência pode ser ou lógica, em termos latos, ou nómica. Neste último caso, haveria leis psicofísicas relacionando as propriedades NF com as propriedades do conteúdo: leis do género qualquer estrutura com tais e tais propriedades NF terão tal e tal conteúdo. Estas leis serão presumivelmente contingentes (no sentido lógico lato ou no sentido metafísico). No primeiro caso, haverá também tais leis, mas serão necessárias e não contingentes.
Ora, tome-se qualquer crença B da parte de um membro dessa hipotética população: qual é a probabilidade (epistémica) de que B seja verdadeira, dado N&E e o materialismo não redutor — qual é o valor de P(B | N&E&MNR)? O que sabemos é que B tem um certo conteúdo (chamemos-lhe “C”), e (podemos admitir ou conceder) ter B é adaptativo nas circunstâncias em que a criatura se encontra. Qual é então a probabilidade de que C, o conteúdo de B, seja verdadeiro? Bem, qual é a probabilidade de que a lei psicofísica relevante L que liga as propriedades NF e as propriedades do conteúdo produza uma proposição verdadeira como conteúdo neste caso? Ter B é adaptativo, nas circunstâncias em que a criatura se encontra; exibir as propriedades NF sobre as quais C sobrevém causa comportamento adaptativo. Mas porquê pensar que o conteúdo conectado às propriedades NF por L será verdadeiro nas circunstâncias desta criatura? O que conta como adaptatividade são as propriedades NF e o comportamento que estas causam; não importa se o conteúdo sobreveniente é verdadeiro. As propriedades NF são de facto adaptativas; mas isso não fornece qualquer razão, até agora, para pensar que o conteúdo sobreveniente é verdadeiro. Ter B é adaptativo em virtude de causar comportamento adaptativo, e não em virtude de ter um conteúdo verdadeiro. Claro que se o teísmo for verdadeiro, então os seres humanos (ao contrário dessas hipotéticas criaturas, para quem o naturalismo é verdadeiro) são feitas à imagem divina, o que inclui a capacidade de conhecimento; assim, Deus escolheria presumivelmente as leis psicofísicas de modo a que, nas circunstâncias relevantes, a neurofisiologia produza conteúdo verdadeiro. Mas nada disto é verdadeiro dado o naturalismo; supor que as propriedades do conteúdo que são adaptativas conduzem também, na sua maior parte, a conteúdo verdadeiro, seria um optimismo totalmente injustificado.
Assim, qual é o valor de P(B | N&E&MNR)? Bem, dado que a verdade de B não faz diferença quanto à adaptatividade de B, esta poderia efectivamente ser verdadeira, mas é igualmente provável que seja falsa; teríamos de calcular que a probabilidade de que é verdadeira é mais ou menos a mesma do que a probabilidade de que é falsa. Mas isto significa que é improvável que o crente em questão tenha faculdades cognitivas fidedignas, i.e., faculdades que produzem uma preponderância suficiente de crenças verdadeiras em relação às falsas. Por exemplo, sendo assim, se o crente em questão tiver mil crenças independentes, cada uma delas tendo igual probabilidade de ser falsa ou verdadeira, a probabilidade de, digamos, 3/4 delas serem verdadeiras (e isto seria uma exigência modesta de fiabilidade) seria muito baixa — menos de 10-58. Assim, P(B | N&E&MNR), aplicada a estas criaturas, será baixa. Mas é claro que o mesmo se aplicaria a nós, se o naturalismo fosse verdadeiro: P(B | N&E&MNR), aplicada a nós, seria igualmente baixa.14
Este é o argumento para a primeira premissa. Segundo a premissa 2, quem vê isto e também aceita N&E tem algo que refuta R, uma razão para a abandonar, para deixar de crer nela. A defesa oferecida desta premissa é por meio de uma analogia partindo de casos claros. Suponha-se que acredito que há uma droga — chamemos-lhe XX — que destrói a fiabilidade cognitiva; eu acredito que 95% dos que ingerem XX perdem a fiabilidade cognitiva. Suponha-se ainda que eu acredito agora que ingeri XX e que P(R | ingeri XX) é baixa; tomadas conjuntamente, estas duas crenças dão-me algo que refuta a minha crença inicial ou pressuposto de que as minhas faculdades cognitivas são fidedignas. Além disso, não posso apelar para qualquer das minhas outras crenças para mostrar ou argumentar que as minhas faculdades cognitivas ainda são fidedignas; qualquer dessas outras crenças está também agora sob suspeita ou está comprometida, tal como R. Qualquer outra crença B é um produto das minhas faculdades cognitivas: mas então, ao reconhecer isto, e tendo algo que refuta R, tenho também algo que refuta B. Claro que haverá muitos outros exemplos: chego ao mesmo resultado se acreditar que sou um cérebro numa cuba e que P(R | sou um cérebro numa cuba) é baixa; o mesmo se aplica à versão cartesiana clássica da mesma ideia (nomeadamente, que fui criado por um ser que gosta de me enganar) e também para cenários mais corriqueiros, por exemplo, a crença de que enlouqueci (talvez porque tenha sido contaminado com a doença das vacas loucas). Em todos estes casos, tenho algo que refuta R.
Ora, segundo a premissa 3, quem tem algo que refuta R, tem algo que refuta qualquer crença que considere que é um produto das suas faculdades cognitivas — que são, é claro, todas as suas crenças. Essa pessoa tem portanto algo que refuta a própria N&E; quem aceita N&E (e vê que P(R | N&E) é baixa) tem algo que refuta N&E, uma razão para duvidar dela ou rejeitá-la ou para ser agnóstico com respeito a ela. Nem poderia essa pessoa obter indícios independentes a favor de R; o processo de o fazer iria é claro pressupor que as suas faculdades são fidedignas. Ela estaria a apoiar-se na precisão das suas faculdades para acreditar que os alegados indícios estão de facto presentes e que são de facto indícios a favor de R. Thomas Reid (1785, 276) formulou este aspecto como se segue:
“Se a honestidade de um homem é posta em causa, seria ridículo basearmo-nos na sua própria palavra, seja ele honesto ou não. O mesmo absurdo há ao procurar provar, por qualquer tipo de raciocínio, provável ou demonstrativo, que o nosso raciocínio não é falacioso, dado que o que está em causa é o nosso raciocínio ser ou não digno de confiança”.
O argumento conclui que a conjunção de naturalismo com a teoria da evolução não pode ser racionalmente aceite — em qualquer caso, por alguém que seja posto ao corrente deste argumento e veja a conexão entre N&E e R.
Como seria de esperar, este argumento tem sido controverso. Várias objecções lhe foram levantadas (Beilby 1997; Ginet 1995, 403; O'Connor 1994, 527; Ross 1997; Fitelson e Sober 1998; Robbins 1994; Fales 1996; Lehrer 1996; Nathan 1997; Levin 1997; Fodor 1998). Houve respostas a estas objecções (Plantinga 2002a; 2003), respostas a estas respostas (Talbott, 2010), etc.; não há qualquer consenso com respeito ao argumento. Se o argumento for correcto, contudo, e N&E não puder ser racionalmente aceite, então há um conflito entre o naturalismo e a evolução; não se pode racionalmente aceitar ambos. Assim, há um conflito entre o naturalismo e uma das bases principais da ciência contemporânea. Na medida em que o naturalismo é uma quase-religião em virtude de desempenhar a função cognitiva de uma religião, há uma espécie de conflito entre a religião e a ciência —não entre a religião teísta e a ciência, mas entre o naturalismo e a ciência.
Pelos conselhos sábios e boas sugestões, agradeço a Brian Boeninger, Thad Botham, E.J. Coffman, Robin Collins, Tom Crisp, Chris Green, Jeff Green, Marcin Iwanicki, Nathan King, Dan McKaughan, Dolores Morris, Brian Pitts, Luke Potter e Del Ratzsch.