“Ofensivo”, “grotesco”, “revoltante”, “repugnante” e “repulsivo” — são estas as palavras que comummente se ouve relativamente à possibilidade de clonar seres humanos. Estas reacções vêm tanto do homem e da mulher comuns como dos intelectuais, de crentes e ateístas, de humanistas e de cientistas. Mesmo o criador da Dolly disse que “consideraria ofensivo” criar um clone de um ser humano.
As pessoas sentem repulsa por diversos aspectos da clonagem humana. Reagem à perspectiva de produção em massa de clones humanos, de clones iguais em larga escala, com a sua própria individualidade comprometida; à ideia de filhos que são clones do pai ou da mãe; à perspectiva bizarra de uma mulher dar à luz uma cópia exacta de si própria, do seu marido, ou mesmo do seu falecido pai ou mãe; ao grotesco de conceber uma criança para ser a substituta exacta de outro filho que morreu; à criação utilitária de réplicas genéticas de embriões de si próprio, para congelar e para criar um clone para quando for necessário, por exemplo, para quando precisar de tecidos e órgãos compatíveis para transplante; ao narcisismo dos que se clonam a si próprios e à arrogância de outros que pensam saber quem merece ser clonado ou qual deve ser o genótipo que uma criança deve receber; à arrogância frankensteiniana de criar vida e de aumentar o controlo do destino; ao homem a fazer de Deus. Qualquer pessoa considera plausíveis estas razões contra a clonagem humana; qualquer pessoa é capaz de antecipar possíveis usos perversos ou abusos. Mais: bastantes pessoas sentem-se deprimidas com a sensação de que provavelmente nada há a fazer para impedir que isto aconteça. Isso torna esta perspectiva ainda mais revoltante.
A aversão não é um argumento; e as repugnâncias de ontem são hoje aceites com serenidade — embora, deva acrescentar-se, nem sempre com os melhores resultados. Em casos cruciais, a repugnância é a expressão emocional de uma profunda sabedoria, que está para lá de razões completamente articuladas. Pode alguém fornecer um argumento totalmente adequado para o horror do incesto entre pai e filha (mesmo com consentimento), ou para o sexo com animais, ou para a mutilação de cadáveres, ou para o canibalismo, ou para a violação ou o assassínio de uma pessoa? Será que o facto de alguém não ser capaz de apresentar uma justificação racional para a sua aversão a estas práticas, torna tal aversão eticamente suspeita? De modo nenhum. Pelo contrário, desconfiamos dos que pensam poder racionalizar o nosso horror, digamos, ao tentar explicar a enormidade do incesto com argumentos fundados apenas na questão dos riscos genéticos da ocorrência de procriação.
A repugnância da clonagem humana pertence a esta categoria. Sentimos repulsa pela possibilidade de clonar seres humanos não por causa da estranheza ou da novidade do feito, mas porque intuímos e sentimos imediatamente, sem necessidade de argumentos, a violação de coisas que consideramos, e bem, serem preciosas. A repugnância, aqui e noutros casos, revolta-nos contra os excessos do voluntarismo humano, avisa-nos para não transgredirmos aquilo que é profundamente indizível. De facto, nos tempos em que se defende que tudo é permissível desde que feito livremente, em que a natureza humana que nos foi dada já não merece respeito, em que os nossos corpos são vistos como meros instrumentos da autonomia da nossa vontade racional, a repugnância pode ser a única voz que defende o núcleo da nossa humanidade. Fracas são as almas que esqueceram como vibrar.
Os bens protegidos pela repugnância são geralmente ignorados pela forma habitual de encarar as novas tecnologias biomédicas. O modo como avaliamos eticamente a clonagem terá de facto como modelo a maneira como a caracterizamos descritivamente, pelo contexto em que a colocamos, e pela perspectiva a partir da qual a consideramos. A primeira tarefa da ética é a descrição correcta. E é aqui que começa o nosso erro.
A clonagem é tipicamente discutida num ou mais de três contextos bem conhecidos, a que podemos chamar “tecnológico”, “liberal” e “meliorista”. Do ponto de vista do primeiro, a clonagem será vista como um alargamento das técnicas existentes para a reprodução assistida e para determinar o código genético da criança. Como nestes casos, a clonagem é vista como uma técnica neutra, sem qualquer significado ou bondade inerente, mas sujeita a usos diversos, uns bons, outros maus. A moralidade da clonagem depende então em absoluto da bondade ou maldade dos motivos e intenções de quem a fizer. Como diz um bioeticista defensor da clonagem, “a ética deve ser julgada [apenas] pelo modo como os pais cuidam e educam os seus filhos e por darem ou não o mesmo amor e afecto à criança nascida através de técnicas de reprodução assistida que dariam a um filho nascido da forma usual”.
A perspectiva liberal coloca a questão da clonagem no contexto dos direitos, liberdades e poderes pessoais. A clonagem é apenas mais uma possibilidade para o exercício do direito individual de reprodução ou de ter um filho que se deseja. Em alternativa, a clonagem aumenta a nossa libertação (especialmente a libertação da mulher) dos grilhões da natureza, da vagueza do acaso, ou da necessidade do acasalamento. Com efeito, também liberta a mulher da necessidade do homem, já que o processo apenas requer óvulos, núcleos e (por enquanto) útero — mais, claro, uma dose saudável (“alegadamente” masculina) de manipulação científica que gosta de fazer todas essas coisas à mãe natureza e à natureza das mães. Quem defende esta perspectiva considera que a única restrição moral à clonagem é o adequado consentimento informado e o evitar dano físico. Se alguém for clonado com consentimento, e se não houver dano do clonado, então terão sido respeitadas as condições liberais para uma conduta lícita e moral. Preocupações com a violação da vontade ou a desfiguração do corpo são afastadas por serem “simbólicas” — o que é o mesmo que dizer irreais.
A perspectiva meliorista tanto acolhe os valetudinários como os eugenistas. Os últimos eram anteriormente mais contundentes nestas discussões, mas em geral não gostam de ver os seus objectivos ser alcançados por meio de palavras de ordem menos ameaçadoras da liberdade e do crescimento tecnológico.
Estas pessoas encaram a clonagem como uma nova oportunidade para melhorar o ser humano — no mínimo, por assegurar a perpetuação da saúde dos indivíduos, evitando os riscos de doenças genéticas inerentes à lotaria do sexo; no máximo, por produzir “bebés óptimos”, preservando material genético extraordinário, e (com a ajuda de técnicas mais avançadas para a manipulação genética rigorosa) potenciando capacidades humanas nascidas em diversas áreas. Aqui, a moralidade da clonagem como meio está justificada apenas pela excelência do fim, quer dizer, pelos traços extraordinários dos indivíduos clonados — beleza, músculo e inteligência.
Estas três perspectivas, todas tipicamente americanas e perfeitamente adequadas no seu lugar, são bastante insuficientes enquanto perspectivas sobre a procriação humana. São, no mínimo, grosseiramente atrofiantes por verem os assombrosos mistérios do nascimento, renovação, e individualidade, e o profundo significado das relações entre pais e filhos, fundamentalmente a partir das lentes redutoras da ciência e das suas tecnologias poderosas. De igual modo, considerar a reprodução (e a sua relação íntima com a vida familiar!) primariamente sob o ponto de vista de uma noção dos direitos político-legais, adversariais, e individualistas, só pode enfraquecer o seu carácter privado, embora fundamentalmente social, cooperativo, e fundado no dever de ter filhos, de os educar e da sua relação com o contrato do casamento. Procurando escapar por completo à natureza (para satisfazer um desejo natural ou um direito natural à reprodução!) é autocontraditório em teoria e alienante na prática. Somos seres eróticos apenas porque somos seres com corpo e não meros intelectos e vontades deploravelmente aprisionadas em corpos. E embora a saúde e a forma física sejam claramente grandes bens, há algo profundamente perturbador quando olhamos para as nossas crianças potenciais como artefactos aperfeiçoados pela engenharia genética, crescentemente acrescentados aos nossos deliberadamente impostos desígnios, especificações e margens de erro tolerável.
A perspectiva técnica, como a liberal e a meliorista, ignora o profundo significado antropológico, social e ontológico de criar uma nova vida. É neste sentido mais apropriado e profundo que a perspectiva da clonagem acaba por ser uma violação profunda da nossa natureza de seres com corpo, com género e reprodutores — cujas relações sociais são construídas com base nesta natureza. Logo que esta perspectiva seja reorganizada, a avaliação ética da clonagem já não poderá ser reduzida a matéria de motivos e intenções, direitos e liberdades, benefícios e danos, ou até a meios e fins. Deve ser encarada primariamente como uma questão de significado: será a clonagem uma actualização da capacidade humana para a parentalidade e para a pertença? Ou, ao invés, como defendo, para a poluição e para a perversão? A resposta adequada para a poluição e para a perversão só pode ser o horror e a aversão; e conversamente, o horror e a aversão generalizados são prima facie indícios da ofensa e da violação. O ónus do argumento moral deve recair inteiramente sobre aqueles que declaram que a repugnância geral da humanidade é mero receio e superstição.
Mas a repugnância não precisa estar nua no bar da razão. A sabedoria do nosso horror relativamente à clonagem humana pode ser parcialmente articulada, mesmo que esta seja uma daquelas situações em que o coração tem razões que a razão não pode inteiramente compreender.
Para ver a clonagem no seu exacto contexto, temos de começar não, como fiz antes, pelo laboratório técnico, mas pela antropologia — natural e social — da reprodução sexual.
A reprodução sexual — pela qual designo a geração de uma nova vida a partir de (exactamente) dois elementos complementares, uma fêmea e um macho (habitualmente) através do coito — é estabelecida (se é que esse é o termo correcto) não pela decisão humana, cultura, ou tradição, mas pela natureza; é a forma natural dos mamíferos reproduzirem. Por natureza, cada criança tem dois progenitores biológicos complementares. Cada criança descende e une exactamente duas linhagens. Além do mais, na geração natural, a configuração genética exacta da descendência resultante é determinada pela combinação da natureza e do acaso, e não do desígnio humano: cada criança humana partilha o genótipo comum natural à espécie humana, cada criança é geneticamente (igual) próxima de cada (ambos) pai(s), no entanto, cada criança é geneticamente única.
Estas verdades biológicas sobre as nossas origens prenunciam simultaneamente verdades sobre a nossa identidade e sobre a nossa condição humana. Qualquer um de nós é, ao mesmo tempo, igualmente humano, igualmente intrincado num nexo familiar particular e original, e igualmente individualizado na nossa trajectória do nascimento à morte — e, se tudo correr bem, igualmente capaz (apesar da nossa mortalidade) de participar, com um outro complementar, na própria renovação dessa possibilidade humana através da procriação. Embora menos momentosa que a nossa humanidade comum, a nossa individualidade genética não é humanamente trivial. Mostra-se a si própria de agora em diante na nossa aparência distintiva através da qual estamos por todo o lado organizados; revela-se na “assinatura” das nossas impressões digitais e no nosso sistema de auto-reconhecimento imunitário; simboliza e prenuncia exactamente o carácter único e irrepetível da vida humana.
Praticamente todas as sociedades humanas estruturaram as suas responsabilidades na criação dos filhos e os sistemas de identidade e relacionamento nos profundos factos naturais do início. O misterioso embora ubíquo “amor de si” é culturalmente explorado por todo o lado, para garantir que as crianças não sejam apenas produzidas mas bem cuidadas e para criar em todos laços claros de significado, pertença e obrigação. Mas é errado tratar estas práticas sociais naturalmente enraizadas como meros constructos sociais (por exemplo, como conduzir pela esquerda ou pela direita) que podemos alterar com poucos custos humanos. O que seria da afinidade sem a sua base clara e natural? E o que seria da nossa identidade sem a afinidade? Devemos resistir aos que começaram a referir-se à reprodução como o “método tradicional de reprodução”, o que nos levaria apenas a considerar tradicional, e por consequência, arbitrário, o que é não só uma verdade natural como também uma verdade profunda.
A reprodução assexual que produz uma descendência “monoparental” representa um afastamento radical da forma humana natural, confundindo todas as formas normais de compreender o pai, a mãe, os irmãos, os avós, e todas as relações morais assim mantidas. Torna-se num afastamento ainda mais radical quando a descendência é um clone derivado de um embrião de um adulto em plena maturidade relativamente ao qual o clone seria um gémeo idêntico; e quando o processo ocorre por desígnio e manipulações humanas deliberadas e não por acidente natural (como no caso dos gémeos naturais); e quando a constituição genética da criança (ou do filho) é previamente seleccionada pelos pais. De igual forma, como veremos, a clonagem é vulnerável a três tipos de preocupações e objecções, relacionadas com estes três aspectos: a clonagem, mesmo em pequena escala, ameaça confundir a identidade e a individualidade; a clonagem representa um passo gigante (embora não o primeiro) para transformar a procriação em manufactura, quer dizer, em crescente despersonalização do processo de geração e, cada vez mais, para a “produção” de crianças humanas como artefactos, produtos da vontade e do desígnio humano (a que alguns autores chamaram o problema da “mercantilização” da nova vida); e a clonagem — como outras formas de engenharia eugénica da geração seguinte — representa uma forma de despotismo dos clonadores sobre os clones (mesmo nos casos benevolentes), representando dessa forma uma violação contundente do significado interno das relações entre pais e filhos, do que significa ter um filho, do que significa dizer sim à nossa própria morte e “substituição”.
Antes de me deter naquelas objecções éticas específicas, seja-me permitido testar a minha tese da profundidade da forma natural aceitando um desafio recentemente colocado por um amigo. E se a forma natural da reprodução humana fosse assexual, e soubéssemos que tínhamos de lidar com uma nova inovação tecnológica — dismorfia sexual artificialmente induzida e a fusão de gâmetas complementares — cujos inventores defendessem que a reprodução sexual prometia todo o tipo de vantagens, incluindo o vigor híbrido e uma criação de individualidade bastante maior? Seríamos então obrigados a defender a reprodução assexual porque seria natural? Poderia alguém defender que possuía um profundo significado humano?
A resposta a este desafio introduz a questão do significado ontológico da reprodução sexual. É impossível, assumo, haver vida humana — ou mesmo outras formas de vida animal — na ausência da sexualidade e da reprodução sexual. Encontramos a reprodução assexual apenas nas formas de vida inferiores: bactérias algas, fungos e invertebrados inferiores. A sexualidade traz consigo para o mundo uma forma de relacionamento nova e enriquecida. Apenas os animais sexuados podem procurar e encontrar outros seres complementares com os quais podem dedicar-se a um objectivo que transcende a sua existência. Para um ser sexuado, o mundo já não é uma alteridade indiferente e amplamente homogénea, parcialmente comestível, parcialmente perigosa. Também contém alguns seres especiais, aparentados e complementares, do mesmo tipo, mas do sexo oposto, relativamente aos quais se desenvolve um interesse especial e intenso. Nos pássaros e nos mamíferos superiores, o outro é olhado fixamente não por ser presa ou predador, mas por representar uma oportunidade de acasalamento; a observação revela um mundo magnífico pleno de desejo de união — o antecedente animal do eros humano e do gérmen do social. Não é por acidente que o animal humano é o animal mais sexual — cujas fêmeas embora não passem por um período de acasalamento, estão receptivas durante o ciclo fértil e cujos machos têm, por isso, de ter mais apetite e energia sexual para se reproduzirem bem — além de ser o animal mais ambicioso, mais social, mais aberto e mais inteligente.
O poder de transcender o corpo da sexualidade está, no fundo, enraizado na sua estranha conexão com a mortalidade, que simultaneamente aceita e procura superar. A reprodução assexual pode ser vista como a continuação da actividade de autopreservação. Quando um organismo se desenvolve ou se divide para se tornar dois, o ser original é (duplamente) preservado e nada morre. Porém, a sexualidade significa deterioração e serve a substituição; os dois que se juntam para gerar um rapidamente morrerão. O desejo sexual, nos seres humanos como nos animais, serve um fim parcialmente desvelado, que no final está em conflito com o interesse do indivíduo. Quer saibamos quer não, quando estamos sexualmente activos estamos a contribuir com os nossos órgãos genitais para a nossa morte. O salmão que nada para subir a corrente para desovar e morrer conta a história universal: o sexo está ligado à morte, relativamente à qual dá uma resposta parcial através da procriação.
O salmão e os outros animais provam esta verdade cegamente. Só o ser humano pode compreender o seu significado. Como nos apercebemos de forma tão poderosa através da história do Jardim do Éden, a nossa humanização coincide com a autoconsciência sexual, com o reconhecimento da nossa nudez sexual e com tudo o que ela implica: vergonha da nossa necessária incompletude, impossibilidade de autodivisão e finitude; reverência pelo eterno; esperança na possibilidade de autotranscendência por meio das crianças e de uma relação com o divino. No animal sexualmente autoconsciente, o desejo sexual pode transformar-se em eros: o desejo sexual humanamente encarado como sublimação da procura erótica da totalidade, do completamento, da imortalidade, que nos faz sabiamente acolhê-la e a ela e ao seu fruto generativo — bem como a todas as possibilidades humanas da acção, do discurso e da música.
Por meio dos filhos, um bem comum ao homem e à mulher, macho e fêmea alcançam uma genuína unificação (para lá da mera “união” sexual), que é insuficiente. Os dois tornam-se um através da partilha generosa (não da necessidade) de amor por um terceiro ser equivalente. Carne da sua carne, o filho é a própria mistura dos pais a ser exteriorizada e a adquirir uma existência separada e persistente. A unificação é aumentada pelo trabalho conjunto da educação. Provendo e abrindo-se a um futuro para lá da extinção, transportando não só a nossa semente mas também os nosso nomes, os nossos hábitos, e a esperança de que nos superem em bondade e felicidade, os filhos são o testamento da possibilidade da transcendência. A dualidade de género e o desejo sexual, que projecta em primeiro lugar o nosso amor para cima e para fora de nós próprios, concede finalmente aos pais uma superação parcial simultânea do confinamento e da limitação da corruptibilidade do corpo.
Em suma, a procriação humana não é a mera actividade das nossas vontades racionais. É uma actividade mais completa precisamente porque envolve a corporeidade, o erotismo, a espiritualidade, bem como a racionalidade. A sabedoria no mistério da natureza que juntou o prazer do sexo, o inarticulável desejo de união, a comunicação do abraço amoroso, e o desejo profundo e parcialmente articulado de ter filhos através da mesma actividade que desenvolvemos para continuar a cadeia da existência humana e participar na renovação da possibilidade humana. Quer saibamos quer não, separar a procriação do sexo, do amor, e da intimidade é inerentemente desumanizador, independentemente da qualidade do produto.
Estamos agora preparados para as objecções mais específicas à clonagem.
Primeiro, uma objecção formal importante: qualquer tentativa para clonar um ser humano constitui uma experiência antiética para a criança que irá nascer. Como indicam as experiências com animais (sapos e ovelhas), há um risco grave de acidentes e deformações. Mais do que isso, devido ao significado da clonagem, não podemos presumir que uma criança clonada no futuro venha a consentir em ser um clone, mesmo que fosse saudável. Assim, de um ponto de vista ético, não podemos sequer ficar a saber se a clonagem humana é viável.
É claro que compreendo as dificuldades filosóficas de tentar comparar uma vida com deficiências com uma inexistente. Diversos bioeticistas, orgulhosos da sua clarividência filosófica, servem-se deste enigma para desvalorizar afirmações como as que podemos prejudicar uma criança na sua concepção, precisamente porque seria apenas graças a essa concepção que essa criança estaria viva para se queixar. Mas o senso comum diz-nos que não há razão para recear estes sofismas. Já que sabemos seguramente que as pessoas podem prejudicar ou até mutilar uma criança no próprio acto da sua concepção através, digamos, da transmissão materna do vírus da SIDA, ou da transmissão materna da dependência de heroína, ou, o que é mais discutível, por serem bastardos ou não terem qualquer capacidade para cuidar de si convenientemente. E acreditamos que fazê-lo intencionalmente, ou negligentemente, é injustificável e claramente antiético.
A objecção da impossibilidade de presumir o consentimento pode até alargar-se para lá do aspecto óbvio e suficiente de que o clone, se fosse depois questionado, poderia realmente lamentar a sua condição. Em causa não estão só os benefícios e os danos, mas as dúvidas sobre a própria independência necessária para dar o consentimento adequado (ainda que retroactivo), que é não só a capacidade para escolher, mas a disposição e a capacidade para escolher livremente e bem. Não é de forma alguma claro em que medida um clone seria um agente moral, pois, como veremos, no próprio facto da clonagem, e sobretudo na sua educação como clone, os seus produtores podem subverter a sua independência, começando com o aspecto que resulta de saber que seria uma surpresa imprevista, uma prenda para o mundo, em vez do resultado planeado do projecto engenhoso de alguém.
A clonagem cria problemas sérios de identidade e de individualidade. A pessoa clonada pode ter preocupações com a sua identidade particular, não porque o seu genótipo ou a sua aparência seriam idênticos ao de outro ser humano, mas porque, neste caso, também poderia vir a ser gémea de uma pessoa que poderia ser o seu “pai” ou “mãe” — se é que ainda seria possível chamar-lhes assim. Quais seriam os fardos psicológicos de vir a ser “filho” ou “pai” do seu gémeo? Além disso, o indivíduo clonado carregaria um genótipo que já havia vivido. Não seria uma verdadeira surpresa para o mundo. As pessoas tenderiam a comparar permanente o desempenho da sua vida com a do seu alter ego. É verdadeiro que a sua educação e as suas circunstâncias de vida seriam diferentes; genótipo não é destino. Ainda assim, podemos igualmente esperar a existência de esforços parentais ou outros para moldar a nova vida de acordo com o original — ou pelo menos para a estar sempre a comparar com a versão original. Se assim não fosse, por que razão clonariam a estrela do basquetebol, ou o matemático ou a rainha da beleza — ou mesmo o querido e velho pai?
Desde o nascimento da Dolly que tem havido uma quantidade razoável de ambivalência relativamente à questão da identidade genética. Os especialistas têm-se apressado a garantir ao público que o clone nunca seria a mesma pessoa nem sentiria confusão quanto à sua identidade; como observei, gostam de salientar que o clone de Mel Gibson não seria Mel Gibson. É razoável. Todavia, está-se a esconder a verdade ao enfatizar a importância adicional do ambiente intra-uterino, da educação e do contexto social: é óbvio que o genótipo é bastante importante. Isso, afinal, é a única razão para clonar seres humanos ou ovelhas. A probabilidade do clone de Wilt Chamberlain vir a jogar na NBA é, presumo, infinitamente maior do que as de clones de Robert Reich.
Curiosamente, esta conclusão apoia-se inadvertidamente numa ideia ética reafirmada pelos apoiantes da clonagem: não haverá clonagem sem o consentimento do dador. Embora se trate de um argumento liberal clássico, é seguramente bastante enigmático sobretudo por vir de pessoas (como Ruth Macklin) que insistem que o genótipo não é nem identidade nem individualidade, e que negam que seja razoável que a criança possa vir a queixar-se do facto de ser uma cópia genética. Se o clone de Mel Gibson não seria Mel Gibson, com base em quê poderia Mel Gibson objectar contra a sua clonagem? Já se permite que os especialistas usem amostras de sangue e tecido para efeitos de investigação que não beneficiam as suas fontes: a minha queda de cabelo, a minha expectoração, a minha urina, e até os meus tecidos resultantes de biopsias não sou “eu” nem são meus. Os tribunais têm defendido que os benefícios ganhos por meio do uso que os cientistas fazem dos meus tecidos descartados já não me pertencem legalmente. Então, por que não clonar sem consentimento — incluindo, presumo, clonar usando o corpo de alguém que já morreu? Que mal será feito ao dador, se o genótipo já não sou “eu”? Para dizer a verdade, a única justificação convincente é que o genótipo tem realmente algo a ver com a identidade, e todos o sabemos. Se assim não fosse, como poderia Michael Jordan recusar que “o” clonassem, digamos, a partir de células retiradas de um pedaço “perdido” da sua pele? A insistência no consentimento do dador revela inadvertidamente o problema da identidade em toda a clonagem.
A peculiaridade genética simboliza não apenas a unicidade de cada vida humana e a independência dos pais que cada criança humana correctamente alcança. Também pode ser um apoio importante para se ter uma vida valiosa e digna. Estes argumentos aplicam-se de forma consistente à replicação de indivíduos humanos em larga escola. Mas, na minha opinião, são suficientes até para refutar a primeira tentativa de clonar um ser humano. De forma alguma se deve esquecer que são seres humanos relativamente aos quais as nossas fantasias ou meras brincadeiras genéticas estão a ser realizadas.
Uma identidade (individualidade) psíquica perturbada, baseada na mais que evidente identidade genética (mesmidade), ficará bastante pior em função da clara confusão da sua identidade social e dos seus laços familiares. Porque, como salientei, a clonagem confunde radicalmente a linhagem e as relações sociais, tanto nos “filhos” como nos “pais”. Como salienta o bioeticista James Nelson, uma criança do sexo feminino clonada da sua “mãe” pode desenvolver um desejo de se relacionar com o seu “pai” e pode compreensivelmente procurar o pai da sua “mãe”, a qual é afinal a sua gémea biológica. Será que o “avô”, que havia pensado que os seus deveres parentais estavam terminados, ficaria contente ao descobrir que o seu clone o procurava para reclamar atenção e apoio?
A identidade social e os laços sociais de relacionamento e responsabilidade estão amplamente ligados e apoiados nas relações biológicas. Por todo o lado, os tabus sociais sobre o incesto (e o adultério) servem para manter claras as relações de parentesco (particularmente as relações entre pais e filhos), bem como para evitar confundir a identidade social de pai-e-filho (ou de irmão-e-irmã) com a identidade de amantes, esposos, ou da coparentalidade. É verdadeiro que a identidade social é alterada pela adopção (mas apenas porque isso serve os melhores interesses de uma criança já nascida: não deliberamos para produzir uma criança para adopção). É verdadeiro que a inseminação artificial e a fertilização in vitro com um dador de esperma, ou com a doação da totalidade do embrião, são já de algum modo formas de “adopção pré-natal” — o que não deixa de ser uma prática problemática. Todavia, mesmo aqui há em cada caso (tal como na reprodução sexual) um macho conhecido que doa o esperma e uma fêmea conhecida que doa o óvulo — um pai genético e uma mãe genética — se houver alguém interessado em sabê-lo (como acontece frequentemente com as crianças adoptadas) que seja geneticamente aparentado.
Contudo, no caso da clonagem só há um “progenitor”. A situação habitual e triste das crianças com “um só pai” é aqui deliberadamente planeada e de forma vingativa. No caso da autoclonagem, a “descendência” é, antes do mais, um gémeo de si próprio; pelo que o resultado pavoroso do incesto — ser pai de um dos irmãos — é aqui deliberado, embora sem o acto do coito. Mais ainda, todas as outras relações serão confundidas. O que significará pai, avô, tia, primo e irmã? Quem transportará esses laços e obrigações? Que identidade social manterá com um dos lados — do “pai” ou da “mãe” — necessariamente excluídos? Não é resposta dizer que a nossa sociedade, com os seus elevados índices de divórcios, segundos casamentos, adopções, filhos fora do casamento, e tudo o mais, já confunde a linhagem, as relações de parentesco e as responsabilidades para com os filhos (e outros), a não ser que queiramos defender que isto é, do ponto de vista dos filhos, um estado de coisas preferível.
A clonagem humana também representará um passo gigantesco para transformar a humanidade num produto de engenharia, procriação e manufactura (literalmente em “artesanato”), um processo que já se iniciou com a fertilização in vitro e os testes genéticos com embriões. Com a clonagem, não é só o processo, mas a totalidade da impressão genética de um indivíduo clonado, que será seleccionado e determinado por artesãos humanos. Para que seja seguro, o desenvolvimento subsequente acontecerá de acordo com os processos naturais; e a descendência resultante ainda será reconhecidamente humana. Mas estaríamos a dar um passo gigantesco para transformar pura e simplesmente a própria humanidade em mais uma das suas produções. A natureza humana torna-se simplesmente na última parte da natureza a sucumbir ao projecto tecnológico, que transforma toda a natureza em matéria-prima à disposição do homem, para ser homogeneizada pela nossa racionalidade técnica em conformidade com os preconceitos da moda.
Em que difere a produção da humanidade? Na procriação natural, os seres humanos juntam-se, um macho e uma fêmea complementares, para dar existência a um outro ser que se formou, exactamente da mesma forma que nós, pelo que nós somos: vivendo, ora de forma perecível, ora de forma erótica, como seres humanos. Na reprodução através da clonagem, pelo contrário, e nas formas mais avançadas de manufactura a que inevitavelmente conduzirá, damos existência não pelo que somos, mas pelo que pretendemos e planeamos. Tal como acontece com qualquer produto da humanidade, por mais excelente que seja, o artífice está acima dele, não como igual mas como superior, transcendendo-o através da sua vontade e do seu processo criativo. Os cientistas que clonam animais deixam claro que estão empenhados numa tarefa instrumental; os animais são, desde o início, produzidos como meios ao serviço dos objectivos da racionalidade humana. Na clonagem humana, os cientistas e os futuros pais estariam a aplicar a mesma mentalidade tecnocrática às crianças humanas: seriam os seus artefactos.
Um tal arranjo é profundamente desumanizador, independentemente da qualidade do produto. A clonagem em massa do mesmo indivíduo torna este aspecto bastante claro, mas a violação da igualdade, da liberdade e da dignidade humana está presente num único dos clones. A procriação desumanizada até à forma de manufactura é depois rebaixada à forma de mercantilização, o resultado inevitável de permitir a produção de crianças segundo padrões comerciais. As companhias de biotecnologia genética e reprodutiva já são empresas em expansão, mas entrarão em órbita comercial assim que o Projecto Genoma Humano estiver concluído. O aumento da oferta provocará o aumento exponencial da procura. Mesmo antes de sermos capazes de clonar seres humanos, as empresas estabelecidas já terão investido na cultura de óvulos obtidos através de autópsias ou de cirurgias uterinas, práticas de manipulação genética de embriões, e terão iniciado o armazenamento de tecidos de futuros dadores. Por meio do pagamento a mães de aluguer e da compra e venda de tecidos e embriões, tabelados de acordo com o mérito do dador, a mercantilização das vidas humanas nascidas será imparável.
Finalmente, e talvez mais importante, a prática da clonagem humana através da transferência do núcleo — tal como outras formas antecipadas de manipulação genética da geração seguinte — encerrará e agravará uma incompreensão profunda e danosa do significado de ter um filho e das relações entre pais e filhos. Quando um casal decide procriar, está a dizer sim à emergência de uma nova vida, em toda a sua originalidade, está a dizer sim a não só a ter uma criança, mas a aceitar tacitamente o que ela venha a ser. Ao aceitar a nossa finitude e ao abrir-nos à nossa substituição, estamos a confessar tacitamente os limites do nosso controlo. Nesta forma omnipresente da natureza, acolher o futuro através da procriação significa precisamente que, ao renunciar ao nosso poder, estamos a afirmar a nossa quota de esperança naquilo que pode vir a ser a imortalidade da vida e da espécie humana. Isto quer dizer que os nossos filhos não são nossos filhos: não são propriedade nossa, não os possuímos. Nem se espera que vivam as nossas vidas por nós, ou a de qualquer outra pessoa, a não ser a deles. Para que não haja dúvidas, procuramos orientá-los para que vivam à sua maneira, garantindo-lhes não só a vida, mas a educação, o amor, e um modo de vida; para que não haja dúvidas, transportam a nossa esperança de que vivam uma vida boa e próspera, permitindo-nos de alguma forma transcender as nossas limitações. Ainda assim, a sua originalidade e independência genética são a consagração natural da verdade profunda de que têm uma vida própria e única. Emergem de um passado, mas estão lançados num futuro desconhecido.
Muito mal já foi feito pelos pais que tentam viver uma vida de faz-de-conta por meio dos seus filhos. Os filhos são frequentemente empurrados para concretizar os sonhos desfeitos de pais infelizes; o João Ninguém Júnior ou o João Ninguém Júnior III vivem o fardo de transportar o nome do seu ascendente. Assim, se a maioria dos pais deposita esperança nos seus filhos, os pais de clones terão expectativas. Na clonagem, pais superprotectores dão no início um passo decisivo que contradiz o significado global da natureza aberta e projectada para o futuro das relações entre pais e filhos. É dado à criança um genótipo que já viveu, com a expectativa plena que a impressão digital da vida passada venha a controlar a vida por vir. A clonagem é inerentemente despótica, pois procura construir o filho de um dado indivíduo (ou o filho de outro indivíduo qualquer) à sua própria imagem (ou à imagem de quem se queira) e condicionar o seu futuro à sua vontade. Em alguns casos, o despotismo pode ser maleável e benevolente. Noutros, será prejudicial e absolutamente tirânico. Mas o despotismo — o controlo de um indivíduo segundo a vontade de outro — acontecerá inevitavelmente.
É claro que os defensores da clonagem não são conscientemente favoráveis ao despotismo. De facto, vêem-se como defensores da liberdade: a liberdade dos indivíduos para se reproduzirem, a liberdade dos cientistas e dos inventores para descobrirem, planearem e promoverem o “progresso” em genética. Querem a clonagem em larga escala, mas apenas de animais, embora queiram manter a clonagem humana como opção em aberto, em nome de nosso “direito à reprodução” — o nosso direito a ter filhos, mas com “genes desejáveis”. Como salienta o professor de direito John Robertson, ao abrigo do nosso “direito à reprodução” já praticámos formas de reprodução contranatura, artificiais e extramaritais, bem como formas de selecção eugénica. Por essa razão, defende, a clonagem nada tem de especial.
Temos aqui um exemplo perfeito de declive ardiloso, que já está a produzir efeitos nesta área. Há apenas alguns anos, estes argumentos falaciosos eram apresentados para refutar a inseminação artificial e a fertilização in vitro com recurso a esperma doado por indivíduos não aparentados. Os princípios usados para justificar essas práticas, como se dizia, seriam usados para justificar práticas mais artificiais e mais eugénicas, incluindo a clonagem. Quem o defendia dizia que não, já que poderíamos estabelecer as necessárias distinções. E agora, sem ter feito o que quer que seja para as estabelecer, a continuidade da prática é encarada como justificação de si mesma.
O princípio da liberdade reprodutiva, como é usualmente apresentado pelos defensores da clonagem, implica a aceitabilidade ética da totalidade do declive ardiloso — produzir crianças por ectogénese, do esperma até ao fim (logo que venha a ser possível) e produzir crianças cuja configuração genética total seja o produto da escolha e do planeamento eugénico parental. A liberdade reprodutiva significa o direito a ter o filho que se deseja, por todos os meios, conhecendo e aceitando que não há limites.
Mas longe de estar legitimada pelo “direito à reprodução”, a emergência de técnicas de reprodução assistida e de engenharia genética deve levar-nos a reconsiderar o significado e os limites desse alegado direito. Na verdade, o “direito à reprodução” sempre foi uma noção peculiar e problemática. Regra geral, os direitos pertencem aos indivíduos, mas este é um direito que (antes da clonagem) ninguém pode exercer sozinho. Será então um direito inerente apenas ao casal? Aos casais casados? Será um direito (da mulher) a engravidar ou a dar à luz ou um direito (do casal) a criar e a educar? Será um direito a ter um filho biológico? Será um direito apenas a tentar a reprodução, ou será também um direito a ser bem-sucedido? Será o direito a adquirir um bebé em conformidade com a nossa escolha individual?
A afirmação de um “direito à reprodução” negativo fará seguramente sentido para reclamar protecção contra a interferência do estado na liberdade de procriar, por meio, digamos, de um programa de esterilização compulsivo. Mas é claro que não pode servir de base para mover uma acção cível contra a natureza, para que seja melhorada pela tecnologia, uma vez fracassados todos os esforços voluntários para procriar naturalmente. Alguns insistem que o direito à reprodução implica também o direito contra a interferência do estado no uso livre de todos os meios tecnológicos disponíveis para conseguir um filho. Contudo, esta posição é insustentável: por razões que têm que ver com os meios empregues, qualquer comunidade tem o direito de proibir as mães substitutas, a poligamia, ou a venda de bebés a casais inférteis sem violar a alguém o “direito à reprodução”. Quando o exercício anterior de uma liberdade inócua envolve ou provoca agora práticas problemáticas que a liberdade original não visava intencionalmente, a presunção geral dessa liberdade deve ser reconsiderada.
É um facto que já realizamos práticas negativas de selecção eugénica através de ecografias e de diagnóstico pré-natal. Contudo, essas práticas são reguladas por normas de saúde. Procuramos prevenir o nascimento de crianças com doenças genéticas conhecidas (sérias). Quando e se a terapia genética for possível, essas doenças poderão ser tratadas, no útero ou antes da implantação. Em princípio, não tenho objecções éticas relativamente a essas práticas (embora tenha algumas preocupações práticas), precisamente porque serve o objectivo médico de tratar indivíduos existentes. Mas a terapia, para ser terapia, implica não apenas um “paciente” existente; também implica uma norma de saúde. A este respeito, mesmo a “terapia” da sequência de células primitivas dos genes, embora praticada nos óvulos e no esperma e não num ser humano, é menos radical do que a clonagem, a qual não é de forma alguma terapêutica. Mas assim que alguém começa a obscurecer a distinção entre promoção da saúde e aperfeiçoamento genético, entre a chamada eugenia negativa e a eugenia positiva, abre-se a porta a todas as configurações eugénicas futuras. “Para garantir que o seu filho seja saudável e venha a ter boas hipótese de vida”: é este o princípio de Robertson, e, tendo em conta a última cláusula, é absolutamente elástico, pois não tem fronteiras. É provável que ter mais de dois metros de altura venha a produzir algumas boas consequências na vida de alguém, e o mesmo acontecerá com alguém que se pareça com a Marilyn Monroe ou com algum génio.
Os defensores da clonagem querem que acreditemos que há usos legítimos da clonagem que podemos distinguir dos usos ilegítimos, mas não é possível identificá-los se usarmos os seus próprios princípios. (Na prática, nenhum desses limites pode ser imposto.) A liberdade reprodutiva, tal como a entendem, é regulada apenas pelos desejos subjectivos dos futuros pais (em conjunto com a proibição de dano ao filho). O apelo emocional da situação dos casais inférteis é, desse ponto de vista, indistinguível da situação de um indivíduo (casado ou não) que gostaria de clonar alguém famoso ou talentoso, morto ou vivo. Mais, o princípio que aqui se aceita justifica não só a clonagem, mas, seguramente, todas as tentativas artificiais para criar (manufacturar) bebés “perfeitos”.
Um exemplo concreto mostrará como, não só na prática, mas também em teoria, o caso supostamente inocente acabará por confundir-se ou até tornar-se no mais complexo. Na prática, a impaciência dos futuros pais estará necessariamente sujeita à tirania dos especialistas. Considere o leitor um casal infértil, em que ou ela não tem óvulos ou ele não tem esperma viável, mas que quer um filho (geneticamente) seu e propõe a clonagem do marido ou da mulher. O médico cientista (que também é co-proprietário de uma empresa de clonagem) enumera as dificuldades: uma criança clonada não é verdadeiramente filha (genética) do casal, mas apenas de um deles; esse desequilíbrio pode produzir atritos no casal; a criança pode vir a sofrer de problemas de confusão de identidade; há o risco de perpetuar a causa da infertilidade. O médico cientista também chama a atenção para as vantagens de seleccionar um dador. Ao publicitar a sua capacidade para seleccionar dadores saudáveis e talentosos, o médico apresenta ao casal o seu último catálogo contendo fotografias, registos médicos, e os feitos do conjunto dos seus dadores, cujas amostras de tecidos estão no congelador. Por que não então, meus caros, um bebé mais perfeito?
É claro que o “bebé perfeito” não é um projecto dos especialistas em infertilidade, mas dos cientistas eugénicos e dos seus patrocinadores. Para eles, o direito supremo não é o chamado direito à reprodução mas o que o biólogo Bentley Gass designou, há um quarto de século, como “o direito de toda a criança a nascer com uma constituição física e mental sã, baseada num genótipo íntegro”. Mas para assegurar esse direito e alcançar o requisito de controlo de qualidade em detrimento da nova vida humana, a concepção e a gestação humanas têm que ser totalmente apresentadas à luz do laboratório, sob a qual a futura criança poderá ser fertilizada, alimentada, aparada, limpa, observada, inspeccionada, estimulada, apertada, elogiada, injectada, testada, catalogada, graduada, aprovada, selada, embrulhada, fechada e entregue. Não há outra forma de produzir o bebé perfeito.
No entanto, somos forçados, pelos defensores da clonagem, a esquecer os cenários de ficção científica de laboratórios cheios de clones manufacturados e copiados consecutivamente e a concentrarmo-nos apenas nos casos de simpáticos casais inférteis a exercer os seus direitos reprodutivos. Mas se os casos individuais não são tão inocentes, por que será a multiplicação dos seus desempenhos tão repulsiva? (De igual modo, por que será que as pessoas se opõem aos que lucram com essa prática se ela é, em si mesma, perfeitamente aceitável?) Quando seguimos o sólido princípio ético de universalização da nossa escolha — seria correcto se toda a gente clonasse o Wilt Chamberlain (com o seu consentimento, claro)? Seria correcto se toda a gente decidisse praticar a reprodução assexual? — descobrimos o que há de errado com estes casos aparentemente inocentes. Os chamados casos de ficção científica tornam bem vívido o significado do que tomamos erradamente por benigno.
Embora reconheça algumas continuidades entre a clonagem e, digamos, a fertilização in vitro, creio que a clonagem é diferente em aspectos essenciais e importantes. Contudo, deve-se recordar a quem discorda que o argumento da “continuidade” dá para os dois lados. Às vezes estabelecemos maus precedentes e descobrimos que são maus apenas quando levamos a sua inexorável lógica até onde nunca tencionávamos ir. Podem hoje os defensores da clonagem mostrar-nos como, baseados nos seus princípios, poderemos identificar bebés (“bebés perfeitos”) totalmente produzidos em laboratório ou exercer total controlo sobre os seus genótipos (incluindo o chamado aperfeiçoamento) que seja eticamente diferente, nalguma forma essencial, das formas actuais de reprodução assistida? Ou estarão dispostos a admitir, apesar da sua ligação ao argumento da continuidade, que a completa obliteração da “mãe” ou do “pai”, a completa despersonalização da procriação, a completa manufactura de seres humanos, e o controlo total de uma geração sobre a seguinte, seria eticamente problemática e essencialmente diferente das formas actuais de reprodução assistida? Se o for, onde e como traçarão a linha de demarcação e porquê? Eu, em virtude de todas as razões dadas, traço-a na clonagem.
Então, o que devemos fazer? Devemos afirmar que a clonagem é em si antiética e perigosa nas suas consequências possíveis. Ao fazê-lo, teremos o apoio da maioria esmagadora dos americanos, da espécie humana e (acredito) da maioria dos cientistas em actividade. Depois, devemos fazer tudo para impedir a clonagem de seres humanos. Se possível, devemos fazê-lo através de uma proibição legal internacional e no mínimo através de uma proibição nacional unilateral. Os cientistas podem tentar violar secretamente essa proibição, mas serão punidos por não serem capazes de reclamar publicamente os créditos pelos seus desafios e sucessos tecnológicos. Além do mais, a proibição da clonagem de bebés não prejudicará o progresso da ciência genética e da tecnologia Ao contrário, garantirá ao público que os cientistas estão contentes por poderem prosseguir com as suas investigações sem violar normas e intuições éticas centrais da comunidade humana.
Mas ainda assim permanece uma questão polémica sobre a investigação laboratorial que usa clones de embriões humanos jovens, sem qualquer intenção de os implantar num útero. Não há dúvida que tal investigação é bastante promissora quanto a ganho de conhecimento fundamental sobre a normal (ou anormal) diferenciação e para o desenvolvimento de sequências de tecidos que poderão vir ser usados em transplantes, digamos, no tratamento da leucemia ou na reparação de lesões no cérebro ou na espinal-medula — só para mencionar alguns dos benefícios possíveis. Ainda assim, a pesquisa irrestrita de clones de embriões tornará a produção de clones humanos vivos bastante mais provável. Depois de os génios criarem embriões clonados, quem poderá garantir para onde irão, especialmente na ausência de uma proibição legal da sua implantação para produzir uma criança?
Reconheço os extraordinários ganhos potenciais do conhecimento científico e do tratamento médico disponível a partir da investigação de embriões. Ao mesmo tempo, tenho sérias reservas relativamente à criação de embriões humanos para o fim estrito da experimentação. Há algo de profundamente repugnante e fundamentalmente transgressivo nesse tratamento utilitário da vida humana futura. Essa exploração total e vergonhosa é pior, na minha opinião, do que a “mera” destruição de uma vida humana nascente. Mas, em princípio, não vejo mais objecções à criação e ao uso de clones de embriões jovens para fins de investigação, além das que posso levantar a uma utilização similar de embriões produzidos sexualmente.
E, contudo, por convicção e prudência, penso que qualquer opositor da manufactura de seres humanos clonados deve, no final, opor-se também à criação de embriões humanos clonados. Clones embrionários congelados (pertencentes a quem?) podem circular sem serem detectados. Serão desenvolvidas empresas comerciais ligadas à clonagem humana sem supervisão. Para construirmos um muro em volta da lei, manda a prudência que nos oponhamos — por essa razão apenas — a toda a produção de embriões humanos clonados, mesmo que para fins de investigação. Devemos autorizar a continuação da clonagem de investigação em animais, mas suspeito que a única barreira aceitável que podemos construir para evitar o declive ardiloso seja continuar a insistir na inviolável distinção entre clonagem animal e humana.
É possível que alguns leitores, e certamente a maioria dos cientistas, não aceitem estas restrições prudentes, uma vez que desejam os benefícios da investigação. Embora receosos e trémulos, prefeririam autorizar o prosseguimento da investigação no que respeita à clonagem de embriões humanos.
Muito bem. Vamos testá-los. Se os cientistas querem ser levados a sério em termos éticos, devem, pelo menos, concordar que a investigação de embriões pode prosseguir se, e só se, for precedida por uma absoluta e efectiva proibição de todas as tentativas de implantação de um embrião humano clonado (clonado de um adulto) num útero para produzir uma criança viva. Nenhuma autorização deve ser dada à primeira sem que se verifique a última.
As recomendações da Comissão Nacional de Aconselhamento Bioético relativamente a estas matérias constituem um passo na direcção certa. Para o concretizar, a comissão decidiu sugerir a criação de legislação federal para impedir qualquer tentativa de produzir uma criança através da clonagem. Isto foi, confesso, mais do que estava à espera. Mas a base moral para a oposição da comissão à clonagem é, infelizmente, inferior ao que seria de esperar e ao que é necessário. Diz a comissão que a tentativa de clonar um ser é “moralmente inaceitável” “nesta altura” porque a técnica ainda não foi aperfeiçoada a ponto de garantir um uso seguro. Por outras palavras, a comissão não oferece qualquer razão consensual para impedir a clonagem de um ser humano assim que esta venha a ser possível de realizar com baixo risco de dano físico para a criança resultante. Com efeito, a comissão insiste que, antecipando o aperfeiçoamento da tecnologia, “é crucial” que toda a proibição legal da produção de bebés através da clonagem “deva incluir uma cláusula final que assegure que o Congresso possa reexaminar a questão depois de um período de tempo especificado (três a cinco anos) para avaliar se a proibição continua a ser necessária”. Embora identifique outras questões éticas (além da questão da segurança), esta qualificada comissão não toma posição relativamente a qualquer delas! Apenas diz que essas questões “exigem uma discussão pública mais ampla e cuidada antes que tal tecnologia possa ser usada” — mas não para decidir se tal tecnologia deve ser usada. A comissão quer assegurar apenas, de forma relativista, que tais questões éticas e sociais sejam regularmente revistas “à luz dos entendimentos públicos da altura”. Dificilmente poderá este tipo de oposição à clonagem servir de base a uma proibição durável.
Quase tão preocupante é o facto do relatório nada dizer sobre a questão polémica da clonagem de embriões humanos para fins de investigação. É claro que o silêncio não significa aprovação, mas também não significa proibição: dada a actual proibição do uso de fundos federais em qualquer tipo de investigação que envolva a criação de embriões humanos para experimentação, a comissão pode ter preferido evitar uma controvérsia desnecessária ao tratar essa questão. Além disso, os elementos da comissão (sem dúvida a grande maioria) que são favoráveis à continuação das investigações de embriões clonados atingiram de facto os seus objectivos por meio do silêncio: tanto a moratória sobre os fundos federais como a proibição legal decidida pela comissão se limitam exclusivamente às tentativas de criar uma criança por meio de clonagem. A comissão sabe que a investigação de embriões está a progredir de forma vigorosa e rápida no sector privado, e a compreende seguramente que o seu silêncio sobre o assunto — tal como o do Congresso — significa que a criação de clones de embriões humanos prosseguirá e talvez já esteja a prosseguir na privacidade dos laboratórios comerciais. Com efeito, o relatório espera e congratula-se tacitamente com a pesquisa de embriões humanos: por que outros meios poderemos vir a aperfeiçoar as técnicas de clonagem humana, que exigiriam a reavaliação periódica de qualquer proibição legal?
No final, o relatório da comissão acaba por ser (apesar dos seus melhores esforços) um fracasso moral e prático. Moralmente, esta comissão ética vacilou na questão ética central ao recusar declarar antiética (ou ética) a produção de clones humanos. Do ponto de vista prático, a moratória e a proibição de bebés que foram decididas, embora acolham restrições temporárias, não justificam a necessidade de fornecer uma protecção sólida e duradoura contra a produção de seres humanos clonados. Pelo contrário, pode-se dizer que a débil posição ética da comissão acabou por enfraquecer a sua decisão limitada de restringir. Precisaremos de facto de uma lei federal apenas para proteger bebés não nascidos de qualquer dano físico?
É então necessário que os opositores da clonagem estejam vigilantes. Devem continuar a pressionar para que seja criada legislação que proíba de forma permanente a produção de bebés através da clonagem, e devem ser dados os passos necessários para tornar essa proibição efectiva.
A proposta de tal proibição não tem precedentes na América, pelo menos em termos tecnológicos, embora o Reino Unido e outros tenham proibido a clonagem de seres humanos, e de nós próprios proibirmos o incesto, a poligamia e outras formas de liberdade de reprodução. Não será necessário dizer que, sem entrar em detalhes quanto a esta proibição, sobretudo se vier a ter uma natureza global, será complicada por causa da necessidade de desenvolver sanções apropriadas para os violadores. Talvez esta proibição se venha a revelar ineficaz; talvez se venha apenas a revelar um erro. Mas pelo menos colocará o ónus da prova onde é devido: do lado dos defensores deste horror, pedindo-lhes que mostrem de forma clara qual o grande bem social e médico que só pode ser alcançado através da clonagem de seres humanos.
Nós, americanos, temos vivido, e prosperado, sob o optimismo cor-de-rosa do progresso científico e tecnológico. É bem provável que o imperativo tecnológico — se é possível fazer, deve-se fazer — nos tenha servido bem, embora tenhamos que admitir que não há forma objectiva de calcular os benefícios e os custos. Mesmo quando, como no caso da poluição ambiental, da decadência urbana, ou das mortes constantes que são efeitos secundários não intencionados dos sucessos médicos, reconhecemos os resultados indesejados do avanço tecnológico, continuamos confiantes na nossa capacidade para resolver todas as “más” consequências — habitualmente por intermédio de novas e melhores tecnologias. Quão afortunados continuaremos a ser neste post hoc reparador é, no mínimo, uma questão em aberto. Mas há boas razões para mudar completamente de paradigma, pelo menos no que diz respeito a essas intervenções tecnológicas no corpo e na mente humana que provocarão efeitos fundamentais (e provavelmente irreversíveis) na natureza humana, nas relações humanas básicas e no que significa ser humano. Não devemos estar dispostos a arriscar tudo na esperança ingénua que, se as coisas correrem mal, podemos depois consertá-las.
A decisão do presidente de criar uma moratória para a clonagem humana constitui uma oportunidade decisiva. De uma forma verdadeiramente sem precedentes, podemos desferir um golpe a favor do controlo humano do projecto tecnológico, da sabedoria, da prudência e da dignidade humana. A perspectiva da clonagem humana, tão repulsiva de contemplar, é a ocasião para decidir se seremos escravos do progresso desregulado e dos seus derradeiros artefactos, ou se permaneceremos seres humanos com a liberdade para direccionar a nossa técnica para o aperfeiçoamento da dignidade humana. Se estivermos à altura deste momento histórico, devemos, como escreveu o falecido Paul Ramsey,
“colocar as questões éticas com uma consciência séria e não frívola. Um homem com uma consciência frívola declara que há dilemas éticos à nossa frente que devemos considerar urgentemente antes que o futuro nos escape. Isto significa frequentemente que precisamos formular novas questões éticas que providenciarão a racionalidade para os homens fazerem no futuro o que devem porque novas acções e intervenções da ciência virão a ser possíveis. Em contraste, um homem de consciência séria coloca problemas éticos urgentes que mostram que há coisas que o homem nunca deve fazer. As coisas boas que os homens podem fazer só podem em absoluto ser feitas por meio daquilo que se recusam fazer”.