4 de Abril de 2025   Filosofia da ciência

A revolução copernicana na astronomia

Brad K. Wray
Tradução de L. H. Marques Segundo

Muitas das questões e considerações presentes no debate contemporâneo entre realismo e antirrealismo na filosofia da ciência podem ser apropriadamente ilustradas através de exemplos da história da astronomia. Ofereço aqui uma apresentação resumida da revolução copernicana. O meu foco será nas considerações relevantes para o debate entre realismo e antirrealismo.

Dada a extensão temporal da revolução copernicana, qualquer apresentação sua em um capítulo terá de ser necessariamente seletiva.1 Começarei por oferecer um pano de fundo acerca das práticas e das abordagens à astronomia, iniciando pelos babilônios e pelos gregos.

Pensamento Crítico

A astronomia babilônica: os limites do instrumentalismo

Na antiga Babilônia, os astrônomos eram completamente instrumentalistas. Eles não estavam interessados na cosmologia, e nem mesmo tentaram construir modelos geométricos em suas tentativas de prever fenômenos. Como observa James Evans, “a teoria planetária babilônica carecia de sustentação filosófica elaborada — parece ter sido destituída de qualquer conjunto de princípios da física comparáveis àqueles fornecidos por Aristóteles aos astrônomos gregos” (Evans 1998, 22–23).

Em vez disso, a partir dos dados coletados pela observação, os astrônomos babilônios construíam tábuas cuja serventia era computar previsões de eventos celestes notáveis, como “a primeira aparição da lua nova” (veja-se Evans 1998, 22; Lindberg 2007, 16). Essa é uma forma extrema de instrumentalismo. Não há necessidade de teoria, nenhuma concepção das causas subjacentes aos fenômenos. Essas tábuas construídas com base em observações forneciam um meio para se calcular quando ocorreriam certos eventos celestes notórios ou interessantes, como eclipses, conjunções e as luas novas (veja-se Hoskin 1997a, 23–29; também Lindberg 2007, 16–17). A suposição era de que esses eventos celestiais ocorriam com algum tipo de regularidade e que as tábuas eram construídas a fim de revelar um padrão nessas ocorrências, permitindo ao astrônomo prever ocorrências futuras. Evans nota que “parte da motivação para se fazer observações era religiosa. E parte era prática: acreditava-se que as estrelas e especialmente os planetas forneciam sinais do bem-estar futuro do rei e da nação” (Evans 1998, 14). Esses objetivos, todavia, pelo menos como entendidos pelos astrônomos babilônios, poderiam ser efetivamente alcançados sem que se aventurasse pela cosmologia.

A astronomia na Grécia Antiga: duas tradições

Os gregos antigos tratavam a astronomia de maneira diferente, e com ferramentas matemáticas diferentes, da dos babilônios. Os gregos usavam a geometria e tentavam construir modelos geométricos. Esses modelos visavam refletir pelo menos algumas das características da estrutura do cosmo. Por exemplo, os modelos eram mais ou menos centrados na Terra, sob a suposição de que a Terra fosse o centro do cosmos (veja-se Evans 1998, 76).

Havia duas tradições de pesquisa algo distintas na astronomia dos gregos antigos, uma delas voltada sobretudo para a cosmologia e a outra voltada principalmente para a previsão. A primeira dessas tradições, voltada para a cosmologia, procurava modelar as órbitas dos planetas através do uso de orbes encaixadas, ou esferas homocêntricas (veja-se Hoskin 1997a, 34). Eudoxo de Cnido, um contemporâneo de Platão, desenvolveu tais modelos na tentativa de dar conta do movimento retrógrado, o movimento aparente para trás que os planetas periodicamente descreviam em seus círculos. De acordo com Michael Hoskin,

O astrônomo tinha de imaginar o planeta localizado no equador de uma esfera que gira uniformemente. Projeções eram traçadas a partir de seus pólos, que, por sua vez, encaixavam-se numa segunda esfera exterior à primeira e concêntrica a ela. A esfera exterior também estava em movimento circular, mas sobre um eixo um pouco diferente; e na medida em que se movia, arrastava com ela a esfera interna. Como consequência, o movimento do planeta refletia o giro de ambas as esferas. Eudoxo percebeu que se os dois movimentos circulares fossem iguais em velocidade mas em direções opostas, e que se os dois eixos não fossem muito diferentes, então o planeta descreveria um movimento de vaivém em forma de oito. (Hoskin 1997a, 34–35)

Eudoxo introduziu duas esferas adicionais para os modelos de cada um dos planetas: Mercúrio, Vênus, Júpiter e Saturno. O movimento combinado das quatro esferas para cada planeta poderia, pelo menos em princípio, dar conta do movimento do planeta, tanto seu movimento retrógrado periódico e seu movimento diário na direção oposta a das estrelas fixas (veja-se Hoskin 1997a, 35). Esses modelos planetários que empregavam esferas homocêntricas eram tridimensionais e foram pensados para oferecer uma representação física do cosmo. Tais modelos, contudo, jamais foram desenvolvidos em detalhes o suficiente ou com precisão adequada a ponto de propiciar aos astrônomos previsões acuradas.

A segunda tradição no mundo da Grécia antiga voltava-se principalmente para o desenvolvimento de modelos que pudessem gerar previsões acuradas. Os astrônomos mostraram grande engenhosidade com os modelos matemáticos desenvolvidos para esse propósito. Hiparco, por exemplo, introduziu o círculo excêntrico em seu modelo da órbita do Sol (veja-se Evans 1998, 211). Com um círculo excêntrico, a Terra estava disposta não ao centro da órbita do Sol, mas um tanto deslocado do centro (veja-se a Figura 1a). O modelo de círculos excêntricos de Hiparco dava conta das variadas durações das estações do ano.

Figura 1a
Figura 1a Modelo do círculo excêntrico
A Terra está descentrada relativamente ao ponto que é o centro do movimento do planeta.
Figura 1b
Figura 1b Modelo do epiciclo e do círculo deferente
O planeta viaja à volta do epiciclo à medida que este é transportado à volta do círculo deferente.

A círculo excêntrico foi apenas um dos diversos dispositivos matemáticos introduzidos pelos astrônomos gregos em suas tentativas de acomodar o movimento dos planetas e prever acuradamente suas localizações. Ainda antes de Hiparco, Apolônio introduziu o modelo de epiciclos e deferentes (veja-se Evans 1998, 22). Nesse tipo de modelo, um planeta se move em torno de um círculo, o epiciclo, que tem seu centro disposto em outro círculo, o deferente, que por sua vez orbita a Terra (veja-se Figura 1b). O modelo de epiciclos e deferentes cumpria duas funções. Primeiro, com tais modelos, os astrônomos eram capazes de fazer previsões mais acuradas sobre as localizações de vários planetas. Segundo, o modelo de epiciclos e deferentes poderia dar conta do movimento para trás que os planetas descreviam através do movimento retrógrado. Quando o planeta estivesse do lado de dentro de seu epiciclo, movendo-se na direção oposta ao seu círculo deferente, pareceria estar se movendo para trás.

O ápice dessa tradição de construção de modelos foi o Almagesto, de Cláudio Ptolemeu. Ptolemeu foi responsável por outra inovação, o ponto equante. Nos modelos que empregam o ponto equante, a Terra fica à mesma distância do centro da órbita do planeta que o ponto equante, mas em direção oposta (veja-se a Figura 1c). O ponto equante é o centro do movimento para o planeta enquanto ele orbita a Terra. O planeta varre ângulos iguais em instantes de tempos iguais em torno do círculo que descreve sua órbita. Mas como o ponto equante está fora do centro, visto a partir da Terra, o planeta parecerá se mover com velocidades diferentes através de sua órbita. Com as combinações de pontos equantes, epiciclos e deferentes, e círculos excêntricos, Ptolemeu criou os modelos matemáticos mais acurados já desenvolvidos. E durante séculos não foram superados em acurácia. Nem mesmo os modelos matemáticos de Copérnico foram mais acurados do que os de Ptolemeu.

Figura 1c
Figura 1c Modelo do ponto equante
O centro do movimento do planeta é colocado a uma distância do centro do círculo igual à distância em que a Terra está posicionada, mas na direção oposta.

Essa abordagem à construção de modelos se insere claramente na tradição instrumentalista. Os modelos eram bidimensionais e não tridimensionais, assim como os modelos das esferas homocêntricas. E geralmente não se pressupunha que tais modelos bidimensionais descrevessem a estrutura do cosmo. Alguns desses modelos empregavam dispositivos considerados bastante difíceis de se reconciliar com a estrutura física do cosmo. O valor desses modelos estava, na verdade, em sua capacidade de gerar previsões acuradas.

Vale a pena traçar uma distinção entre as seguintes atividades nas quais os astrônomos gregos estavam envolvidos: (i) astronomia observacional, (ii) astronomia matemática, (iii) cosmologia e (iv) astrologia. Muitas das pessoas que identificamos como astrônomos nesse período estavam envolvidos em mais do que uma dessas atividades. Vale a pena também distinguir várias atividades umas das outras. A distinção entre astronomia matemática e cosmologia é especialmente relevante para os nossos propósitos. Na medida em que alguém estivesse trabalhando na astronomia matemática, estava em geral sendo um antirrealista e, amiúde, um instrumentalista. Não é preciso pressupor que a órbita de um planeta seja tão complexa em sua estrutura quanto o é no modelo geométrico de sua órbita. O objetivo desses modelos era salvar os fenômenos, isto é, dar conta dos eventos observáveis e prever os eventos observáveis futuros (veja-se Duhem 1908). Por outro lado, na medida em que se estivesse trabalhando na cosmologia, era-se um realista. Muitos astrônomos visavam representar acuradamente a estrutura do cosmo. E, nesse intento, o astrônomo era limitado pelas teorias físicas aceitas.

Aristóteles ofereceu a mais compreensiva e amplamente aceita teoria física pelos astrônomos gregos interessados em cosmologia. Central à física de Aristóteles estava uma distinção categórica entre o reino terrestre — tudo aquilo abaixo da Lua — e o reino celeste — que inclui a Lua, o Sol, os planetas e as estrelas fixas. Não apenas esses dois reinos funcionavam de acordo com princípios distintos, mas também eram feitos de substâncias fundamentalmente distintas. Enquanto que todas as coisas no reino terrestre eram concebidas como uma combinação de terra, água, ar e fogo, todas as coisas no reino celeste eram concebidas como feitas do éter ou da quintessência, um elemento indestrutível. O movimento natural das coisas no reino terrestre era ou voltado para os céus ou voltado para o centro da Terra, dependendo da constituição da coisa particular em questão. O movimento natural das coisas no reino celeste era circular, um movimento adequado para as coisas indestrutíveis, assim como o único movimento que era eterno.

Astronomia medieval e renascentista

A astronomia foi uma das vítimas da queda do Império Romano e das invasões bárbaras na Europa. Cerca de um século antes do nascimento de Copérnico, os astrônomos europeus ainda tinham uma compreensão da astronomia muito menos sofisticada do que a de Ptolemeu e seus contemporâneos (veja-se Kuhn 1957, 124). Todavia, na época do Renascimento, o conhecimento da astronomia grega foi quase que totalmente recuperado, parcialmente graças aos textos do mundo islâmico.2 Os europeus finalmente atingiram o mesmo nível de sofisticação matemática que tinham Ptolemeu e seus contemporâneos. Crucial a esse processo foi a publicação de Epitome of the Almagest, de Georg Peuerbach e seu aluno Johannes Regiomaontanus (veja-se Lindberg 2007, 162).3

Regiomontanus foi um realista comprometido. Ele objetou aos modelos planetários no Almagesto de Ptolemeu em razão de (pelo menos em parte) eles serem bidimensionais e, por conseguinte, incapazes de representar acuradamente a causa dos movimentos planetários. Regiomontanus insistia que para explicar acuradamente as causas do movimento planetário era preciso modelos tridimensionais, modelos que empregavam esferas homocêntricas (veja-se Shank 2002, 186). Regiomantanus esperava desenvolver modelos que empregassem esferas homocêntricas tridimensionais e que dessem conta das causas físicas dos movimentos dos planetas ao mesmo tempo que permitissem aos astrônomos derivar previsões acuradas de suas localizações (veja-se Shank 2002, 192). Regiomontanus, portanto, “contradisse a interpretação da antiguidade tardia da distinção aristotélica entre filosofia natural, por um lado, e matemática e astronomia, por outro” (Shank 2002, 192). Muito embora Regiomaontanus nunca tenha conseguido atingir seu objetivo, a sua pesquisa foi conduzida por um firme comprometimento com o realismo.

Curiosamente, Regiomontanus também prestou atenção ao fato de que poderíamos modelar os movimentos de Saturno, Júpiter, Marte, Vênus e Mercúrio usando ou “um deferente que carregue um epiciclo em rotação sobre seu centro e com a velocidade do Sol médio” ou “um excêntrico cujo centro se move ao redor da Terra com a velocidade (e na mesma direção) do Sol médio” (veja-se Shank 2002, 183–184).4 Ambos os modelos eram capazes de gerar previsões igualmente acuradas.5 Esse é um exemplo vívido de subdeterminação da escolha teórica pela evidência. Dada a evidência disponível, os astrônomos não eram capazes de determinar qual modelo estava mais próximo da verdade. Tal subdeterminação tem sido frequentemente utilizada pelos antirrealistas como evidência de que os cientistas deveriam ser cautelosos quanto a inferir que uma teoria é verdadeira, ou talvez aproximadamente verdadeira, com base no fato de ela poder acomodar os fenômenos e gerar previsões acuradas. Discuto em detalhes os argumentos de subdeterminação no próximo capítulo. Embora a subdeterminação da escolha teórica pela evidência levante dificuldades ao realismo científico, não acredito que seja o argumento mais forte a favor do antirrealismo.

Copérnico: a nova cosmologia

Copérnico teve sorte de nascer numa época em que o conhecimento da matemática necessário para o entendimento e compreensão dos feitos de Ptolemeu fora recuperado. De acordo com David Lindberg, o Epitome de Peuerbach e Regiomontanus “exerceu forte influência sobre Nicolau Copérnico” (Lindberg 2007, 162). Insatisfeito, todavia, com as duas tradições da astronomia grega, uma baseada nas esferas homocêntricas e a outra no emprego dos epiciclos e deferentes, Copérnico foi enfim levado a uma nova e radical teoria, uma teoria heliocêntrica do cosmo (Copérnico 1543/1995, 5).

Vale a pena notar o quão radical era a cosmologia de Copérnico. Com a revolução copernicana na astronomia, o termo-para-categoria “planeta” mudou seu significado. De acordo com o léxico da teoria ptolemaica, o termo “planeta” apanhava as seguintes entidades: a Lua, Mercúrio, Vênus, o Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Com a nova teoria de Copérnico, algumas das coisas previamente consideradas como planetas já não eram mais consideradas planetas. E a Terra, que não era anteriormente considerada um planeta, passou então a ser considerada como um. Não foi apenas uma mudança nas extensões dos conceitos teóricos centrais que ocorrera, mas também uma mudança em suas intensões. Na teoria de Ptolemeu “planeta” significava “estrela errante”. Os planetas eram apenas aquelas “estrelas” que não se moviam com as estrelas fixas. Cada um dos planetas ptolemaicos tinha seu próprio movimento, geralmente em direção oposta ao movimento das estrelas fixas, além do movimento diário que compartilhava com as estrelas fixas. Na teoria de Copérnico “planeta” significa “um satélite do sol”, e as estrelas fixas eram de fato fixas. Seu movimento diário aparente era apenas isso, movimento aparente, o resultado do fato de a Terra completar uma rotação sobre o seu eixo a cada dia.

Copérnico foi um realista sobre a sua nova e radical cosmologia. Ao defender a verdade de sua nova cosmologia, ele apelou a várias virtudes teóricas. Ele argumentou que sua teoria captava a simplicidade e harmonia do cosmo bem melhor do que a teoria de Ptolemeu (veja-se Copérnico 1543/1995, 24 e 26; Gingerich 1975b/1993, 199). Copérnico identificou vários fatos que sua teoria poderia explicar, incluindo os seguintes:

  1. Saturno, Júpiter e Marte estão em oposição ao Sol quando “estão mais próximos da Terra”;
  2. Marte parece muito maior quando está em oposição ao Sol; e
  3. Mercúrio e Vênus nunca se afastam tanto do Sol (veja-se Copérnico 1543/1995, 27; e 21–22).6

Dada a ordem dos planetas e a estrutura do cosmo na teoria copernicana, esses fatos eram esperados. Embora tais fatos fossem reconhecidos por Ptolemeu, eles foram explicados de maneira ad hoc. Por exemplo, para dar conta das limitações da órbita de Mercúrio e Vênus, Ptolemeu estipulou que o centro do epiciclo de cada um desses planetas permanecia sempre numa linha que vai do centro da Terra ao centro do Sol. Copérnico, por outro lado, argumentou que a razão de Mercúrio e Vênus nunca aparecerem distantes do Sol é a suas órbitas estarem contidas dentro da órbita da Terra. A explicação de Ptolemeu para o fato de Marte parecer maior quando em oposição ao Sol era de que Marte estava do lado de dentro de seu epiciclo quando estava em oposição. Copérnico, por outro lado, argumentou que Marte parecia maior quando em oposição ao Sol porque estava muito mais próximo da Terra do que quando em conjunção com o Sol.

Os realistas apelam frequentemente a valores como a simplicidade e a harmonia como evidência de que uma teoria é aproximadamente verdadeira. Muitos realistas insistem nesses valores como indicadores confiáveis da verdade, ou da verdade aproximada, de nossas teorias. Copérnico de fato parece ter raciocinado dessa forma (veja-se McMullin 1993, 72–74). Ele tomou a simplicidade e a harmonia de sua teoria como indicadores de sua provável verdade.

A teoria de Copérnico enfrentou sérios desafios, contudo. A fim de desenvolver uma teoria que fosse tão acurada em prever as localizações dos planetas quanto a teoria ptolemaica, sua contemporânea, Copérnico teve de empregar (i) círculos excêntricos e (ii) epiciclos e círculos deferentes em seus modelos planetários, irregularidades que ele próprio considerava como representações errôneas da estrutura do cosmo. Desse modo, mesmo concedendo que a teoria copernicana fosse uma representação mais acurada da realidade, na medida em que ela reconhece que a Terra e outros planetas orbitam o Sol, o seu sucesso preditivo não era uma consequência do fato dela espelhar a realidade. Antes, seu sucesso preditivo era uma consequência do fato de ela empregar círculos excêntricos, epiciclos e deferentes. Tudo isso foi introduzido de maneira ad hoc nos modelos planetários para assegurar que a teoria pudesse acomodar os fenômenos que fosse tão bem sucedida quanto a teoria ptolemaica.7

Mesmo com esses ajustes ad hoc, os modelos planetários de Copérnico não eram mais acurados do que a versão renascentista tardia dos modelos ptolemaicos do movimento planetário.8 Na verdade, as duas teorias erravam algo como 5 graus em algumas previsões (veja-se Thoren 1967; Gingerich 1975/1993, 195–196; 1971/1993). Todavia, ambas as teorias eram em geral bastante acuradas. Por exemplo, Owen Gingerich nota que as previsões para a Lua derivadas das tabelas prussianas, que eram baseadas nos modelos de Copérnico, erravam em média apenas 30 minutos de arco, isto é, meio grau. E as previsões para os planetas superiores, Marte, Júpiter e Saturno “tendiam a concordar em 10 [minutos de arco]” (veja-se Gingerich 1978/1993, 210).

A despeito do fato de que Copérnico ainda precisava empregar epiciclos em seus modelos, ele ofereceu aos astrônomos algo de interesse. Os modelos matemáticos dos planetas de Copérnico não exigia o uso de pontos equantes. Alguns astrônomos achavam o ponto equante especialmente objetável. Um equante afasta o centro do movimento do centro do círculo que define a órbita do planeta. E o planeta varre ângulos iguais em torno do círculo num período de tempo igual. Como a Terra não está situada no ponto equante nos modelos de Ptolemeu, um planeta às vezes parecerá se mover mais rápido através das estrelas e às vezes mais devagar. Copérnico e outros astrônomos consideravam o equante como uma violação de um dos princípios da astronomia matemática, o de que “o movimento celestial é circular e uniforme, ou composto de partes circulares e uniformes”, princípio esse que supostamente se originou com Platão (veja-se Gingerich 2004, 53; também Duhem 1908/1969, 5). Copérnico insistia que graças aos movimentos irregulares dos planetas —isto é, seus movimentos retrógrados periódicos — terem “retornos periódicos fixos”, os movimentos dos planetas tinham de ser “circulares ou compostos por muitos movimentos circulares” (Copérnico 1543/1995, 12). Apenas os movimentos circulares, pensava ele, poderiam assegurar a regularidade no padrão das fases de seus movimentos retrógrados.

Osiander: a primeira interpretação instrumentalista de Copérnico

Georg Joachim Rheticus levou o manuscrito de Copérnico da Polônia até Nuremberg para que fosse impresso (veja-se Gingerich 1974/1993, 167). Mas foi a Andreas Osiander que coube a responsabilidade de cuidar de sua publicação. Como consequência, Osiander é responsável pela primeira interpretação antirrealista da teoria de Copérnico.

Osiander anexou uma introdução por conta própria e não assinada ao manuscrito de Copérnico, intitulada “Ao Leitor Sobre as Hipóteses desta Obra”. Na introdução, Osiander pede ao leitor que não pressuponha que as hipóteses sobre os movimentos dos planetas apresentadas no livro descrevam os movimentos reais dos planetas. Assim, em vez de considerar os modelos de Copérnico como descrições acuradas da estrutura do cosmo, Osiander sugere que devessem considerá-los meramente como meios úteis de se determinar as localizações dos planetas (veja-se Osiander em Copérnico 1543/1995, 3–4). O que Osiander deixou de fazer, vale ressaltar, era deixar claro ao leitor que fora ele, e não Copérnico, quem preparou a introdução. Por isso, muitos dos primeiros leitores do livro pensaram que Copérnico fosse um instrumentalista. Há algum debate entre os historiadores da ciência contemporâneos quanto a Osiander ser melhor caracterizado como um instrumentalista ou um ficcionalista. Os instrumentalistas consideram uma teoria como mero instrumento para previsão e controle, e não o tipo de coisa que poderíamos considerar como verdadeiro ou falso. Os ficcionalistas, por seu lado, não acreditam que o mundo seja como a teoria o descreve. Não obstante, dizem-nos para que ajamos “como se” o mundo fosse como a teoria sugere (sobre ficcionalismo, veja-se Suárez 2009). De maneira alternativa, alguns argumentam que Osiander pensava que o conhecimento da estrutura subjacente do cosmo excedia as capacidades humanas (veja-se, por exemplo, Barker e Goldstein 1998; Shank 2002). Essa última perspectiva foi atribuída a Osiander por Edward Rosen. Nas palavras do próprio Rosen, Osiander acreditava que “uma vez que a revelação divina é a única fonte da verdade, as hipóteses astronômicas não as diz respeito, servindo apenas como base para cálculos” (veja-se Rosen 1939/1959, 25).9 No debate contemporâneo entre realismo e antirrealismo, essa última posição está mais de acordo com o empirismo construtivo de van Fraassen, embora van Fraassen não afirme ser a revelação divina a única fonte da verdade (veja-se van Fraassen 1980).

Embora os motivos de Osiander com essa introdução ao livro de Copérnico não sejam claros, é interessante notar o seu raciocínio como lá apresentado. Osiander afirma que a disciplina da astronomia “é absoluta e profundamente ignorante quanto às causas dos movimentos irregulares aparentes” dos planetas (Osiander em Copérnico 1543/1995, 3; ênfase minha). Assim, adverte o leitor:

E que ninguém espere da astronomia algo de certo no que concerne a hipóteses, pois nada disso procura ela nos oferecer; para que, tomado por verdadeiro algo que foi para outro uso imaginado, não venha a sair desse estudo mais estulto do que nela entrou. (Osiander, p. 58; trad. Zeljko Loparic, Cadernos de História e Filosofia da Ciência 1 (1980)).

Copérnico morreu quase que imediatamente após receber uma cópia de seu livro. Por isso ele não pôde corrigir as coisas e fazer com que os leitores soubessem que a introdução de Osiander não refletia suas próprias opiniões. Rheticus sabia quem escreveu a introdução, e isso nada lhe agradava (veja-se Gingerich 1974/1993, 167). Mas foi apenas em 1609 que veio a público quem escreveu a introdução, quando Johannes Kepler procurou corrigir o registro sobre essa questão, motivado em parte por suas próprias convicções realistas a favor da teoria heliocêntrica (veja-se Dreyer 1906/1953, 321; Duhem 1908/1969, 68–69; Koestler 1959/1964, 169–175). Tudo isso, porém, muitas décadas após a morte de Copérnico.

A propósito, como nota Pierre Duhem, Osiander tinha escrito uma carta a Copérnico em 20 de abril de 1541, dois anos antes da publicação do livro de Copérnico (veja-se Duhem 1908). Na carta, Osiander afirma o seguinte:

Eis o que sempre pensei sobre as hipóteses: não são artigos de fé, são apenas os fundamentos do cálculo; se fossem falsas isso pouco importaria, desde que reproduzissem exatamente os φαινόμενα [fenômenos] dos movimentos. Se, por exemplo, seguimos as hipóteses de Ptolemeu, quem poderá nos assegurar se o movimento irregular do Sol é produzido em virtude do epiciclo ou em virtude do excêntrico, já que pode ser igualmente produzido por qualquer um desses dois procedimentos? Parecer-me-ia razoável que em vosso prefácio vós colocásseis uma palavra sobre essa questão; apaziguaríeis, assim, os peripatéticos e os teólogos de quem temeis a oposição. (Osiander citado em Duhem 1908/1984, 65; trad. Roberto de A. Martins, Cadernos de História e Filosofia da Ciência, suplemento 3 (1984)).

Kepler aparentemente tomou isso como evidência de que o prefácio de Osiander nem mesmo representasse o próprio Osiander pensasse sobre a questão. Duhem contesta essa interpretação (veja-se Duhem 1908/1969, 68–69 [1984, 65–66]; veja-se também Rosen 1939/1959).

Reinhold e os astrônomos de Wittenberg

A resposta inicial à teoria de Copérnico foi bastante morna. Na realidade, Robert Westman sugere que por volta de 1600, cerca de cinquenta anos após a publicação do livro de Copérnico, apenas dez astrônomos aceitaram a teoria de Copérnico como uma descrição verdadeira do mundo (Westman 1986/2003, 54).10 Com exceção de Rheticus, nenhum outro astrônomo se comprometeu com uma interpretação realista da teoria copernicana até a década de 1570 (veja-se Westman 2011, 148). Anterior a 1570, muitos dos astrônomos que objetaram à teoria de Copérnico assim o fizeram porque ela não se encaixava à teoria física aceita à época, a teoria de Aristóteles. Essa é uma preocupação claramente realista.

A teoria de Copérnico fora todavia adotada nas décadas de 1550 e 1560, pelo menos em parte, pelos astrônomos de Wittenberg. Westman nota que “o princípio norteador da perspectiva de Wittenberg era o de que só poderíamos confiar na nova teoria naquilo que respeita o domínio das previsões sobre a posição angular de um planeta” (Westman 1975, 166). Os astrônomos de Wittenberg acreditavam que “a tese copernicana menos satisfatória era a asserção de que a terra se movia” (veja-se Westman 1975, 167; Barker 2001). Assim, embora os astrônomos de Wittenberg tenham abraçado entusiasticamente o trabalho de Copérnico, eles adotaram uma postura antirrealista — especificamente instrumentalista — perante a teoria, considerando os modelos planetários como dispositivos meramente úteis para prever as posições dos planetas. Essa versão instrumentalista de antirrealismo foi bastante popular entre os astrônomos europeus no século XVI (veja-se Westman 2011, cap. 5). Os astrônomos de Wittenberg estavam impressionados com os modelos planetários copernicanos, em parte porque Copérnico fora capaz de dispensar os pontos equantes, a inovação de Ptolemeu.

A publicação, em 1551, das tabelas prussianas de Erasmus Reinhold desempenharam um papel crucial no desenvolvimento da Escola de Wittenberg (veja-se Westman 2011, 141). As tabelas prussianas permitiram aos astrônomos que calculassem e, por conseguinte, previssem, as localizações dos planetas; elas estavam baseadas explicitamente nos modelos copernicanos. Reinhold, professor na Universidade de Wittenberg, rejeitara todavia a nova cosmologia de Copérnico (veja-se Duhem 1908/1969, 73–74 [1984, 68–69].

Vale a pena contrastar as perspectivas dos astrônomos de Wittenberg com as de um proponente, contemporâneo seu, da teoria ptolemaica. Christopher Clavius, um dos astrônomos ptolemaico mais influentes do século XVI, foi um realista quanto a cosmologia geocêntrica de Ptolemeu. Ao contrário de Copérnico e dos astrônomos de Wittenberg, Clavius era também uma realista quanto aos excêntricos e aos epiciclos, notando que “como não se encontrou até aqui nenhum método mais cômodo do que aquele que salva todas as aparências com a ajuda dos excêntricos e dos epiciclos, somos forçados a acreditar que as esferas celestes são constituídas por orbes dessa espécie” (Clavius 1581, citado em Duhem 1908/1969, 94 [1984, 86]; veja-se também Lattis 1994 110 e 129). A atitude realista de Clavius sobre os excêntricos e os epiciclos nos modelos planetários ptolemaicos pode não ter sido a perspectiva padrão entre os astrônomos do final do século XVI. Mas ele provavelmente não fora o único a sustentar essa perspectiva.11 A linha de raciocínio de Clavius é um exemplo de Inferência a favor da Melhor Explicação, um padrão de raciocínio frequentemente empregado pelos realistas e igualmente muito criticado pelos antirrealistas.

Tycho Brahe: avanços na astronomia observacional

Por volta do fim da década de 1580, os astrônomos tinham ainda mais teorias disponíveis para a escolha. Tycho Brahe desenvolveu uma nova teoria dos cosmo. Assim como Copérnico, Brahe também considerava “o equante uma abominação” (Thoren 1990, 91). Mas Brahe não estava preparado para aceitar uma teoria que fosse contrária à física aceita. Ele não acreditava que a Terra se movesse como tinha afirmado Copérnico.

De acordo com a teoria de Brahe, a Terra está no centro do cosmo. A Lua e o Sol orbitam a Terra, mas os restante dos planetas, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno orbitam o Sol (veja-se Brahe 1588/1970, 58–66). Os planetas giram assim em torno da Terra juntamente com o Sol, assim como cada planeta completa simultaneamente sua órbita em torno do Sol — Saturno em cerca de trinta anos, Júpiter em cerca de doze anos, Marte em cerca de dois anos, etc.

Vale dizer que embora Brahe aceitasse a física aristotélica, ele não a seguiu cegamente. Com base em suas próprias observações em 1577 e 1585, ele veio a acreditar que os cometas não estavam restritos ao reino terrestre, isto é, entre a Lua e a Terra (veja-se Thoren 1990, 123 e 265). Na verdade, Brahe determinou que os cometas por ele observados cruzaram a rota de múltiplos planetas. Isso o levou a rejeitar a existência das esferas celestiais, supostamente feitas de quintessência ou éter.

Como o desenvolvimento da teoria de Brahe, os primeiros astrônomos modernos europeus tinham três teorias bem desenvolvidas entre as quais decidir — a teoria de Ptolemeu, a teoria de Copérnico e a teoria de Brahe — todas elas igualmente empiricamente bem sucedidas. Isto é, as três teorias eram igualmente acuradas no que diz respeito às previsões. É importante mencionar que as três principais teorias consideradas pelos astrônomos durante o final do século XVI e início do XVII não são teorias empiricamente equivalentes. Elas, afinal, implicam previsões radicalmente diferentes sobre o mundo. Mas levando-se em conta os dados então disponíveis, os astrônomos não poderiam determinar univocamente qual teoria é superior. Esse é um caso ao qual Lawrence Sklar chama subdeterminação transiente (Sklar 1975; veja-se também Stanford 2001). Retornarei à discussão da subdeterminação transiente e sua relevância ao debate realismo/antirrealismo no próximo capítulo.

A teoria da Brahe exerce, de maneira significativa, uma importante influência na Revolução Copernicana na astronomia, muito embora nunca tenha desfrutado de status de a teoria aceita. Confrontados com as três teorias plausíveis, os astrônomos poderiam justapor essas teorias umas com as outras. Tais comparações permitiram aos astrônomos escrutinar cada uma das teorias concorrentes mais profundamente (sobre o valor da avaliação comparativa, veja-se Feyerabend 1988).

O contributo de Brahe para a Revolução Copernicana não se limita à sua nova teoria e aos efeitos que ela teve sobre os debates. Ele é também responsável por elevar os padrões na astronomia observacional. Ele tinha numerosos instrumentos astronômicos construídos sob demanda que superavam em muito a acurácia de qualquer instrumento anteriormente já utilizado (veja-se Brahe 1598/1946, 65 e 79; também Gade 1947, 84–85). Nenhum dos instrumentos de Brahe tinha a capacidade de ampliação, mas seu tamanho e perfeição permitiram o alcance de graus de acurácia na astronomia observacional até então nunca alcançados (veja-se Thoren 1990, 190–191). Além disso, ele empregou uma equipe de astrônomos que trabalhavam tanto na coleta de dados quanto em seu processamento (Brahe 1598/1946, 67, 70 e 74; Christianson 2000, 80). Em seu observatório na Dinamarca, sua equipe de astrônomos coletou dados sistemática e regularmente, fazendo cerca de “85 sessões de observação ao ano” (veja-se Thoren 1990, 201 e 220). Brahe tinha diferentes equipes fazendo observações das mesmas estrelas e planetas de diferentes localizações em seu estado numa tentativa de detectar erros (Gade 1947, 69 e 90). Consequentemente, ele foi capaz de coletar um extenso corpo de dados sobre as localizações das estrelas e planetas que cuja acurácia e escopo superavam em muito àqueles que os astrônomos estavam acostumados a usar. Os dados de Brahe acabaram por desempenhar um papel crucial nos importantes contributos de Kepler para a Revolução Copernicana. Anterior às inovações de Brahe na astronomia observacional, os astrônomos tendiam a se fiar em apenas poucos dados em seus esforços para modelar as órbitas dos planetas.12

Kepler e Galileu

Kepler e Galileu Galilei, dois dos primeiros convertidos à teoria copernicana, eram realistas quanto à cosmologia copernicana. É importante notar, todavia, que a teoria copernicana aceita por eles afastava-se significativamente da teoria original de Copérnico. Tanto Galileu quanto Kepler rejeitavam a existência das esferas celestiais que supostamente carregavam os planetas em suas órbitas. Galileu não pensava que a lua fosse feita de éter ou quintessência, como acreditava Copérnico. Na verdade, as observações telescópicas que Galileu fez da Lua, com seus terrenos montanhosos, ofereceu evidência convincente de que a Lua fosse feita da mesma substância da Terra. E Kepler acreditava que os planetas se moviam em elipses, não em círculos ou combinações de círculos.13

O principal contributo de Kepler para a Revolução Copernicana foi a sua descoberta de suas famosas leis do movimento planetário, especialmente as duas primeiras: (i) as órbitas dos planetas são elipses, estando o Sol localizado em um dos focos, e (ii) os planetas varrem áreas iguais em instante de tempos iguais enquanto se movem em torno do Sol (veja-se Dreyer 1906/1953, 392). É fácil exagerar a importância de Kepler na Revolução Copernicana. No Astronomia Nova, em que Kepler primeiro publicou as duas leis, ele apenas mostrou que elas se aplicam a Marte. Uma década mais tarde, quando publicou Epitome Astronomia Copernicae, Kepler apenas supõe que essas leis também se apliquem aos outros planetas (veja-se Kepler 1618–1621/1995; Dreyer 1906/1953, 403). Ademais, as descobertas que fazem jus à fama de Kepler estavam enterradas em textos que incluíam muitas afirmações que, aos leitores de hoje, soariam verdadeiramente bizarras. Por exemplo, a sua afirmação de que só poderia haver seis planetas derivava-se de suas convicções neo-platônicas. Porque há apenas cinco sólidos platônicos, Kepler argumentou que só poderia haver seis planetas, cada um separado do próximo por um dos cinco sólidos platônicos. Kepler também afirmava que os planetas eram movidos por uma força magnética que emanava do Sol devido à sua rotação em torno de seu próprio eixo (veja-se Dreyer 1906/1953, 394–398). O realismo de Kepler, vale notar, estava muito mais ligado a essas afirmações — que presentemente são consideradas falsas — do que àquelas afirmações que continuamos a aceitar hoje em dia.14

Além disso, as leis de Kepler não foram imediatamente aceitas por outros astrônomos, nem mesmo por Galileu, a despeito do fato de ambos, Galileu e Kepler, terem se correspondido em diversas ocasiões (veja-se Shea e Artigas 2003, 26). O Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo, de Galileu, não faz menção a órbitas elípticas. Na época de Newton, decerto, a importância das leis de Kepler foi reconhecida e entendida. A revolução na astronomia encontrava-se finalmente acabada.

Os contributos de Galileu para a Revolução Copernicana tiveram maior alcance e foram mais imediatas do que as de Kepler. Galileu é muito conhecido por seus contributos para a astronomia observacional, tendo sido o primeiro a empregar o telescópio como instrumento na astronomia. Três de suas descobertas telescópicas tiveram papel central na Revolução Copernicana.

Primeiro, a sua descoberta de que a Lua tem uma superfície irregular, com montanhas e vales, não diferente da superfície de Terra, ajudou a erodir a distinção tradicional celestial/terrestre que parecia se encaixar muito bem na teoria ptolemaica (veja-se Galilei 1610/2008, 51–63). Após Galileu ter relatado suas observações da Lua, pareceu insustentável insistir que ela fosse feita da quintessência, uma substância perfeita e imutável, uma vez que a superfície da Lua se assemelhava bastante à superfície da Terra.15 Segundo, a sua descoberta das estrelas mediceanas, isto é, as luas de Júpiter, diminuíram a importância de uma crítica central à teoria copernicana (veja-se Galilei 1610/2008, 68–84). De acordo com a teoria copernicana, a Lua orbita a Terra enquanto que a Terra orbita o Sol. Isso pareceu impossível a muitos críticos. Eles achavam incompreensível que a Lua pudesse se manter em movimento junto com a Terra, também em movimento, ao mesmo tempo em que a Terra orbita o sol. A teoria ptolemaica não enfrentava tal problema, pois postulava que todos os corpos celestes orbitam a Terra, que está estacionária no centro do cosmo. Mas com a descoberta das luas de Júpiter, mesmo os astrônomos ptolemaicos precisavam explicar como um satélite permanece em órbita de um planeta também em órbita.

Terceiro, a descoberta de Galileu de que Vênus apresenta todas as suas fases no curso de sua órbita lançou considerável dúvida sobre a teoria ptolemaica. Mesmo antes de fazer as observações Galileu já previra que Vênus exibiria todas as suas fases, assim como a Lua. Essa previsão foi derivada da teoria copernicana.16 Esse é um caso clássico em que uma previsão de um novo fenômeno é derivado de uma teoria e testado contra o mundo. Após meses de observação, a previsão de Galileu foi confirmada. Das descobertas telescópicas essa foi a mais danosa à teoria ptolemaica. Ao construir um modelo para a órbita de Vênus, Ptolemeu estipulou que o centro de seu epiciclo repousa numa linha de vai do centro do Sol até a Terra. Por causa dessa estipulação ad hoc, a teoria ptolemaica previa que Vênus não exibiria todas as suas fases (veja-se Galilei 1615/2008, 127). Essa descoberta particular marcou um importante ponto de virada para a teoria ptolemaica. Foi impossível conciliá-la com as observações das fases de Vênus.

Os contributos de Galileu para a Revolução Copernicana vão além da astronomia em sentido estrito. Galileu também conduziu importantes pesquisas na física e na hidrostática que, em última instância, mostraram-se relevantes para a revolução na astronomia. O seu trabalho sobre corpos em queda e corpos flutuantes desafiaram a física que supostamente apoiava a teoria ptolemaica. Isso foi crucial ao desenvolvimento na Revolução Copernicana, sendo um dos principais pontos de resistência contra a teoria copernicana o seu conflito com a física de Aristóteles. Galileu estava a fornecer razões aos astrônomos e cientistas naturais de que a física de Aristóteles era inadequada.

É razoável pensar que, por volta da segunda década dos anos de 1600, a teoria ptolemaica já não era mais considerada uma rival séria (veja-se Hoskin 1997b, 130–131). As observações telescópicas de Galileu, especialmente as fases de Vênus, contribuíram significativamente para enfraquecer a confiança que os astrônomos tinham na teoria ptolemaica. Mas demorou para que a batalha entre as teorias copernicana e a tychoniana fosse resolvida, pois as observações de Galileu eram compatíveis com ambas.

Assim como Kepler, Galileu também estava errado sobre algumas questões. Por exemplo, ele acreditava que seu argumento mais forte em apoio ao movimento da Terra fosse o argumento das marés. No Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo, Galileu argumenta que as marés são causadas pela combinação do movimento diário da Terra e seu movimento anual em torno do Sol. Ele insiste, com efeito, que as marés seriam inexplicáveis caso a Terra fosse estável e não se movesse, como defendia Ptolemeu (veja-se Galilei 1632/2001, 484). Ele raciocínio por analogia, a partir do movimento de um reservatório de água carregado por uma barca em movimento (veja-se Galilei 1632/2001, 493). Galileu achava esse argumento tão convincente que pensou inicialmente em dar o título ao seu diálogo como O Discurso sobre as Marés (veja-se Shea e Artigas 2003, 125). No fim das contas, por insistência dos outros, Galileu não deu esse título ao livro. Ademais, ele estava errado sobre a causa das marés. Assim, da mesma maneira que Kepler, as convicções realistas de Galileu estendiam-se às suas crenças falsas tanto quanto àquelas que continuamos a considerar verdadeiras.

Galileu teve outro papel importante na Revolução Copernicana, papel esse especialmente relevante para o debate realismo/antirrealismo. Em 1616, quando instado pela Igreja Católica a não ensinar ou defender a teoria copernicana, disseram-lhe que ele poderia considerar a teoria, tratando-a hipoteticamente. Isto é, foi-lhe sugerido que a possibilidade de discutir a teoria, contanto que o fizesse como um instrumentalista (veja-se Relato da Comissão Especial 1632/2008, 273).

Em 1632, quando publicou o Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo, Galileu foi menos cuidadoso do que deveria ter sido e pensou equivocadamente que pudesse ser mais direto sobre suas convicções realistas na astronomia. Esse foi um erro sério. No Diálogo, Galileu faz o personagem Simplício apresentar a perspectiva de que Deus poderia ter criado o mundo de diversas formas diferentes de modo a produzir os fenômenos que serviam como base para a teorização dos astrônomos sobre o cosmo (veja-se Galilei 1632/2001, 538). Deus, afinal de contas, é todo-poderoso; seria vaidade de nossa parte pensar que podemos determinar como Ele construiu o mundo.

No julgamento de Galileu pela Inquisição, a Igreja sustentou que a evidência disponível não justificava a crença na teoria copernicana. Na verdade, a Inquisição estava interessada que algumas das afirmações implicadas pela teoria copernicana fossem heréticas ou falsas ou ambas (veja-se Inquisição 1933/2008, 292). Na disputa entre Galileu e a Igreja Católica, estava em jogo aquilo que Deus poderia ou não fazer.17 Essa questão parece descabida nos debates científicos contemporâneos. Mas mesmo sem apelar ao poder infinito de Deus, muitos cientistas têm questionado se temos bases adequadas para aceitar como verdadeiras hipóteses sobre a realidade por trás dos fenômenos observáveis.

Muito embora Galileu tivesse sofrido sanções da Igreja Católica, a teoria copernicana, em sua forma modificada tanto por Kepler quanto por Galileu, por volta da década de 1630, já estava em vias de se tornar a teoria dominante na astronomia. A revolução estava mais ou menos completa, muito embora a Igreja a tivesse tentado parar e a despeito de alguma resistência. Com efeito, a alcance limitado da tentativa da Igreja de barrar a dispersão da teoria copernicana evidencia-se pelo fato de que, fora da Itália, poucas cópias do livro de Copérnico foram censuradas de acordo com as instruções da Inquisição (veja-se Gingerich 2004, 145–146). Como nota Gingerich, nem mesmo na França e na Espanha os proprietários do mencionado livro sentiram-se obrigados a censurar suas cópias, como fora instruído.

Brad K. Wray
Resisting Scientific Realism (Cambridge: Cambridge University Press, 2018), Cap. 1.

Referências

Notas

  1. Ernan McMullin nota que a revolução copernicana “levou um século e meio, da De Revolutionibus de Copérnico até os Principia de Newton, para se consumar” (veja-se McMullin 1993, 60). Se a revolução copernicana for entendida como uma revolução na astronomia, então é defensável que ela tenha sido completada por volta dos anos de 1630. O tratamento que a Igreja Católica dispensou a Galileu sugere claramente que estavam na defensiva. ↩︎
  2. Nas últimas décadas, os historiadores têm reavaliado a influência da astronomia islâmica no desenvolvimento da astronomia europeia. Alguns dos desenvolvimentos importantes feitos no mundo islâmico podem ter sido independentemente descobertos mais tarde pelos europeus (veja-se, por exemplo, Ginhgerich 1974/1993, 175). O modelo que Copérnico usou para eliminar o ponto equante de Ptolemeu, por exemplo, “foi precisamente o mesmo mecanismo sugerido por Ibn ash-Shatir dois séculos antes em Damasco (Gingerich 1974/1993, 175). Alguns desenvolvimentos foram, contudo, adotados de fontes islâmicas, como, por exemplo, o dispositivo desenvolvido por Nasir al-Din al Tusi, o dispositivo de Tusi, que permitiu aos astrônomos modelar o movimento retilíneo usando círculos (veja-se di Bono 1995). Copérnico empregou tal dispositivo em alguns de seus modelos, muito embora, como explica Mario di Bono, não seja claro exatamente como ele adquiriu conhecimento do trabalho de Tusi (veja-se di Bono 1995, §4 e §7). ↩︎
  3. Noel Swerdlow defende que Refiomontanus “foi a única pessoa de sua época a entender tão bem a astronomia a ponto de apontar suas falhas” (Swerdlow 2004, 85). ↩︎
  4. Uma observação sobre a noção de “Sol médio”. “O Sol médio é um corpo fictício que se move uniformemente em um círculo centrado na Terra” (veja-se Evans 1998, 226). “O Sol médio está na mesma direção que o [Sol] real quando o Sol real está no apogeu [...] ou no perigeu [...] de seu círculo excêntrico [...] Em todos os outros instantes de tempo no ano, o Sol real, como visto a partir da Terra, está um pouco adiantado ou atrasado em relação ao Sol médio” (226). Diversas restrições nos modelos planetários de Ptolemeu estão, estritamente falando, relacionados ao Sol médio e não ao Sol real. Mas para os nossos propósitos, tais detalhes não nos interessam. ↩︎
  5. Ptolemeu já tinha notado que as órbitas dos planetas superiores, Marte, Saturno e Júpiter poderiam ser modeladas fosse com excêntricos fosse com epiciclos; mas parece que ele não percebeu que as órbitas dos planetas inferiores poderiam também ser modeladas do mesmo modo (veja-se Shank 2002, 183). ↩︎
  6. Swerdlow identifica várias outras harmonias que Copérnico poderia explicar dada sua teoria heliocêntrica (veja-se Swerdlow 2004, 88-90). Ainda mais importante, Swerdlow identifica relações errôneas que se seguiam da teoria de Copérnico e que o próprio Copérnico considerava serem evidência a favor de sua teoria (veja-se Swerdlow 2004, 90). Esse é um tema recorrente na história da ciência e bastante relevante ao debate realismo/antirrealismo. Os cientistas estão tão comprometidos com os enunciados falsos implicadas por suas teorias quanto com aquelas que ainda consideramos como verdadeira. ↩︎
  7. Ao contrário de Ptolemeu, Copérnico utilizou-se apenas de epiciclos menores em seus modelos planetários. Os epiciclos maiores foram introduzidos para modelar o movimento retrógrado. Os epiciclos menores tinham uma função diferente. Eles modificavam a forma da órbita de um planeta no esforço de alcançar uma maior acurácia preditiva, muito embora não dessem conta do movimento retrógrado (veja-se a figura 22 em Kuhn 1957, 67). ↩︎
  8. A versão da teoria de Copérnico popular na época de Copérnico não era muito diferente da teoria original de Ptolemeu (veja-se Swerdlow 2004, 80). Ela não foi radicalmente modificada nesse entremeio, contrário ao mito popular que sugere ter sido (veja-se Swerdlow 2004, 79–80; Gingerich 2004, cap. 4). ↩︎
  9. Quando o livro de Copérnico foi publicado, a Reforma estava em plena atividade e as pessoas envolvidas na astronomia também estavam profundamente engajadas nas mudanças religiosas que se espalhavam pela Europa. Por exemplo, Osiander cresceu católico tendo sido educado num mosteiro agostiniano em Nuremberg. Mais tarde, porém, tornou-se luterano e “ganhou [...] notoriedade como articulador, zeloso reformador e militante anti-românico” (veja-se Wrightsman 1975, 218). ↩︎
  10. Westman afirma que “podemos identificar apenas dez copernicanos entre 1543 e 1600: [...] quatro eram alemães (Rheticus, Michael Maestlin, Christopher Rothmann e Johannes Kepler); italianos e ingleses contribuíram com dois cada (Galileu e Giordano Bruno; Thomas digges e Thomas Harriot); espanhóis e neerlandeses com um cada (Diego de Zuniga; Simon Stevin)” (Westman 1986/2003, 54). ↩︎
  11. Aparentemente, até mesmo alguns seguidores leais da teoria ptolemaica se utilizaram de Copérnico. Especificamente, Conrad Dasypodius e Gaspar Peucer reformularam “as teorias de Ptolemeu utilizando as constantes determinadas por Copérnico” (veja-se Thoren 1990, 91). ↩︎
  12. Compare, por exemplo, a discussão que Gingerich (1971/1993, 379–380) faz dos métodos de Ptolemeu para determinar a órbita de Mercúrio com sua discussão dos recursos de Kepler como resultado do vasto estoque de observações de Brahe (veja-se 1975a/1993, 340). ↩︎
  13. Outros dos primeiros aderentes à teoria de Copérnico também tinham perspectivas que se distanciavam significativamente das próprias perspectiva de Copérnico em pontos centrais. Thomas Digges e Giordano Bruno, por exemplo, acreditavam que o universo fosse infinito em tamanho, a despeito de essa não ser a opinião de Copérnico. E, assim como Kepler, Bruno acreditava não haver esferas celestiais carregando os planetas (veja-se Tredwell e Barker 2004). ↩︎
  14. Dreyer sustenta “haver [...] a mais íntima conexão entre as especulações [de Kepler] e suas grandes conquistas; sem as primeiras não teríamos nunca tido as últimas” (veja-se Dreyer 1906/1953, 410). Dreyer sugere então que as ideias metafísicas especulativas de Kepler, mesmo aquelas mais equivocadas, podem ter desempenhado um papel construtivo no caminho que o levou a fazer aquelas importantes e duradouras descobertas pelas quais ele é reconhecido. ↩︎
  15. As observações que Galileu fez das manchas solares foram também um desafio à perspectiva de que o cosmo era imutável. ↩︎
  16. Galileu mandou um mensagem a Kepler, codificada em uma anagrama, anunciando a sua previsão, parcialmente como uma maneira de assegurar a sua prioridade (veja-se Swerdlow 1998, 260; Shea 1998, 221–222). ↩︎
  17. Estava também em questão a relação entre ciência e religião. Do ponto de vista da Igreja, Galileu não estava qualificado para fazer parte dessa disputa. Ele não tinha treino em teologia. ↩︎
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