Talvez seja melhor pensar no argumento ontológico não como um único argumento mas como uma família de argumentos, em que cada membro começa com um conceito de Deus e, apelando apenas a princípios a priori, procura estabelecer que Deus existe efectivamente. Nesta família de argumentos, o mais importante historicamente é o apresentado por Anselmo no segundo capítulo do seu Proslogium (um discurso).1 Na verdade, é justo afirmar que o argumento ontológico começa com o Capítulo 2 do Proslogium de Santo Anselmo. Numa obra anterior, Monologium (um solilóquio), Anselmo procurara estabelecer a existência e natureza de Deus entretecendo diversas versões do argumento cosmológico. No prefácio ao Proslogium, Anselmo comenta que após a publicação do Monologium começou a procurar um único argumento que por si só estabelecesse a existência e natureza de Deus. Depois de muito esforço árduo e infrutífero, Anselmo diz-nos que procurou afastar o projecto da sua mente, para se dedicar a tarefas mais compensadoras. A ideia, contudo, continuou a assombrá-lo até que um dia se lhe tornou clara a prova que procurara tão arduamente. É esta prova que Anselmo apresenta no segundo capítulo do Proslogium.
Antes de apresentar passo-a-passo o argumento de Anselmo, será útil introduzir alguns conceitos que nos ajudarão a compreender algumas das ideias centrais que figuram no argumento. Suponha-se que desenhamos, na nossa imaginação, uma linha vertical e imaginamos que à esquerda da nossa linha estão todas as coisas que existem e à sua direita estão todas as coisas que não existem. Podíamos então começar a fazer uma lista de algumas coisas que estão ora num ora noutro dos lados da nossa linha imaginária. A lista poderia começar da seguinte maneira:
Coisas que existem | Coisas que não existem |
---|---|
O Empire State Building | A Fonte da Juventude |
Cães | Unicórnios |
O planeta Marte | O Abominável Homem das Neves |
Cada uma das coisas (ou géneros de coisas) apresentadas até agora tem a seguinte característica: logicamente, podia estar do outro lado da linha. A Fonte da Juventude, por exemplo, está à direita da linha mas logicamente nada há de absurdo na ideia de que a Fonte da Juventude poderia estar à sua esquerda. De igual modo, embora os cães existam, podemos seguramente imaginar, sem cair em qualquer absurdo lógico, que os cães poderiam não ter existido: poderiam estar à direita da linha. Registemos então esta característica das coisas até agora apresentadas, introduzindo a ideia de coisa contingente: algo que poderia logicamente estar do lado da linha oposto ao que efectivamente está. O planeta Marte e o Abominável Homem das Neves são coisas contingentes, apesar de o primeiro existir e o último não.
Suponha-se que acrescentamos algo à nossa lista, escrevendo no lado direito a expressão “o objecto que é ao mesmo tempo completamente redondo e completamente quadrado”. O quadrado redondo, contudo, ao contrário das outras coisas apresentadas à direita da linha, é algo que logicamente não poderia estar à sua esquerda. Vendo isto, introduzamos a ideia de coisa impossível, que é algo que está à direita da linha e que logicamente não poderia estar à sua esquerda.
Olhando mais uma vez para a nossa lista, surge a questão de haver ou não alguma coisa à esquerda da nossa linha imaginária e que, ao contrário das coisas apresentadas até agora à sua esquerda, logicamente não poderia estar à sua direita. Por enquanto, não temos de responder a esta questão. Mas é útil ter um conceito para aplicar a quaisquer coisas desse género, se as houver. Consequentemente, introduzamos a noção de coisa necessária: algo que está à esquerda da nossa linha imaginária e que logicamente não poderia estar à sua direita.
Por fim, podemos introduzir a ideia de coisa possível: qualquer coisa que ou está à esquerda da nossa linha imaginária ou poderia logicamente estar à sua esquerda. As coisas possíveis, portanto, serão todas aquelas que não são impossíveis — isto é, todas aquelas que são ou contingentes ou necessárias. Se não há coisas necessárias, então todas as coisas possíveis serão contingentes e todas as coisas contingentes serão possíveis. Se há algo necessário, contudo, então haverá algo possível que não é contingente.
Munidos com os conceitos que se acabou de explicar podemos passar à clarificação de certas distinções e ideias importantes no pensamento de Anselmo. A primeira é a distinção entre a existência no entendimento e a existência na realidade. A noção que Anselmo tem de existência na realidade é a mesma que a nossa noção de existência — isto é, estar à esquerda da nossa linha imaginária. Como a Fonte da Juventude está à direita da linha, não existe na realidade. As coisas que existem são, para usar a expressão de Anselmo, as que existem na realidade. A noção que Anselmo tem de existência no entendimento, contudo, é diferente de qualquer ideia que normalmente usemos. Mas o que Anselmo quer dizer com “existência no entendimento” não é particularmente misterioso. Quando pensamos numa determinada coisa, por exemplo, na Fonte da Juventude, essa coisa, na perspectiva de Anselmo, existe no entendimento. Pelo que algumas coisas que estão em ambos os lados da nossa linha imaginária existem no entendimento, mas só as que estão à esquerda da linha existem na realidade. Haverá alguma coisa que não exista no entendimento? Sem dúvida. Porquanto há coisas, quer existentes quer inexistentes, nas quais nunca pensámos. Suponha-se agora que afirmo que a Fonte da Juventude não existe. Como para negar inteligivelmente a existência de algo tenho de ter esse algo em mente, segue-se, na perspectiva de Anselmo, que sempre que alguém afirma que algo não existe, esse algo existe no entendimento.2 Pelo que ao afirmar que a Fonte da Juventude não existe estou a pressupor que a Fonte da Juventude existe no entendimento. E ao afirmar que não existe afirmei (na perspectiva de Anselmo) que não existe na realidade. Isto significa que a minha afirmação simples de que a Fonte da Juventude não existe equivale à afirmação algo mais complexa de que a Fonte da Juventude existe no entendimento mas não na realidade — em resumo, que a Fonte da Juventude existe apenas no entendimento.
Tendo em conta o que se disse, podemos compreender por que insiste Anselmo que qualquer pessoa que ouve Deus, pensa em Deus, ou até mesmo nega a existência de Deus, está ainda assim comprometida com a perspectiva de que Deus existe no entendimento. Além disso, podemos compreender por que razão Anselmo trata aquilo a que chama “a afirmação do tolo”, de que Deus não existe, como a afirmação de que Deus existe apenas no entendimento — isto é, que Deus existe no entendimento, mas não na realidade.
No Monologium, Anselmo procurou provar que entre os seres que efectivamente existem há um que é o mais grandioso, o mais elevado e o melhor. Mas no Proslogium, Anselmo empenha-se em provar que entre as coisas que existem, há uma que não só é a mais grandiosa entre os seres existentes, mas é tal que nenhum ser concebível é mais grandioso. Temos de distinguir entre estas duas ideias: 1) um ser mais grandioso do que o qual nenhum outro existe, e 2) um ser mais grandioso do que o qual nenhum outro é concebível. Se as únicas coisas a existir fossem uma pedra, uma rã e um ser humano, a última destas, o ser humano, satisfaria a nossa primeira ideia mas não a segunda — pois podemos conceber um ser (um anjo ou Deus) mais grandioso do que um humano. A ideia que Anselmo tem de Deus, como a exprime no Proslogium, Capítulo 2, é a mesma que em 2 acima; é a ideia de “um ser mais grandioso do que o qual nada se pode conceber”. Penso que nos será mais fácil compreender o argumento de Anselmo se fizermos duas ligeiras alterações ao modo como ele exprimiu a sua ideia de Deus. No lugar da sua expressão colocarei o seguinte: “o ser mais grandioso do que o qual nenhum é possível”.3 Esta ideia diz que se um determinado ser é Deus, então nenhum ser possível pode ser mais grandioso do que aquele; ou, conversamente, se um dado ser é tal que é possível haver outro mais grandioso, então esse ser não é Deus. O que Anselmo se propõe então demonstrar é que o ser mais grandioso do que o qual nenhum outro é possível existe na realidade. Demonstrando isto, terá demonstrado que Deus, tal como ele o concebe, existe na realidade.
Mas o que entende Anselmo por mais grandioso? Será um edifício, por exemplo, mais grandioso do que um homem? Anselmo observa: “Mas não me refiro à grandiosidade física, o modo como um objecto material é grandioso, mas àquilo que é tanto mais grandioso quanto melhor ou mais digno é — a sabedoria, por exemplo”.4 Contraste-se a sabedoria com o tamanho. Anselmo afirma que a sabedoria é algo que contribui para a grandiosidade de uma coisa. Se algo passa a ter mais sabedoria do que antes (permanecendo as outras características na mesma), então esse algo tornou-se mais grandioso, melhor, mais digno do que antes. Anselmo afirma que a sabedoria é uma qualidade produtora de grandiosidade. Mas o mero facto de algo aumentar em tamanho (grandeza física) não torna esse algo melhor do que era. Pelo que o tamanho, ao contrário da sabedoria, não é uma qualidade produtora de grandiosidade. Por maior do que Anselmo entende melhor do que, superior a, ou mais digno do que, e considera que algumas características, como a sabedoria e a bondade moral, são produtoras de grandiosidade, na medida em que qualquer coisa que as tenha se torna uma coisa melhor do que seria se não as tivesse (mantendo-se na mesma as suas outras características).
Chegamos agora ao que podemos chamar a ideia crucial no argumento ontológico de Anselmo. Anselmo pensa que a existência na realidade é uma qualidade produtora de grandiosidade. Como devemos entender esta ideia? Será que Anselmo quer dizer que uma coisa que existe é mais grandiosa do que uma que não existe? Embora Anselmo não coloque esta questão nem lhe responda, é talvez razoável pensar que não queria dizer isto. Isto porque quando discute a sabedoria como uma qualidade produtora de grandiosidade, Anselmo tem o cuidado de não afirmar que qualquer coisa sábia é melhor do que qualquer coisa néscia; Anselmo reconhece que uma pessoa justa mas néscia pode ser melhor do que uma pessoa sábia mas injusta.5 Sugiro que Anselmo queria dizer que qualquer coisa que não existe mas podia ter existido (que está à direita da nossa linha mas poderia estar à esquerda) seria mais grandioso se tivesse existido (se estivesse à esquerda da nossa linha). Anselmo não está a comparar duas coisas diferentes (uma existente e outra inexistente), afirmando que a primeira é, portanto, mais grandiosa do que a segunda. Ao invés, está a falar acerca de uma única coisa e a chamar a atenção para o facto de que se não existe mas podia ter existido, então essa coisa seria mais grandiosa se tivesse existido. Usando a distinção que Anselmo faz entre a existência no entendimento e a existência na realidade, podemos exprimir do seguinte modo a ideia crucial do seu raciocínio: se algo existe apenas no entendimento, mas poderia ter existido na realidade, então poderia ser mais grandiosa. Como a Fonte da Juventude, por exemplo, existe apenas no entendimento mas, ao contrário do quadrado redondo, poderia existir na realidade, segue-se do princípio de Anselmo que a fonte da juventude poderia ser mais grandiosa.
Depois de termos visto algumas das ideias importantes em causa no argumento ontológico de Anselmo, podemos considerar o seu desenvolvimento gradual. Ao apresentar o argumento de Anselmo vou usar o termo Deus em lugar da expressão mais longa “o ser mais grandioso do que o qual nenhum outro é possível”; sempre que o termo Deus aparece devemos pensar nele apenas como uma abreviatura da expressão mais longa.
Como vimos, quem quer que tenha ouvido falar no ser mais grandioso do que o qual nenhum outro é possível está, na perspectiva de Anselmo, comprometido com a premissa 1.
Creio que Anselmo supõe a verdade da premissa 2 sem que o faça de modo explícito na sua argumentação. Ao afirmar 2, não pretendo sugerir que Deus não existe na realidade. Tudo o que se quer dizer é que, ao contrário do quadrado redondo, Deus é um ser possível.
Como vimos, esta é a ideia crucial no argumento ontológico de Anselmo. Pretende-se que seja um princípio geral que se aplica a qualquer coisa.
Os passos 1 a 3 constituem as premissas fundamentais do argumento ontológico de Anselmo. Destes três itens segue-se, segundo Anselmo, que Deus existe na realidade. Mas como se propõe Anselmo convencer-nos de que se aceitamos as premissas de 1 a 3, estamos comprometidos pelas regras da lógica a aceitar a sua conclusão de que Deus existe na realidade? Anselmo defende a sua conclusão apresentando o que se chama uma “demonstração por reductio ad absurdum”. Em vez de mostrar directamente que a existência de Deus se segue das premissas 1 a 3, Anselmo convida-nos a supor que Deus não existe (isto é, que a conclusão que ele deseja estabelecer é falsa) e então mostra como esta suposição, quando a combinamos com as premissas de 1 a 3, leva a um resultado absurdo, um resultado que não podia de modo algum ser verdadeiro porque é contraditório. Em resumo, com a ajuda das premissas 1 a 3, Anselmo mostra que a suposição de que Deus não existe se reduz a um absurdo. Uma vez que a suposição de que Deus não existe leva a um absurdo, tem de se rejeitar essa suposição, a favor da conclusão de que Deus existe.
Conseguirá Anselmo reduzir ao absurdo a crença do tolo, de que Deus não existe? A melhor maneira de responder a esta questão é seguir os passos do seu argumento.
Esta suposição, como vimos, é a maneira de Anselmo exprimir a crença do tolo de que Deus não existe.
O passo 5 segue-se dos passos 2, 4 e 3. Como 3, se for verdadeiro, se aplica a qualquer coisa, aplicar-se-á a Deus. O passo 3, portanto, implica que se Deus existe apenas no entendimento e poderia existir na realidade, então Deus podia ser mais grandioso do que é. Se é assim, então dados os passos 2 e 4, o passo 5 tem de ser verdadeiro. Porquanto o que o passo 3 afirma, quando aplicado a Deus, é que dados os passos 2 e 4, segue-se 5.
Seguramente que se Deus é tal que poderia logicamente ter sido mais grandioso, então Deus é um ser tal que é possível haver outro mais grandioso.
Estamos agora em condições de avaliar o argumento por redução ao absurdo de Anselmo. Mostrou-nos que se aceitamos os passos de 1 a 4 temos de aceitar o passo 6. Mas 6 é inaceitável; é o absurdo que Anselmo procurava. Isto porque ao substituir Deus no passo 6 pela expressão mais longa à qual serve de abreviação, vemos que 6 equivale à seguinte afirmação absurda:
Como os passos de 1 a 4 nos levam a uma conclusão obviamente falsa, se aceitarmos as premissas 1 a 3, as premissas fundamentais de Anselmo, como verdadeiras, então temos de rejeitar como falsa a premissa 4: a suposição de que Deus existe apenas no entendimento. Assim mostrámos que:
Mas uma vez que a premissa 1 nos diz que Deus existe no entendimento, e a premissa 8 nos diz que Deus não existe apenas aí, podemos inferir que:
O que dizer deste argumento? Na sua maioria, os filósofos que o ponderaram rejeitaram-no devido à convicção fundamental de que a partir da análise lógica de uma certa ideia ou conceito nunca podemos determinar se existe na realidade qualquer coisa que satisfaça essa ideia ou conceito.
Podemos examinar, por exemplo, a ideia de um elefante ou a ideia de um unicórnio, mas é apenas por meio da experiência que temos do mundo que podemos determinar se existem coisas que satisfaçam a nossa primeira ideia e não a segunda. Anselmo, contudo, pensa que o conceito de Deus é absolutamente único; pensa que a partir de uma análise deste conceito se pode determinar que existe na realidade um ser que o satisfaz. Além disso, Anselmo apresenta-nos um argumento para mostrar que isso se pode fazer no caso da ideia de Deus. Podemos, como é óbvio, rejeitar simplesmente o seu argumento por violar a convicção fundamental acima indicada. Muitos críticos, contudo, procuraram provar de um modo mais directo que o argumento de Anselmo é mau, e chamar a atenção para o passo particular que está incorrecto. No que se segue, examinaremos as três principais objecções que foram apresentadas pelos críticos do argumento.
A primeira crítica importante foi apresentada por um contemporâneo de Anselmo, um monge de nome Gaunilo, que escreveu uma objecção intitulada “Em Defesa do Tolo”.7 Gaunilo procurou provar que o raciocínio de Anselmo é incorrecto, aplicando-o a coisas que não são Deus, coisas que sabemos que não existem. Gaunilo tomou como exemplo a ilha mais grandiosa do que a qual nenhuma outra é possível. Não existe realmente qualquer ilha assim. Mas, argumenta Gaunilo, se o raciocínio de Anselmo estivesse correcto, podíamos mostrar que tal ilha existe realmente. Como existir é mais grandioso do que não existir, se a ilha mais grandiosa do que a qual nenhuma outra é possível não existe, então essa é uma ilha mais grandiosa do que a qual é possível haver outra. Mas é impossível que a ilha mais grandiosa do que a qual nenhuma outra é possível seja uma ilha mais grandiosa do que a qual é possível haver outra. Portanto, a ilha mais grandiosa do que qual nenhuma outra é possível tem de existir. Acerca deste argumento, comenta Gaunilo:
Se um homem tentasse mostrar-me através de tal raciocínio que esta ilha existe realmente e que não se devia duvidar mais da sua existência, das duas, uma: ou pensava que ele estava a brincar, ou ficaria sem saber qual de nós era o maior tolo: eu próprio, supondo que aceitava esta prova; ou ele, se supusesse que tinha estabelecido com alguma certeza a existência desta ilha.8
A estratégia de Gaunilo é clara. Usando o mesmo raciocínio que Anselmo usa no seu argumento, podemos provar a existência de coisas que sabemos que não existem. Portanto, o raciocínio de Anselmo na sua prova da existência de Deus tem de estar incorrecto. Na sua resposta a Gaunilo, Anselmo insistiu em que o seu raciocínio se aplica apenas a Deus e não pode ser usado para estabelecer a existência de outras coisas além de Deus. Infelizmente, Anselmo não explicou ao certo por que razão o seu raciocínio não se pode aplicar a coisas como a ilha de Gaunilo.
Em defesa de Anselmo, e contra a objecção de Gaunilo, deve-se observar que a objecção supõe que a ilha de Gaunilo é uma coisa possível. Mas isto exige que acreditemos que uma coisa finita e limitada (uma ilha) possa ter perfeições ilimitadas. E não é de todo em todo claro que isto seja possível. Tente-se pensar, por exemplo, num jogador de hóquei mais grandioso do que o qual nenhum outro é possível. Quão depressa teria esse jogador de patinar? Quantos golos teria tal jogador de marcar num jogo? Quão rápido teria de arremessar o disco? Será que este jogador poderia alguma vez cair, ser bloqueado, ou sofrer uma penalidade? Embora a expressão “O jogador de hóquei mais grandioso do que o qual nenhum outro é possível” pareça ter significado, assim que tentamos obter uma ideia clara de como seria tal ser, descobrimos que não podemos sequer formar uma ideia coerente. Isto porque nos pede para pensar numa coisa finita e limitada — um jogador de hóquei ou uma ilha — para depois pensarmos que essa coisa exibe perfeições infinitas e ilimitadas. Talvez então, visto que o raciocínio de Anselmo se aplica apenas a coisas possíveis, Anselmo possa rejeitar que seja aplicável à ilha de Gaunilo, com base em que a ilha mais grandiosa do que a qual nenhuma é possível é, como o quadrado redondo, uma coisa impossível.
A objecção de longe mais famosa ao argumento ontológico foi formulada por Immanuel Kant no século XVIII. Segundo esta objecção, o erro contido no argumento é a afirmação, implícita na premissa 3, de que a existência é uma qualidade ou predicado que torna qualquer coisa mais grandiosa. Esta afirmação tem duas partes: 1) a existência é uma qualidade ou predicado e 2) a existência, como a sabedoria e ao contrário da grandeza física, é uma qualidade ou predicado produtor de grandiosidade. Pode-se aceitar 1 mas objectar a 2. A objecção que Kant tornou famosa, contudo, dirige-se a 1. Segundo esta objecção, a existência não é de modo algum um predicado. Portanto, como o argumento de Anselmo implica, na terceira premissa, que a existência é um predicado, tem de se rejeitar o argumento.
O que se quererá dizer com a doutrina filosófica de que a existência não é um predicado? A ideia central nesta doutrina diz respeito ao que fazemos quando atribuímos uma certa qualidade ou predicado a uma coisa, como, por exemplo, quando dizemos que uma mulher que mora ao nosso lado é inteligente, tem um metro e oitenta de altura, ou é magra. Em cada caso parece que afirmamos ou pressupomos que existe uma mulher que mora ao lado, atribuindo-lhe depois um certo predicado — “inteligente”, “com um metro e oitenta de altura” ou “magra”. E o que muitos defensores da doutrina de que a existência não é um predicado defendem é que isto é uma característica geral da predicação. Defendem que quando atribuímos uma qualidade ou predicado a uma coisa, afirmamos ou pressupomos que a coisa existe e então atribuímos-lhe o predicado. Se isto for verdadeiro, então é claro que a existência não pode ser um predicado que possamos atribuir ou negar a algo. Visto que se fosse um predicado, então quando afirmamos que algo existe estaríamos a afirmar ou a pressupor que existe, passando então a predicar a sua existência. Por exemplo, se a existência fosse um predicado, então ao afirmar “Os tigres existem” estaríamos a afirmar ou a pressupor que os tigres existem, para depois predicar a sua existência. Além disso, se a existência fosse um predicado, quando afirmássemos “os dragões não existem”, estaríamos a afirmar ou a pressupor que os dragões existem, para depois negar que a existência se lhes aplique. Resumindo, se a existência fosse um predicado, a declaração existencial afirmativa “Os tigres existem” seria redundante, e a declaração existencial negativa “Os tigres não existem” seria contraditória. Mas é óbvio que “Os tigres existem” não é redundante e que “Os dragões não existem” é verdadeira e, portanto, não é contraditória. Segundo os defensores da objecção de Kant, isto mostra que a existência não é um predicado genuíno.
Segundo os defensores da objecção anterior, quando afirmamos que os tigres existem e que os dragões não existem não afirmamos que certas coisas (os tigres) têm um predicado especial ao passo que outras (os dragões) não têm: a existência. Ao invés, afirmamos algo acerca do conceito de tigre e do conceito de dragão. No primeiro caso afirmamos que há algo no mundo ao qual o conceito de tigre se aplica; no segundo, afirmamos que nada há no mundo ao qual o conceito de dragão se aplique.
Embora esta objecção ao argumento ontológico tenha tido ampla aceitação, é duvidoso que seja uma refutação conclusiva do argumento. Pode ser verdadeiro que a existência não é um predicado; que ao afirmar a existência de uma coisa não estamos a atribuir um determinado predicado ou atributo a essa coisa. Mas os argumentos apresentados a favor desta perspectiva parecem assentar em afirmações incorrectas ou incompletas acerca da natureza da predicação. Por exemplo, o argumento que enunciámos assenta na afirmação de que quando atribuímos um predicado a qualquer coisa afirmamos ou pressupomos que essa coisa existe. Mas esta afirmação parece incorrecta. Ao afirmar que o Dr. Doolittle é um zoófilo parece que estou a atribuir o predicado zoófilo ao Dr. Doolittle, mas ao fazê-lo não estou seguramente a afirmar ou a pressupor que o Dr. Doolittle existe efectivamente. Embora não exista, é verdade que o Dr. Doolittle é um zoófilo. O que é um facto é que podemos falar acerca de muitas coisas que não existem e nunca existiram, e atribuir predicados a essas coisas. Merlin, por exemplo, como Houdini, era um mágico, embora Houdini tenha existido e Merlin não. Se, como estes exemplos sugerem, é falso que sempre que atribuímos um predicado a alguma coisa afirmamos ou pressupomos que essa coisa existe, então precisaremos de um argumento melhor para defender a doutrina de que a existência não é um predicado. Há dúvidas, contudo, sobre se alguém terá conseguido apresentar um argumento realmente conclusivo a favor da perspectiva de que a existência não é um predicado.9
Uma terceira objecção ao argumento ontológico põe em causa a premissa de que Deus poderia existir na realidade (que Deus seja um ser possível). Como vimos, esta premissa afirma que “o ser mais grandioso do que o qual nenhum outro é possível” não é um objecto impossível. Mas será isto verdadeiro? Considere-se a série dos números naturais — 1, 2, 3, 4, etc. Sabemos que qualquer número inteiro nesta série, por maior que seja, é tal que é possível outro número maior. Portanto, “o número natural maior do que o qual nenhum outro é possível” é um objecto impossível. Talvez isto também se aplique a “o ser mais grandioso do que o qual nenhum outro é possível”. Isto é, talvez seja possível, independentemente da grandiosidade de um ser, haver outro mais grandioso. Se assim for, portanto, o Deus de Anselmo não seria um objecto possível, assim como não o é “o número natural maior do que o qual nenhum outro é possível”. O simples facto de haver graus de grandiosidade, contudo, não nos permite concluir que o Deus de Anselmo é como “o número natural maior do que o qual nenhum outro é possível”. Os ângulos, por exemplo, têm graus de tamanho — um ângulo pode ser maior do que outro — mas não é verdadeiro que independentemente do tamanho de um ângulo, seja possível haver outro maior. É logicamente impossível que um ângulo exceda a dimensão de quatro ângulos rectos. A noção de ângulo, ao contrário da noção de número natural, implica um grau de tamanho que é impossível ultrapassar. Será o Deus de Anselmo como o maior número natural, e portanto impossível, ou como o maior ângulo, e portanto possível? Alguns filósofos argumentaram que o Deus de Anselmo é impossível.10 Mas os argumentos a favor desta conclusão não são persuasivos. Talvez por isso se interprete melhor esta objecção não como prova de que o Deus de Anselmo é impossível, mas como o levantar da questão de estarmos ou não em condições de saber se “o ser mais grandioso do que o qual nenhum outro é possível” é um objecto possível. Pois o argumento de Anselmo não pode ser uma prova eficaz da existência de Deus a menos que as suas premissas sejam não só verdadeiras, mas também que se saiba que são verdadeiras. Logo, se não sabemos se o Deus de Anselmo é um objecto possível, então o seu argumento não pode provar-nos a existência de Deus — não nos permite saber que Deus existe.
Demos uma vista de olhos ao argumento de Anselmo e às três principais objecções que outros filósofos lhe levantaram. Nesta última secção apresento uma crítica algo diferente ao argumento, uma crítica sugerida pela convicção fundamental que se indicou antes — nomeadamente, que da mera análise lógica de uma certa ideia ou conceito, nunca podemos determinar que existe alguma coisa na realidade que satisfaça essa ideia ou conceito.
Suponha-se que alguém se nos dirige e diz:
Proponho-me definir o termo Deus como um ser absolutamente perfeito, que existe. Uma vez que não pode ser verdadeiro que um ser absolutamente perfeito, que existe, não exista, não pode ser verdadeiro que Deus, como o defini, não exista. Portanto, Deus tem de existir.
Isto parece um argumento ontológico muito simples. Começa com uma ideia particular ou conceito de Deus e termina concluindo que Deus, concebido desse modo, tem de existir. O que podemos responder a isto? Podemos começar por objectar a esta definição de Deus, afirmando 1) que só se pode definir um termo com predicados e 2) que a existência não é um predicado. Mas suponha-se que o nosso amigo não se deixa impressionar por esta resposta — quer porque pensa que ninguém explicou exaustivamente o que é um predicado, nem provou que a existência não é um predicado, quer porque pensa que qualquer pessoa pode definir uma palavra do modo como bem lhe apetece. Podemos aceitar que o nosso amigo defina a palavra Deus como bem lhe apeteça e esperar ainda assim mostrar que dessa definição não se segue que existe efectivamente algo a que este conceito de Deus se aplica? Penso que sim. Convidemo-lo primeiro, contudo, a considerar alguns conceitos além do seu peculiar conceito de Deus.
Vimos que o termo mágico se pode aplicar tanto a Houdini como a Merlin, ainda que o primeiro tenha existido ao passo que o segundo nunca existiu. Observando que o nosso amigo usou que existe como parte da sua definição de Deus, suponha-se que concordamos com ele em poder definir uma palavra do modo como nos apetecer, introduzindo, consequentemente, as seguintes palavras com as seguintes definições:
Aqui introduzimos duas palavras e usámos que existe e inexistente nas suas definições. Segue-se agora algo interessante do facto de que existe fazer parte da nossa definição de magião. Pois embora sendo verdadeiro que Merlin era um mágico, não é verdadeiro que Merlin fosse um magião. E segue-se algo interessante de termos incluído inexistente na definição de mágio. Pois embora sendo verdadeiro que Houdini foi um mágico, não é verdadeiro que foi um mágio. Houdini foi um mágico e um magião, mas não um mágio, ao passo que Merlin era um mágico e um mágio, mas não um magião.
Acabámos de ver que introduzir que existe ou inexistente na definição de um conceito tem uma consequência muito importante. Se introduzimos que existe na definição de um conceito, segue-se que nenhuma coisa inexistente pode exemplificar esse conceito. E se introduzimos inexistente na definição de um conceito, segue-se que nenhuma coisa existente pode exemplificar esse conceito. Nenhuma coisa inexistente pode ser um magião, e nenhuma coisa existente pode ser um mágio.
Mas terá alguma coisa existente de exemplificar o conceito de magião? Não! Do facto de se incluir que existe na definição de magião não se segue que algo existente é um magião — tudo o que se segue é que nenhuma coisa inexistente é um magião. Se não existissem quaisquer mágicos, nada haveria a que se pudesse aplicar o conceito de magião. Sendo assim, é óbvio que não se segue meramente da nossa definição de magião que algo existente é um magião. Só se existirem mágicos é que será verdadeiro que uma coisa existente é um magião.
Estamos agora em condições de ajudar o nosso amigo a ver que, do mero facto de se definir Deus como ser absolutamente perfeito que existe, não se segue que há um ser existente que seja Deus. Segue-se algo interessante desta definição — nomeadamente, que nenhum ser inexistente pode ser Deus. Mas o facto de haver ou não algo existente que seja Deus depende inteiramente de haver ou não algo existente que seja um ser absolutamente perfeito. Se não existe qualquer ser absolutamente perfeito, nada haverá a que se possa aplicar este conceito de Deus. Sendo assim, é óbvio que não se segue meramente desta definição de Deus que há algo existente que seja Deus. Só se existir um ser absolutamente perfeito é que será verdade que Deus, como o nosso amigo o concebe, existe.
Pode-se agora seguir as implicações destas considerações para o engenhoso argumento de Anselmo. Anselmo imagina Deus como um ser mais grandioso do que o qual nenhum outro é possível. Afirma então que a existência é uma qualidade produtora de grandiosidade; qualquer coisa que a tenha é mais grandiosa do que seria se lhe faltasse a existência. É então óbvio que nenhuma coisa inexistente pode exemplificar o conceito anselmiano de Deus. Porquanto se supomos que algo inexistente exemplifica o conceito anselmiano de Deus e se também supomos que esse algo inexistente poderia existir na realidade (ou seja, se supomos que é algo possível), então supomos que esse algo inexistente 1) poderia ser mais grandioso e 2) é, ainda assim, uma coisa mais grandiosa do que a qual não é possível haver outra. Até aqui o raciocínio de Anselmo é, segundo penso, irrepreensível. Mas o que se segue daí? Tudo o que daí se segue é que nenhuma coisa inexistente pode ser Deus (como Anselmo o imagina). Tudo o que se segue é que dado o conceito anselmiano de Deus, a proposição “Alguma coisa inexistente é Deus” não pode ser verdadeira. Mas, como vimos, isto também acontece com a proposição “Alguma coisa inexistente é um magião”. Falta mostrar que alguma coisa existente exemplifica o conceito anselmiano de Deus. O que realmente se segue deste raciocínio é que só algo que exista efectivamente pode logicamente exemplificar o seu conceito de Deus. E esta conclusão não é desinteressante. Mas do simples facto de que nada senão algo existente poderia exemplificar o conceito anselmiano de Deus não se segue que algo existente exemplifica efectivamente o seu conceito de Deus — do mesmo modo que não se segue do simples facto de nenhuma coisa inexistente poder ser um magião que alguma coisa existente é um magião.11
Há, contudo, uma dificuldade importante nesta crítica ao argumento de Anselmo. Esta dificuldade surge quando atentamos na sua afirmação implícita de que Deus é uma coisa possível. Para ver ao certo o que é esta dificuldade, regressemos à ideia de coisa possível. Uma coisa possível, segundo determinámos, é qualquer coisa que está ou à esquerda da nossa linha imaginária ou que logicamente poderia estar aí. As coisas possíveis, então, serão todas as que, ao contrário do quadrado redondo, não são impossíveis. Suponha-se que concedemos a Anselmo que Deus, como ele o concebe, é uma coisa possível. É claro que o mero conhecimento de que algo é uma coisa possível não permite concluir que essa é uma coisa existente. Visto que muitas coisas possíveis, como a Fonte da Juventude, não existem. Mas se algo é uma coisa possível, então ou é uma coisa existente ou uma coisa inexistente. Pode-se dividir exaustivamente o conjunto das coisas possíveis em coisas possíveis que existem efectivamente e coisas possíveis que não existem. Portanto, se o Deus de Anselmo é uma coisa possível, ou é uma coisa existente ou uma coisa inexistente. Concluímos, contudo, que nenhuma coisa inexistente pode ser o Deus de Anselmo; portanto, parece que temos de concluir com Anselmo que alguma coisa efectivamente existente exemplifica de facto o seu conceito de Deus.
Para ver a solução desta importante dificuldade precisamos de regressar a um exemplo anterior. Consideremos mais uma vez a ideia de um magião, um mágico existente. Por acaso têm existido mágicos — Houdini, o Grande Blackstone, e outros. Mas, obviamente, poderia não ter sido assim. Suponha-se, momentaneamente, que nunca tinham existido quaisquer mágicos. O conceito de “mágico” teria ainda aplicação, pois continuaria a ser verdadeiro que Merlin era um mágico. E quanto ao conceito de “magião”? Será que esse conceito identificaria qualquer objecto possível? Não! Pois nenhuma coisa inexistente poderia exemplificar o conceito de “magião”. E supondo que nunca existiram mágicos, nenhuma coisa existente exemplificaria o conceito de “magião”.12 Teríamos então o conceito coerente de “magião”, que não seria exemplificado por qualquer objecto possível. Pois se todos os objectos possíveis que são mágicos fossem coisas inexistentes, nenhum deles seria um magião; e como nenhum objecto possível que existe seria um mágico, nenhum seria um magião. Teríamos então o conceito coerente e consistente de “magião”, que na verdade não é exemplificado por qualquer objecto possível. Formulada assim, a nossa conclusão parece paradoxal, visto que nos inclinamos a pensar que só conceitos contraditórios, como “quadrado redondo”, não são exemplificados por quaisquer coisas possíveis. A verdade, contudo, é que quando que existe está incluído num certo conceito ou é por ele implicado, pode acontecer que nenhum objecto possível exemplifique de facto esse conceito. Pois nenhum objecto possível que não exista exemplificará um conceito como “magião”, que inclui que existe; e se não há coisas existentes que exemplifiquem as outras características incluídas no conceito — por exemplo, “ser um mágico” no caso do conceito “magião” — então nenhum objecto possível que exista exemplificará o conceito. Dito da forma mais simples: ao perguntar se qualquer coisa possível é ou não um magião, a resposta dependerá inteiramente de haver ou não quaisquer coisas existentes que sejam mágicos. Se nenhuma coisa existente é um mágico, então nenhuma coisa possível é um magião. Um objecto possível só é um magião se alguma coisa efectivamente existente for um mágico.13
Aplicando estas considerações ao argumento de Anselmo, podemos ver a solução da nossa importante dificuldade. Dado o conceito anselmiano de Deus e o seu princípio de que a existência é uma qualidade produtora de grandiosidade, segue-se de facto que só algo efectivamente existente poderia logicamente exemplificar o seu conceito de Deus. Mas argumentámos que não se segue, a partir destas considerações apenas, que Deus existe efectivamente — que alguma coisa existente exemplifica o conceito anselmiano de Deus. A dificuldade com que nos deparámos, contudo, é que ao adicionar a premissa de que Deus é uma coisa possível, ou seja, a premissa de que algum objecto possível exemplifica o conceito anselmiano de Deus, segue-se realmente que Deus existe efectivamente: que algo efectivamente existente exemplifica o seu conceito de Deus. Pois se um objecto possível exemplifica o seu conceito de Deus, esse objecto ou é uma coisa existente ou uma coisa inexistente. Mas uma vez que nenhuma coisa inexistente pode exemplificar o conceito anselmiano de Deus, segue-se que o objecto possível que exemplifica o seu conceito de Deus tem de ser um objecto possível que exista efectivamente. Portanto, dado 1) o conceito anselmiano de Deus, 2) o seu princípio de que a existência é uma qualidade produtora de grandiosidade e 3) a premissa de que Deus, como Anselmo o concebe, é uma coisa possível, segue-se de facto que o Deus de Anselmo existe efectivamente.
Penso que podemos ver que ao conceder a Anselmo a premissa de que Deus é uma coisa possível concedemos muito mais do que pretendíamos. Pensámos conceder apenas que o conceito anselmiano de Deus, ao contrário do conceito de quadrado redondo, não é contraditório nem incoerente. Mas, sem nos apercebermos, estávamos de facto a conceder muito mais do que isto, como se tornou visível quando considerámos a ideia de “magião”. Nada há de contraditório na ideia de um magião, um mágico que existe. Mas ao afirmar que um magião é uma coisa possível, estamos, como vimos, a sugerir directamente que alguma coisa existente é um mágico. Pois se nenhuma coisa existente é um mágico, o conceito de magião não se aplicará de modo algum a qualquer objecto possível. A mesma ideia se aplica ao Deus de Anselmo. Uma vez que o conceito anselmiano de Deus não se pode logicamente aplicar a uma coisa inexistente, os únicos objectos possíveis aos quais se poderá aplicar são objectos possíveis que existam efectivamente. Portanto, ao conceder que o Deus de Anselmo é uma coisa possível, não estamos a conceder apenas que a sua ideia de Deus não é incoerente nem contraditória. Suponha-se, por exemplo, que todo o ser existente tem uma imperfeição que podia não ter tido. Sem nos apercebermos, estávamos a negar isto ao conceder que o Deus de Anselmo é um ser possível. Pois se todo o ser existente tem um defeito que podia não ter tido, então todo o ser existente podia ser mais grandioso. Mas se todo o ser existente podia ser mais grandioso, então o conceito anselmiano de Deus não se aplicará a qualquer objecto possível. Portanto, se concedemos a Anselmo o seu conceito de Deus e o seu princípio de que a existência é uma qualidade produtora de grandiosidade, então ao conceder que Deus, como Anselmo o concebe, é um ser possível, estaremos a conceder muito mais do que a coerência do seu conceito de Deus. Estaremos a conceder, por exemplo, que uma coisa existente é tão perfeita quanto possível. Pois a verdade é que só se alguma coisa existente for tão perfeita quanto possível é que o Deus de Anselmo será uma coisa possível.
A nossa última crítica ao argumento de Anselmo é apenas esta. Ao conceder que o Deus de Anselmo é uma coisa possível, estamos de facto a conceder que o Deus de Anselmo existe efectivamente. Mas como o objectivo do argumento era provar que o Deus de Anselmo existe, não se pode pedir que concedamos como premissa uma afirmação que quase equivale à conclusão que se tem de provar. O conceito anselmiano de Deus pode ser coerente e o seu princípio de que a existência é uma qualidade produtora de grandiosidade pode ser verdadeiro. Mas tudo o que daqui se segue é que nenhuma coisa inexistente pode ser o Deus de Anselmo. Se a tudo isto acrescentarmos a premissa de que Deus é uma coisa possível, seguir-se-á que Deus existe efectivamente. Mas a premissa adicional não afirma apenas que o conceito anselmiano de Deus não é incoerente nem contraditório. Equivale à afirmação de que um ser existente é sumamente grandioso. E como em parte é isto que o argumento procura provar, cai em petição de princípio: pressupõe a ideia cuja verdade devia provar.
Se a crítica acima está correcta, o argumento de Anselmo não pode ser uma prova da existência de Deus. Contudo, isto não equivale a afirmar que o argumento não é um trabalho de génio. Talvez nenhum outro argumento na história do pensamento tenha levantado tantas questões filosóficas fundamentais e estimulado tanta reflexão. Mesmo não conseguindo ser uma prova da existência de Deus, continuará a ser uma das maiores façanhas do intelecto humano.