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Crítica
16 de Julho de 2015   Filosofia da religião

Argumentos do desígnio

Richard Swinburne
Tradução de Álvaro Nunes

As razões para acreditarmos que há um Deus existem desde que existem pessoas que sustentam esta crença; e os filósofos tentaram transformar estas razões em “argumentos” com uma forma mais rigorosa desde que existem filósofos. O meu ponto de vista é que quando estes argumentos são articulados da forma correcta (i.e. de uma forma análoga à dos argumentos da ciência ou da história) e tomados em conjunto, constituem uma defesa poderosa e cumulativa da existência de Deus.

Parece-me que entre os argumentos mais fortes a favor da existência de Deus, estão duas formas do argumento do desígnio — a que chamarei o argumento da ordem temporal e o argumento da ordem espacial. O argumento da ordem temporal começa por chamar a atenção para o facto de que em todo o tempo e espaço possivelmente infinitos, os objectos materiais comportam-se da forma simples codificada pelas leis científicas.

Podemos ainda não saber o que são exactamente as leis mais fundamentais da natureza — talvez sejam as equações de campo da teoria da relatividade geral, ou talvez as leis da teoria da grande unificação ou de uma teoria ainda maior a ser formulada. Dizer que essas leis regem a matéria é precisamente dizer que todo o pedaço de matéria, todo o neutrão, protão e electrão em todo o espaço e tempo infinitos comportam-se exactamente da mesma maneira (i.e. de acordo com exactamente as mesmas leis fundamentais). Isto é extraordinário!

É claro que isto não poderá ser sempre explicado cientificamente — porque a explicação científica da operação de uma lei natural consiste em mostrar que é uma consequência de algumas leis ainda mais fundamentais — explicamos a operação das leis da queda de Galileu mostrando que são uma consequência, para as circunstâncias particulares da Terra, das leis do movimento de Newton; e poderemos vir a ser capazes de explicar a operação das leis de Einstein pelas da teoria da grande unificação. Mas o meu interesse é pela operação das leis mais fundamentais de todas. Ou a existência de tais leis é um facto bruto e inexplicável, ou tem de ser explicada por um padrão de explicação ligeiramente diferente do científico.

A segunda forma de argumento — o argumento da ordem espacial — chama a nossa atenção para a complexa construção das plantas, dos animais e dos seres humanos. Estes estão organizados de modo a serem capazes de apanhar a comida a que o seu aparelho digestivo está adaptado, a escapar dos predadores mais preparados para apanhá-los, a criarem-se e a reproduzirem-se — são como máquinas muito complicadas. Ora, como é óbvio, há uma explicação bem conhecida de tudo isto em termos de evolução por selecção natural. Há muito tempo, diz a história, existiram organismos muito simples, e tiveram descendentes que diferiram dos progenitores de várias formas (alguns sendo maiores, outros menores, alguns mais simples e alguns mais complexos do que os seus progenitores). Os mais bem adaptados à sobrevivência (e muitas vezes a complexidade de organização fornece uma vantagem selectiva) fizeram-no e por sua vez produziram descendentes com características que diferem ligeiramente das suas em direcções aleatórias; e foi assim que as plantas, os animais e os seres humanos complexos evoluíram. Esta história é de certeza basicamente correcta. Mas por que começaram a existir organismos simples? Presumivelmente porque a matéria-energia na altura do “Big Bang”, quando o Universo (ou de alguma forma o seu estado actual) começou há quinze biliões de anos tinha precisamente a quantidade, densidade e velocidade inicial para conduzir com o tempo à evolução de organismos. E por que há no universo leis da evolução? Isto é, leis que provocam a mutação aleatória dos genes dos animais, que levam a que os animais produzam muitos descendentes, etc.? Presumivelmente porque estas leis derivam da leis fundamentais da natureza. Apenas um determinado tipo de disposição crítica da matéria e determinados géneros de leis da natureza darão origem a tais organismos. Alguns trabalhos científicos recentes sobre o “ajuste” do Universo mostrou que a matéria inicial e as leis da natureza tiveram de ter de facto características muito, muito especiais para que os organismos pudessem evoluir. Por exemplo, o Big Bang teve de ser exactamente do tamanho certo — se tivesse sido ligeiramente maior, os quanta de energia ter-se-iam afastado entre si demasiado depressa para que a matéria se pudesse condensar nas galáxias, estrelas e planetas e assim permitir que os organismos evoluam. Se o Big Bang tivesse sido ligeiramente menor, o universo teria sucumbido antes de ser suficientemente frio para que a química dos elementos se formasse e assim permitir que os organismos evoluam. Se as leis da natureza tivessem a forma actual, mas as constantes físicas que entram nelas tivessem valores ligeiramente diferentes dos actuais (ou se tivessem tido uma das muitas outras formas diferentes), também não teria havido evolução. É, assim, extraordinário que as condições iniciais e as leis estivessem tão “ajustadas” que permitissem a produção das plantas, dos animais e dos seres humanos! Uma vez mais, isto não só não tem explicação científica, como, devido à própria natureza da ciência, nunca poderá tê-la. A ciência não poderá explicar por que razão as leis básicas da natureza são como são, nem porque aquando do Big Bang (ou perpetuamente, se não houve começo) tinham as características que tinham. Tudo isto é donde a ciência começa, é o ponto de partida para a ciência explicar outras coisas. Daí que, uma vez mais, ou estes são factos brutos e inexplicáveis, ou têm de ser explicados por um padrão de explicação ligeiramente diferente do científico.

Felizmente existe um padrão destes que usamos constantemente na explicação dos fenómenos mundanos. Chamo-lhe explicação pessoal. Quando explicamos o facto de o livro estar na mesa, ou de as palavras destas frases estarem no meu papel, explicamo-los em termos da acção de uma pessoa com capacidades para mudar as coisas e um propósito que procura realizar desse modo. As palavras que estão no papel têm de ser explicadas em termos de serem causadas por uma pessoa (eu) com uma capacidade de mover o meu corpo de certos modos (i.e. escrever), e um propósito (ter um artigo para mandar ao editor). As explicações científicas postulam com frequência inobserváveis (e.g. protões e electrões) para explicar os dados observáveis; e os fundamentos para a suposição que fazem é que a hipótese explicativa é simples e leva-nos a esperar com alguma probabilidade os dados que de outra forma não esperaríamos. As explicações pessoais em termos de pessoas inobserváveis têm de ser aceites por razões análogas. A simplicidade de uma hipótese consiste em postular poucas entidades com poucas propriedades simples.

Os dados inexplicáveis pela ciência para os quais chamei a atenção — o comportamento uniforme dos objectos de acordo com as leis da natureza, e o carácter especial dessas leis e das condições iniciais (ou limite) do universo — são facilmente explicáveis em termos de um Deus, omnipotente (todo-poderoso), omnisciente (conhece tudo) e perfeitamente livre. Está em actividade constante, fazendo mover as estrelas e os átomos de forma regular (tal como podemos movimentar os nossos corpos de forma regular nos padrões de uma dança), e de modo a que, em conjunto com a matéria primeva que ele criou, dar origem aos animais e aos seres humanos. Sendo omnipotente, pode fazê-lo. Sendo omnisciente, verá uma boa razão para fazê-lo. Um mundo que evolui regularmente é bonito, e os seres humanos que surgirão podem eventualmente aprender como funciona, o que só poderão fazer se houver leis da natureza simples, que entendam e possam depois até certo ponto escolher como dar forma ao mundo para o bem ou para o mal. É bom que existam seres humanos desempenhando um papel no processo de criação. Deus, sendo perfeitamente livre, não será impedido por forças irracionais de criar o que vê ser bom.

Diz-se às vezes que sendo as leis da natureza como são, e sendo as condições iniciais como são no nosso universo, este seria explicado se existisse um trilião de outros universos com leis e condições iniciais diferentes. Seria então muito provável que existisse um universo em que estes factores fossem exactamente os correctos para a evolução dos animais e dos seres humanos. Mas seria o cúmulo da irracionalidade postular um trilião de universos (por oposição a um Deus) a fim de explicar o nosso universo, a menos que existam características particulares do nosso universo que sejam melhor explicadas por uma super-teoria que tenha como consequência o trilião de universos. Mas mesmo tal super-teoria teria de postular condições-limite muito especiais para o super-universo de universos e super-leis da natureza muito especiais, que tivessem como consequência a evolução de uma diversidade tal de universos que tornasse muito provável que pelo menos num houvesse a evolução da vida. A maior parte das super-teorias (para além de serem muito complicadas) não terão essa consequência. Assim temos o problema de saber precisamente por que o super-universo tinha as leis da natureza e as condições-limite que tinha. E assim uma vez mais, quer se trate de um universo ou de um super-universo, ou a sua ordem e o seu carácter “ajustado” são factos brutos e inexplicáveis ou têm de ser explicados por um padrão de explicação ligeiramente diferente do científico.

A hipótese do teísmo é muito simples. Postula um ser pessoal, e não muitos. As pessoas são seres com poderes para mudar o mundo, conhecimento de como fazê-lo, e algum grau de liberdade na forma de fazê-lo. Deus é postulado como um género muito simples de pessoa — tendo graus infinitos de poder, conhecimento e liberdade; ou, pondo negativamente, limite zero ao seu poder, conhecimento e liberdade. Os cientistas postulam sempre graus infinitos (ou zero) de propriedades como a hipótese mais simples, se o podem fazer consistentemente com os dados. Postulam que os fotões têm massa em repouso zero, em vez de alguma massa em repouso muito, muito pequena que iria prever os dados igualmente bem; e costumavam postular que a força da gravidade tinha velocidade infinita até que outras considerações os obrigaram a aceitar uma hipótese diferente. Postular Deus é postular um ser de um género muito simples, e esta hipótese faz que não seja improvável encontrar os dados para que chamámos a atenção.

Supor que os dados são apenas factos brutos e inexplicáveis parece, contudo, muitíssimo irracional. Supor simplesmente que é uma grande coincidência que cada pedaço de matéria por todo o universo se comporte exactamente da mesma forma é terrivelmente irracional — e ainda mais quando há uma hipótese rival simples que nos leva a esperar esses dados, e a esperar que o mundo esteja ajustado para produzir os animais e os seres humanos. A razão conduz-nos inevitavelmente da natureza para a natureza de Deus.

Richard Swinburne
Think (Primavera de 2002), pp. 49-54. Uma versão anterior deste artigo foi publicada no Times Higher Education Supplement.
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ISSN 1749-8457