Precisamos de mais um texto introdutório em filosofia da ciência? Esta questão vem à tona a cada novo lançamento na área, demandando de nós uma avaliação criteriosa dos inúmeros Introductory Readings que chegam ao mercado editorial ano após ano. Escrita pelo filósofo Samir Okasha e publicada em 2002, esta obra destaca-se nesse contexto como uma ótima opção para iniciantes e estudantes universitários em ciclos introdutórios.
Este livro faz parte da bem-sucedida série de livros introdutórios editada pela Oxford University Press desde 1995. O objetivo dessa série é fornecer um tratamento acessível, conciso e de alta qualidade aos mais variados temas. Dessa forma, não é gratuito que este livro seja tão claro, fluído, ainda que condensado e abrindo mão de algumas tecnicidades, já que procura estimular os leitores e fornecer um panorama relativamente coeso e crítico da área. O texto privilegia o confronto argumentativo e convida o leitor a participar dele a todo momento, lançando mão de intuições e exemplos que conferem grande familiaridade aos problemas filosóficos tratados. Okasha é professor de Filosofia da Ciência na Universidade de Bristol e, apesar da curta carreira, já tem uma significativa e premiada produção em diferentes ramos da Filosofia, notadamente em filosofia da biologia. A relativa versatilidade temática do autor harmoniza-se com a abordagem plural da filosofia da ciência presente neste livro.
Os sete capítulos que o compõem abordam importantes questões no debate contemporâneo em filosofia da ciência e relacionam-se de maneira coerente e didática. O primeiro capítulo discute o clássico problema da demarcação, embora se inicie com uma introdução à história da ciência a partir da idade moderna. Nessa introdução, Okasha não se limita a falar dos grandes nomes da física; aborda também a revolução darwinista, a descoberta do ADN e o advento da ciência cognitiva, fornecendo-nos uma visão mais ampla e equilibrada das atividades científicas. Como proposta de demarcação da ciência o autor discute o falsificacionismo de Karl Popper, segundo o qual uma teoria científica é aquela capaz de fazer previsões que em princípio são sempre passíveis de falsificação. Essa proposta é rejeitada de imediato, já que os próprios cientistas muitas vezes imunizam as suas teorias de qualquer falsificação ao aceitarem dados contraditórios. Não havendo fronteira clara entre a ciência e pseudociência, Okasha abre caminho para uma definição da primeira nos moldes dos agregados de conceitos de Wittgenstein. Esta interessante sugestão não é desenvolvida, deixando leitores sem uma ansiada definição precisa do que seja a atividade científica.
O segundo capítulo aborda tipos de raciocínios científicos, versando sobre os conceitos de raciocínio dedutivo, indutivo e de inferência a favor da melhor explicação. O autor retoma o falsificacionismo de Popper para apresentá-lo como uma tentativa de basear a atividade científica apenas em raciocínios dedutivos. A falha do projeto falsificacionista indica e reitera ao leitor a inevitabilidade das induções na ciência, ao mesmo tempo em que a seção dedicada a David Hume fundamenta a impossibilidade de uma justificação racional desse tipo de raciocínio. Nesse ponto, não há dúvida que Okasha fornece um panorama crítico e envolvente sobre o problema da indução. Todavia, sentimos falta de uma menção explícita ao “novo enigma da indução” de Nelson Goodman, dado que este reavalia a própria formulação do problema. Já a apresentação de Okasha sobre a inferência a favor da melhor explicação é marcada por exemplos instrutivos. Se comparada com a hipótese de criação separada, por exemplo, a tese darwinista da ancestralidade comum seria uma explicação muito mais parcimoniosa e coerente sobre a origem e distribuição dos seres vivos no planeta. Seria, neste sentido, uma explicação melhor do que a outra. Okasha discute a relação entre este tipo de inferência e a indução. Na bibliografia filosófica encontramos autores que sustentam que toda a indução pressupõe uma inferência a favor da melhor explicação, bem como autores que defendem o contrário.
No terceiro capítulo, Okasha discute problemas relacionados com a concepção de explicação científica a partir do modelo nomológico-dedutivo de Hempel, segundo o qual uma boa explicação tem a forma de um argumento dedutivo cujas premissas retratam fatos particulares e contêm ao menos uma lei geral. No entanto, a formulação lógica desse modelo impõe um sério problema: mantendo-se fixa a lei geral, é possível cambiar o explanans pelo explanandum e vice-versa. Por exemplo, suponha que você está tomando um banho de Sol e observa que a sombra de um mastro tem vinte metros. Considerando como lei geral o fato de os raios de Sol incidirem sobre o mastro na forma de linhas retas, seria possível explicar o comprimento da sombra tanto pela a altura do mastro quanto o contrário. Mas será que o comprimento da sombra deve contar como uma explicação científica genuína da altura do mastro? O modelo nomológico-dedutivo leva a crer que sim. No final do capítulo, Okasha menciona controvérsias mais gerais sobre explicação. Enquanto a primeira consiste na capacidade da ciência para explicar todos os fenômenos humanos, a segunda trata da capacidade da física para reduzir as outras ciências. Neste ponto, o autor expõe o importante argumento anti-reducionista da realização múltipla, de acordo com o qual uma entidade descrita pelas ciências especiais pode ser instanciada de diversas maneiras a nível microfísico e, desse modo, não encontra uma descrição unívoca no vocabulário da física fundamental.
No quarto capítulo, Okasha aborda a querela entre realismo e anti-realismo. Partindo da distinção entre entidades observáveis e inobserváveis, o que está em disputa é o modo de interpretar as entidades inobserváveis presentes no vocabulário científico. Afinal, devemos ou não encará-las como descrições reais do mundo? O modo como o autor expõe este debate permite que o leitor perceba a pluralidade de anti-realismos possíveis, ainda que não mencione as suas diversas correntes. Que o anti-realismo seja descrito de maneira vaga é uma virtude, no contexto do livro. Okasha volta-se em seguida para o argumento do milagre, para o qual seria uma coincidência milagrosa que, por exemplo, as nossas teorias sobre átomos funcionassem tão bem apesar de os átomos não existirem. Isso equivale a dizer que a capacidade explicativa de teorias contendo inobserváveis sugere a existência dessas entidades, o que nada mais é senão uma inferência a favor da melhor explicação. Os anti-realistas respondem a esse argumento dizendo que, tal como as teorias bem-sucedidas do passado se revelam hoje falsas, nada nos assegura que o sucesso das teorias atuais seja reflexo de sua verdade. Já os realistas frisam problemas na distinção observável/inobservável pressuposta pelos anti-realistas. Grower Maxwell mostra que haveria um contínuo entre o observável e inobservável, afirmando que essa distinção é vaga. Contra ele, Van Fraassen rebate dizendo que a vagueza da distinção não a tornaria menos verdadeira. Samir Okasha passa, por fim, ao problema da subdeterminação: diferentes teorias contendo inobserváveis conflitantes são capazes de acomodar os mesmos dados empíricos, não havendo razão para postular a existência de certos inobserváveis em detrimento de outros. Okasha nota que este argumento não se aplica apenas aos inobserváveis, mas também aos observáveis inobservados. Tudo aquilo que não é efetivamente observado está sujeito à subdeterminação teórica, pois pode ser explicado de diferentes maneiras. A subdeterminação não é, portanto, um problema apenas para o realista. Graças à sua clareza, fluidez e articulação teórica, consideramos este o melhor capítulo do livro.
O quinto capítulo é dedicado ao tema das revoluções científicas e ao seu grande divulgador, o filósofo Thomas Kuhn. O capítulo inicia-se com a caracterização do positivismo lógico e seu ideal de ciência como uma atividade puramente racional e objetiva. Os positivistas fazem uma distinção estrita entre o contexto da descoberta, que descreve o modo como os cientistas chegam à suas teorias, e o contexto da justificação, que descreve o modo como essas teorias se justificam racionalmente. O contexto da descoberta seria objeto da história da ciência, enquanto o contexto da justificação seria tema para a filosofia da ciência. Isto justificaria o pouco apreço dos positivistas para com a história da ciência. A relevância de Kuhn é ter posto em causa essa distinção e ter defendido uma filosofia da ciência baseada na história da ciência. O filósofo defende que, regidas por dois paradigmas diferentes, as teorias científicas e os seus critérios de avaliação são incomensuráveis entre si. Desafia-se, com isso, o ideal de progresso científico linear e acumulativo compartilhado pelos positivistas. A noção de paradigma — conjunto de pressupostos teóricos e práticos que subjazem à ciência — é incompatível com outro ideal desses filósofos, a saber, o de que os dados empíricos são neutros. Kuhn faz crer que a forma como esses dados são interpretados é influenciada pelo paradigma adotado e, portanto, as teorias resultantes da análise empírica não são puramente objetivas. Felizmente Okasha faz justiça à figura desse filósofo, dissociando dele a visão comum de um filósofo anticientífico, irracionalista ou mesmo relativista.
Diferentemente dos capítulos anteriores, o sexto capítulo não parte de uma questão geral de filosofia da ciência, mas opta por abordar três problemas filosóficos pontuais em três áreas científicas distintas, exemplificando uma maneira — cada vez mais freqüente — de se fazer filosofia da ciência. A abordagem de Samir Okasha apresenta frescor e, novamente, pluralidade louvável. O primeiro problema restringe-se ao domínio da física e trata-se do estatuto ontológico do espaço. Newton propunha a existência do espaço absoluto, independente dos objetos e suas relações. Leibniz, por outro lado, recusa a existência desse tipo de espaço, afirmando que o espaço nada mais é que a soma das relações espaciais estabelecidas pelos objetos. O segundo problema consiste no dilema de fornecer uma classificação correta das entidades biológicas. A chamada escola cladista entende que a classificação biológica deve refletir a história evolutiva e, nesse sentido, a similaridade entre os seres só deve ser levada em conta na medida em que seja capaz de refleti-la. Defensores da escola feneticista afirmam que a similaridade é um critério autônomo para as classificações, entendendo que estas devem ser neutras em relação a quaisquer teorias biológicas. O terceiro problema discutido por Okasha trata a modularidade da mente e, portanto, restringe-se ao domínio da ciência cognitiva. A hipótese da modularidade defende que a mente é composta por módulos especializados em cumprir tarefas específicas. Contrapondo-se a essa posição, Okasha usa a figura de Jerry Fodor, que considera que parte da mente não pode ser modularizada, mas abarca uma inteligência geral, cujas capacidades podem ser usadas em diferentes contextos e servir diferentes funções.
O sétimo e último capítulo diferem dos anteriores de outra perspectiva. Neles, Okasha oferece uma visão de conjunto sobre o advento e as implicações da atividade científica na sociedade ocidental. O primeiro tópico aborda o caráter pejorativo do cientismo, aqui entendido como uma forma de privilegiar a ciência frente a outras formas de conhecimento. Okasha relaciona o naturalismo de Quine com o cientismo, o que pode sugerir que do ponto de vista de Quine os problemas filosóficos se esgotam na ciência, o que não nos parece correto. O autor discute também a relação entre a ciência e a religião, focando-se na famosa disputa nos EUA entre evolucionistas e criacionistas. Okasha reconstitui a estratégia criacionista de questionar o darwinismo afirmando que seria apenas mais uma teoria. Okasha lembra-nos que nenhuma teoria científica pode ser rigorosamente provada (em termos dedutivos), o que não implica que todas tenham o mesmo grau de plausibilidade. Aos criacionistas cabe mostrar que a ciência da criação é mais plausível do que o darwinismo. Por fim, o autor discute a questão dos valores presentes na ciência, o que é exemplificado pelo enviesamento moral do programa da sociobiologia. Okasha entende que a procura sociobiológica por uma explicação evolutiva do comportamento humano é motivada pela tentativa de naturalização de certos valores morais pressupostos.
Ao percorrer todas estas discussões, Samir Okasha fornece um texto muito articulado, leve e, em especial, capaz de confrontar o leitor com argumentos e contra-argumentos sobre quais este é sempre convidado a refletir. O livro aborda a filosofia da ciência com a vivacidade e o interesse que todo professor gostaria de ver em seus alunos secundaristas ou universitários. Para estes o texto se destina e, desde que lido com atenção, certamente contribuirá para a sua formação.
Celso Neto