Pensa-se por vezes que o que dá sentido à vida humana é a existência de uma direcção, um destino a cumprir. A herança judaico-cristã em nada ajuda nestas coisas, pois reforça a ideia de sentido como destino, afirmando que a vida faz sentido porque Deus tem um destino para nós e por isso a nossa vida tem uma direcção, que é cumprir esse destino. Quando, por qualquer razão, a pessoa não pode já aceitar a ideia de que o género de deus judaico-cristão existe, sobretudo na sua representação popular — um velhinho simpático de barbas brancas a zelar por nós —, ocorre algo interessante. Ou a pessoa passa a pensar que a vida não tem sentido, ou introduz um novo deus para dar direcção e consequentemente sentido à vida humana: a evolução.
Para começar, Darwin teve uma infeliz ideia ao usar o termo “evolução” na sua teoria, em vez de usar apenas “variação” (que usa efectivamente ao longo do livro). A sua teoria não implica evolucionismo, ainda que essa seja a sua interpretação errada popular mais comum. Não implica evolucionismo no sentido de as formas de vida do século XXI, por exemplo, serem “superiores” ou “mais evoluídas” do que as espécies de vida do pleistoceno (que começou há 2,6 milhões de anos e acabou há onze mil anos). Conceber a teoria da evolução em termos evolucionistas revela uma incompreensão da própria teoria, como se esta implicasse um aperfeiçoamento progressivo das formas de vida. Isto é falso. Tudo o que a teoria explica é como as formas de vida têm as características que têm e como podem adaptar-se ao longo do tempo às variações do meio ambiente; mas a teoria não implica que em cada época geológica as formas de vida são mais sofisticadas do que as formas de vida das épocas anteriores, ou que estão mais bem adaptadas ao meio ambiente. O facto de isto por vezes ocorrer é explicado pela teoria, mas a teoria não o implica.
Assim, a substituição de um deus judaico-cristão que nos dá uma direcção pela evolução nem sequer funciona, rigorosamente falando, porque a teoria da evolução não fornece qualquer direcção. Esta é a primeira confusão, puramente científica.
A segunda confusão é já filosófica, e é a ideia de que ter uma direcção é uma condição suficiente para que uma vida tenha sentido. Afinal, até parece que a palavra “sentido” está mesmo a dizer que se trata de direcção. Só que isto é falso. Não é nessa acepção do termo “sentido” que queremos saber se a vida humana tem sentido, porque ter uma direcção não é suficiente para que valha a pena viver a vida. O que queremos saber quando perguntamos se a vida humana tem sentido, e se tem qual é, não é se a vida humana tem um destino ou uma direcção, e qual é, mas antes se a vida humana tem valor, e qual é.
Isto compreende-se melhor se pensarmos em várias direcções ou destinos possíveis, cuja existência não dá mais sentido à vida humana, e pode até tirar-lhe o sentido. Imaginemos que a direcção, o destino, da vida humana é servir de estrume para alimentar uns seres extraterrestres extremamente poderosos; ou para divertir deuses entediados. Se fomos criados para isso e se esse é o nosso destino, isso em nada dá sentido à nossa vida, porque tal direcção, tal destino, é destituído de valor. O conceito central para a discussão do sentido da vida é o conceito de valor e não o conceito de direcção ou destino.
Assim, a ideia de em lugar de Deus pôr a evolução não é particularmente perspicaz. Para começar, a evolução nem sequer tem direcção, como vimos. Além disso, mesmo que tivesse, não é a simples direcção que dá sentido à vida humana, na acepção relevante. E, finalmente, o género de direcção que a evolução supostamente daria aos seres humanos seria a propagação cega dos nossos genes — um objecto desprovido de qualquer valor ou mérito, por si, para poder dar sentido à vida humana, na acepção relevante. Vejamos porquê.
Em primeiro lugar, a ideia de que a evolução daria sentido à vida humana é uma má notícia para quem é estéril, pois quem é estéril não pode cumprir o suposto destino evolutivo de propagar os seus genes. Que deve uma pessoa estéril fazer? Matar-se porque a vida não vale a pena? Isto é absurdo, pois muitas pessoas estéreis ou que não têm filhos por opção vivem vidas que valem muito mais a pena do que outras pessoas que têm muitos filhos. O valor da vida de uma pessoa não se mede pela quantidade de descendentes.
Em segundo lugar, exactamente em que medida é a propagação dos genes de uma dada espécie biológica algo de valor? Nenhuma resposta plausível nos ocorre; o que nos ocorre é o pensamento insustentável de que a propagação dos genes dá valor à vida de um ser humano porque é isso que os seus genes estão programados para fazer. Este pensamento é o velho erro de procurar orientação moral na natureza — em parte, talvez, porque isso nos poupa o trabalho de pensar quando pensar não é só uma questão de pôr citações à frente umas das outras ou fazer cálculos em série. A natureza não é um bom guia moral pela simples razão de que a natureza não é um sistema de justificação racional de crenças, acções ou modos de vida. É tão absurdo procurar orientação moral na natureza quanto o é procurar orientação matemática: os crocodilos nada de especial têm para nos ensinar sobre moral ou sobre matemática. Isto significa que ainda que estivéssemos “programados” para propagar genes, a propagação de genes não daria sentido à nossa vida. No mesmo sentido em que estamos “programados” para propagar genes estamos também “programados” para competir por territórios e recursos e para eliminar competidores — mas isso com certeza não constitui um projecto de uma vida digna de ser vivida.
Assim, mesmo que a propagação dos genes fosse um destino biológico inevitável, isso não daria sentido à nossa vida, na acepção relevante de “sentido” — apesar de lhe dar uma direcção. Direcção não dá só por si sentido, e tanto faz que essa direcção seja biológica ou teológica. O que pode então dar sentido à vida? Para saber isso, leia a antologia que organizei para a Dinalivro, Viver Para Quê? Ensaios Sobre o Sentido da Vida (2009).
Desidério Murcho