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Crítica
19 de Março de 2017   Ética

Uma vida que importava

Peter Singer
Tradução de José Oliveira

No dia 1 de Janeiro, morreu Derek Parfit, um dos maiores filósofos da minha geração. Apenas um ano antes, numa sondagem num importante site de filosofia, Parfit tinha sido eleito o mais importante filósofo anglófono vivo.

De todos os filósofos que conheci, desde que comecei a estudar nesta área há mais de cinquenta anos, Parfit era o mais próximo de um génio. Entrar numa discussão filosófica com ele era como jogar xadrez com um grande mestre: ele já tinha pensado em cada resposta que eu poderia dar aos seus argumentos, tinha considerado as várias respostas possíveis, e sabia quais as objecções a cada resposta, bem como os melhores contra-argumentos para essas objecções.

Parfit não era um nome familiar. Poucas pessoas fora do mundo académico da filosofia terão lido algo que tenha escrito. Nem aparecia na televisão embora, no final da vida, tenha falado sobre o altruísmo eficaz, e duas dessas apresentações podem ser vistas on-line.

Também publicou pouquíssimo, antes do seu primeiro livro, Reasons and Persons, que saiu em 1984, quando tinha quarenta e dois anos. Os seus leitores, em seguida, tiveram que esperar mais vinte e sete anos para o seu segundo livro, On What Matters, a menos que tivessem podido ler um dos rascunhos que Parfit fazia circular a fim de receber sugestões de melhoria.

Dizer que Parfit escreveu apenas dois livros, no entanto, é enganador. Reasons and Persons reúne ideias novas sobre três assuntos distintos. Primeiro, discute teorias da acção racional. Será racional agir sempre no nosso próprio interesse, ou agir de acordo com os nossos desejos actuais, ou promover as melhores consequências para todos, a qualquer altura?

O segundo assunto é a identidade pessoal. Apesar de normalmente considerarmos a distinção entre nós mesmos e os outros uma questão de tudo ou nada, porque pressupomos que somos a mesma pessoa ao longo de toda a nossa vida, Parfit defende que a nossa identidade muda ao longo do tempo à medida que se alteram as conexões psicológicas entre os nossos eus anteriores e posteriores. Parfit considera essa perspectiva libertadora: “As outras pessoas estão mais próximas”, escreve, “estou menos preocupado com o resto da minha própria vida e mais preocupado com a vida dos outros”.

Na parte final do livro, Parfit pergunta: Qual é a população ideal para um país, ou um planeta? Devemos ter como objectivo a maior quantidade total possível de felicidade, ou o mais elevado nível médio de felicidade?

Presumindo que o nível médio de felicidade é positivo, estas escolhas irão divergir se o aumento da população do planeta reduzir a média, mas não o suficiente para compensar o facto de que existem agora mais pessoas felizes. Ao pensar sobre esta questão, podemos pôr de lado as restrições ambientais que dão razões para não aumentar a população, porque Parfit está a tentar explicar uma questão subjacente de valor. Ele mostra que tanto as respostas do “total” como da “média” têm implicações paradoxais ou contra-intuitivas. Mas, então, o mesmo acontece com todas as outras respostas que têm sido propostas desde que Parfit retomou o problema e outros filósofos começaram a apresentar as suas próprias soluções.

Se Reasons and Persons poderia facilmente ter sido três livros separados, On What Matters é-o realmente: os dois primeiros volumes foram publicados em 2011, enquanto um terceiro, no prelo quando Parfit morreu, acaba de surgir. Neste trabalho monumental, totalizando cerca de 1900 páginas, Parfit desafia a ideia — quase universalmente pressuposta pelos economistas e por muitos filósofos de David Hume em diante — que o papel da razão é dizer-nos como conseguir o que queremos, mas não dizer-nos o que há que querer.

Pelo contrário, defende Parfit, os desejos podem ser irracionais. É irracional, por exemplo, desejar evitar uma dor agonizante todos os dias da semana, excepto qualquer terça-feira futura.

A fim de mostrar que pode haver verdades objectivas em ética, Parfit procura, audaciosamente, conciliar três importantes teorias normativas: o kantismo, o contratualismo e o consequencialismo. Os adeptos de cada uma destas teorias, sugere Parfit, estão a “subir a mesma montanha de encostas diferentes”, seguindo o seu próprio caminho até ao elemento comum de verdade em cada teoria.

No On What Matters, Volume Três, Parfit tenta novamente reconciliar três teorias importantes, desta vez teorias sobre a natureza da ética, e a base a partir da qual poderíamos chamar “verdadeiro” a um julgamento ético.

Parfit não era apenas um filósofo notável; também foi extraordinariamente generoso com o recurso que era mais precioso para ele: o seu tempo. Estava tão preocupado em não desperdiçar tempo que lia filosofia enquanto escovava os dentes, e o seu guarda-roupa estava cheio de camisas e fatos idênticos para que não tivesse de pensar sobre o que vestir. No entanto, quando os alunos ou os colegas lhe enviavam trabalhos, lia-os e, quer concordasse com eles quer não, escrevia comentários detalhados, às vezes mais longos do que o próprio trabalho. Eu beneficiei disso, assim como inúmeros outros.

Vou deixar Parfit ter a última palavra. Numa altura em que muitas pessoas desesperam devido às tendências políticas actuais, o penúltimo parágrafo de On What Matters, Volume Três encoraja-nos a ter uma perspectiva mais ampla e optimista:

A vida tanto pode ser maravilhosa como terrível, e vamos ter, cada vez mais, o poder de torná-la boa. Dado que a história humana mal pode ter começado, podemos esperar que os seres humanos do futuro, ou os supra-humanos, possam alcançar alguns bens grandiosos que agora não podemos sequer imaginar. Nas palavras de Nietzsche, nunca houve uma aurora tão nova e um horizonte tão claro, nem um mar tão aberto.

Peter Singer
Project Syndicate (14 de Março de 2017)
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ISSN 1749-8457