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Crítica
4 de Agosto de 2008   Filosofia da mente

Sobreveniência

Terence Horgan
Tradução de Vítor Guerreiro

A sobreveniência é uma relação de determinação, que amiúde se supõe verificar entre características físicas e características mentais. Em filosofia da mente, usa-se por vezes o conceito de sobreveniência para articular a tese do fisicismo. A noção de sobreveniência, originalmente usada na ética, foi introduzida na filosofia da mente por Donald Davidson (1970, 1973), que formulou a tese de que as características mentais sobrevêm às características físicas: “É impossível que dois acontecimentos (objectos, estados) concordem em todas as suas características físicas [...] e difiram nas suas características psicológicas” (Davidson 1973: 716). Esta afirmação de sobreveniência é mais fraca do que outras afirmações sobre relações físico-mentais, que por vezes se defende em filosofia da mente — por exemplo, que as características mentais são idênticas a características físicas, ou definíveis a partir destas, ou que ambas são legiformemente co-extensas.

Uma razão comummente citada para dar preferência à sobreveniência físico-psicológica em vez de a quaisquer destas concepções mais fortes, mais redutivas, da relação entre o físico e o mental, é que, supostamente, as características psicológicas são multiplamente realizáveis (isto é, multiplamente implementáveis) por características físicas. Por exemplo, as propriedades mentais podiam realizar-se fisicamente de maneiras muito diferentes em algumas criaturas não-humanas, efectivamente existentes ou possíveis (por exemplo, marcianos), do que o são em humanos. Além disso, em algumas espécies de criaturas efectivamente existentes ou possíveis (incluindo talvez os humanos), uma dada característica psicológica pode ter múltipla realização física no interior da espécie, ou mesmo numa única criatura.

Às características físicas que determinam dada característica psicológica M de dada criatura (numa ocasião particular em que M é exemplificada) chama-se base de sobreveniência de M (nessa ocasião). Tipicamente, a base de sobreveniência incluirá não só a propriedade física P que realiza fisicamente M na criatura que tem a característica M, mas também determinadas características físico-estruturais da criatura, em virtude das quais a propriedade P desempenha o papel causal necessário para ser uma realização de M. Por exemplo, a base de sobreveniência da propriedade querer um gelado numa dada ocasião, incluirá não só uma propriedade neuroquímica P que realiza fisicamente esta propriedade-desejo numa dada pessoa, mas também diversas características estruturais persistentes do cérebro e corpo da pessoa em virtude das quais P desempenha um papel causal de implementação do desejo adequado (por exemplo, o papel de impulsionar o corpo da pessoa em direcção a uma localização onde a pessoa crê que se pode obter gelado).

A sobreveniência figura amiúde nas discussões filosóficas sobre a causalidade mental. Por vezes sugere-se (por exemplo, Kim 1979, 1984) que a eficácia causal e a relevância explicativa se “transmitem” através de níveis de descrição, por meio de conexões de sobreveniência, das características físicas para as mentais. A ideia é que as características mentais figuram na “causalidade sobreveniente” — ainda que todo o comportamento humano, descrito como movimento corporal, seja em princípio explicável em termos físico-químicos.

Distingue-se comummente entre características mentais intencionais (representacionais) e características mentais qualitativas (fenoménicas); e defende-se por vezes que as primeiras sobrevêm às características físicas de um modo que não sucede com as últimas. (As características intencionais são o tipo que se exprime caracteristicamente por elocuções mentalistas com partículas “que”, por exemplo, “acredita que o MIT fica em Boston”. As características qualitativas, ou qualia, são as características peculiares como é das experiências sensoriais, como observar um segmento de vermelho vivo, cheirar ovos podres, ou bater com o dedo do pé.) Pensa-se em geral que as características intencionais sobrevêm logicamente ou conceptualmente às características físicas (por exemplo, Chalmers 1996) — pelo que não há qualquer “mundo possível” que seja uma réplica física perfeita do mundo efectivo, mas que difira do mundo efectivo na distribuição das propriedades mentais intencionais. Por contraste, afirma-se por vezes (por exemplo, Chalmers 1996) que os qualia não sobrevêm logicamente ao físico porque, supostamente, os seguintes tipos de réplica física do mundo são possibilidades conceptuais coerentes: 1) um mundo em que se emparelha os qualia da cor com os estados neurais relevantes no córtex visual humano de maneiras sistematicamente invertidas relativamente aos emparelhamentos neural/qualia do mundo efectivo (um mundo de “qualia invertidos”); e 2) uma réplica física do mundo, isenta de qualia de todo em todo (um mundo “isento de qualia”).

Mesmo que os qualia não sobrevenham logicamente às características físicas, podem ainda assim exibir um tipo mais fraco de dependência: a sobreveniência nomológica (isto é, legiforme). A sobreveniência nomológica de qualia significaria que há leis da natureza fundamentais, para além das leis básicas da física, que ligam determinadas características físicas (ou talvez funcionais) de determinados sistemas físicos (por exemplo, humanos e outras criaturas sencientes) à presença simultânea de qualia — uma perspectiva defendida em Chalmers (1996). Pode-se argumentar que tal posição seria uma versão de naturalismo acerca de qualia, mas não uma versão de fisicismo. Levantar-se-ia questões de causalidade mental a esta perspectiva porque se defende por vezes (por exemplo, Horgan 1987) que se os qualia sobrevêm às características físicas apenas nomicamente e não de uma maneira mais forte, então os qualia são epifenoménicos — isto é, não têm qualquer eficácia causal real ou relevância explicativa relativamente ao comportamento humano.

As questões de sobreveniência também surgem relativamente a características mentais intencionais. Afirma-se amiúde que pelo menos para algumas propriedades intencionais, a base de sobreveniência mínima inclui mais do que as características físicas intrínsecas da pessoa que exemplifica a propriedade (no momento da exemplificação); também inclui determinadas conexões relacionais entre a pessoa e o ambiente mais vasto. Uma fonte bastante influente é a experiência mental da terra gémea em Putnam (1975). Um terráqueo e um terráqueo-gémeo que são exactamente semelhantes em todos os aspectos físicos intrínsecos podem diferir mentalmente: o terráqueo tem um pensamento acerca de água (isto é, H2O), ao passo que o terráqueo-gémeo tem um pensamento acerca de gágua (isto é, XYZ). A lição, aparentemente, é que a base de sobreveniência para uma característica mental intencional como querer água não implica apenas as propriedades físicas intrínsecas actuais da pessoa que agora tem esta propriedade mental, mas também certas conexões relacionais entre a pessoa e o ambiente físico da pessoa — e/ou social e/ou histórico e/ou evolutivo. Diz-se que tais propriedades mentais têm conteúdo amplo, porque a base de sobreveniência para tal propriedade ultrapassa as características físicas intrínsecas actuais da criatura que agora exemplifica a propriedade; as características de conteúdo amplo, como diz o refrão, não sobrevêm ao “que está na cabeça”. Por contraste, diz-se que as características mentais intencionais que sobrevêm às características físicas intrínsecas presentes de uma criatura têm conteúdo restrito

Diversas questões inter-relacionadas a respeito de conteúdo amplo e restrito têm sido objecto de discussão activa na filosofia recente e têm implicações directas nos fundamentos da ciência cognitiva. Entre elas contam-se as seguintes:

  1. Como se deve caracterizar os estados mentais (isto é, tipos de estado) de conteúdo amplo e de conteúdo restrito?
  2. Até que ponto é o fenómeno do conteúdo amplo ubíquo? Estará limitado a crenças e outros estados mentais que usam tipos específicos de conceitos (por exemplo, conceitos de categoria natural como “água” ou “ouro”), ou estará muito mais generalizado?
  3. Será que os estados mentais de conteúdo amplo têm eficácia causal e relevância explicativa?
  4. Será que a ciência cognitiva se devia ocupar tanto dos estados psicológicos de conteúdo amplo como dos de conteúdo restrito, ou devia antes focar-se num só tipo?
  5. Haverá realmente conteúdo restrito?

A discussão destas questões ocorre num ambiente intelectual em que predominam duas correntes amplas de pensamento. Uma das abordagens sustenta que os estados mentais intencionais, na sua maioria ou talvez na totalidade, tanto têm conteúdo amplo como conteúdo restrito (por exemplo, Fodor 1980, 1987, 1991). Outra abordagem evita de todo em todo o conteúdo restrito, e interpreta a intencionalidade mental essencialmente como uma questão de conexões relacionais adequadas entre estados físicos intrínsecos de uma criatura e determinados aspectos do ambiente actual da criatura e/ou da sua história evolutiva/desenvolvimento (por exemplo, Dretske 1981, 1988; Millikan 1984; Fodor 1994). Mas alguns filósofos põem em causa vigorosamente ambas as orientações — por exemplo, David Lewis (1994), cujos comentários dissidentes são eminentemente sensatos.

Encontra-se duas longas discussões sumárias da sobreveniência em Kim (1990) e Horgan (1993). Entre as colectâneas úteis conta-se Horgan (1984), Beckermann, Flohr e Kim (1992), e Kim (1993).

Terence Horgan
The MIT Encyclopedia of the Cognitive Sciences, org. Robert A. Wilson e Frank C. Keil (The MIT Press, Cambridge, Londres, 1999).

Bibliografia

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ISSN 1749-8457