No final do primeiro capítulo do seu livro Fundamentos da Filosofia (Zahar, 1977), Bertrand Russell expõe uma das suas expectativas em relação ao futuro dos problemas filosóficos: “Talvez a ciência moderna nos permita ver os problemas filosóficos a uma nova luz. Com essa esperança, vamos examinar a relação do homem com o seu meio”. Tal expectativa é compartilhada por David Stamos neste livro, lançado originalmente em 2008 na Blackwell. Stamos visa esclarecer as conseqüências, e o impacto, que a teoria evolucionista de Charles Darwin tem com respeito a alguns dos problemas filosóficos mais tradicionais (conhecimento, consciência, ética e sentido da vida), além de debater outras questões mais gerais ligadas à sociedade (raça, gênero, sexualidade e religião). O autor, que dá aulas de filosofia na Universidade de Iorque, em Toronto, no Canadá, é colaborador habitual em algumas das principais publicações acadêmicas que se ocupam de temas relacionados com a biologia e as ciências, e já publicou dois estudos sobre filosofia da biologia: The Species Problem (Lexington, 2003) e Darwin and the Nature of Species (SUNY, 2007).
A Evolução e os Grandes Temas divide-se em nove capítulos, um apêndice e um glossário. Trata-se de uma apresentação geral das possíveis respostas naturalistas aos problemas e questões mencionadas, acompanhada da respectiva crítica. A perspectiva da obra é evolucionista e discute temas contemporâneos da filosofia da biologia (nível da seleção natural, função biológica, adaptacionismo e seleção sexual, entre outros). Neste aspecto, Stamos aproxima-se da posição de Ernst Mayr quanto ao caráter único da biologia como ciência; um dos livros mais importantes de Mayr, onde defende as especificidades da biologia e algumas das suas implicações filosóficas, intitula-se Biologia, Ciência Única (Companhia das Letras, 2006).
Na Introdução, o autor faz ressalvas importantes, como, por exemplo, que não pretende fazer uma defesa da ciência evolucionista, dado tratar-se de um debate encerrado entre os cientistas e o mundo intelectual em geral: a biologia evolucionista tornou-se o núcleo da biologia profissional, a partir da publicação de A Origem das Espécies em 1859. Também sublinha que o seu objetivo não é explicar ou justificar a tendência reducionista contemporânea em relação a problemas desconcertantes, mas sim “discutir se, e em que medida, a biologia evolucionista ajuda a esclarecer os grandes temas debatidos nas humanidades e nas ciências sociais, e que nos interessam a todos”.
Acerca das possíveis resistências a tais possibilidades, um tema principal percorre os capítulos do livro: o debate entre as explicações evolucionistas e o que o autor denomina Modelo-Padrão das Ciências Sociais. Trata-se da maneira de ver a natureza humana que se encontra comumente na sociologia, no behaviorismo, na psicologia, na antropologia, no marxismo, nos estudos sobre gênero e sobre homossexualidade. Tal modelo tenta ao máximo minimizar o papel da biologia e ampliar o papel do ambiente, ou seja, da cultura e do condicionamento; em última instância, esse modelo vê a natureza humana como imensamente plástica ou moldável, como uma tabula rasa, um quadro em branco. Stamos faz notar que embora as explicações genuinamente evolucionistas da natureza humana estejam disponíveis desde Darwin, foi difícil tê-las em consideração em disciplinas acadêmicas exteriores à biologia profissional — até vários ataques importantes afetarem a força e penetração do Modelo-Padrão.
Este modelo não está errado sobre tudo; porém, pensa o autor, procura resistir ao fato de que os seres humanos são uma espécie biológica. Mas, por mais que se resista a este fato, a nossa espécie não surgiu do nada; antes evoluiu gradativamente de uma espécie anterior, que por sua vez evoluiu de outra. O desafio é investigar onde o Modelo-Padrão das Ciências Sociais está certo e onde está errado. Assim, a biologia evolucionista precisa ser levada em consideração, quer acreditemos que o conhecimento é poder, quer queiramos apoiar as maneiras mais efetivas de mudar o mundo. Este tópico permeia todos os capítulos, e em todos o Modelo-Padrão é citado e confrontado com outras perspectivas. Trata-se de um bom debate entre perspectivas diferentes, informativa para ambos os lados.
No Capítulo 1, intitulado “Evolução e Conhecimento”, o autor apresenta a epistemologia evolucionista de Karl Popper e respectivas críticas, além de debater se a evolução nos dotou da capacidade de encontrar a verdade. Fugindo um pouco da temática epistemológica, Stamos parte para uma investigação sobre a possibilidade de a ciência da biologia evolucionista nos dar algum conhecimento sobre a natureza humana. Por fim, apresenta as críticas ao programa adaptacionista e às explicações advindas do mesmo, desenvolvidas por Stephen Jay Gould, Richard Lewontin e Marvin Harris. No entanto, tem-se a impressão de que o autor poderia ter dado mais atenção a propostas naturalistas acerca da possibilidade de obtenção de conhecimento.
Uma tese bastante difundida acerca da obtenção de conhecimento é a de Fred Dretske. Segundo este autor, as capacidades sensoriais evoluíram exatamente devido à sua capacidade para nos informar sobre o meio ambiente. Segundo Dretske, os comportamentos instintivos são fruto de mecanismos que se desenvolveram, provavelmente, por seleção natural ao longo de muitas gerações, graças aos benefícios que trouxeram aos seres em que ocorrem. Assim, a função de detecção que surge com os sistemas naturais é o eixo de sustentação dos modos de representação mais sofisticados, presentes nos indivíduos capazes de aprender. Trata-se de uma posição relevante no debate naturalista e que não consta no texto de Stamos.
Já no Capítulo 2, temos uma discussão sobre um dos temas mais difíceis da filosofia. Intitulado “Evolução e Consciência”, o capítulo traz parte do debate contemporâneo em filosofia da mente e do trabalho de alguns cientistas que também tratam do tema da natureza da consciência. Parte da posição de Richard Swinburne, segundo a qual a consciência é um milagre, e passa pela posição de teorizadores como John Searle, Horace Barlow e Gerald Edelman, autores que consideram a consciência algo perfeitamente natural. Uma observação importante aqui é que o autor não pretende ter a última palavra sobre os temas, e apresenta as deficiências de certas posições naturalistas, o que é bastante salutar, mostrando que o problema permanece em aberto e a relevância do trabalho dos filósofos na área.
No Capítulo 3, “Evolução e Linguagem”, Stamos aborda a relação entre a evolução e o desenvolvimento da linguagem. Muitos teorizadores defendem que a linguagem tem uma relação estreita com a evolução, e é esta idéia que dá início ao capítulo, onde a teoria da gramática universal de Noam Chomsky é o foco da seção. Examinando as idéias básicas do autor e aceitando a gramática universal, Stamos mostra que a posição de Chomsky enfrenta dificuldades. A partir do posicionamento de lingüistas evolucionistas (Steven Pinker e Derek Bickerton), procura refutar a posição de Chomsky acerca do papel da linguagem na evolução.
No Capítulo 4 (“Evolução e Sexo”), Stamos analisa quatro temas que escapam um pouco à filosofia. Começa pela análise das idéias do psicólogo evolucionista David Buss acerca das diferentes estratégias de acasalamento. Depois, debate a polêmica explicação naturalista do estupro, empreendida pelo antropólogo Michael Ghiglieri. Na terceira seção do capítulo aborda a questão da homossexualidade, examinando duas posições evolucionistas (E. O. Wilson e Dean Hamer) em relação ao surgimento e manutenção da homossexualidade nas espécies. Por fim, Stamos discute o incesto, a partir das explicações desenvolvidas por E. O. Wilson e Marvin Harris. Trata-se de um capítulo com muitos termos técnicos da biologia evolucionista, mas bastante informativo. Ao contrário das seções com temática filosófica mais ampla, trata-se de um capítulo bastante descritivo.
Noutro capítulo que não envolve tanto questões filosóficas, mas muito influenciável pela ideologia, Stamos debate o feminismo (Capítulo 5, “Evolução e Feminismo”). Começa esclarecendo que os debates relativos ao gênero têm certa ojeriza à biologia, o que o autor chama de biofobia. Outro aspecto comum do debate é apontar que os gêneros são construções sociais. Ignorando as grades do “politicamente correto”, o autor parte para o confronto com feministas defensoras de tais teorias (principalmente a bióloga Anne Fausto-Sterling). Na segunda metade do capítulo, discute se a biologia e a ciência em geral são atividades sexistas e se o conhecimento científico precisa sempre ser tendencioso. Neste capítulo, a posição cultural do “homem branco europeu” é posta em causa, depois de o autor desenvolver uma interpretação bastante caridosa das posições feministas mais radicais. Uma posição não analisada, e que poderia ajudar na argumentação do autor, é o feminismo de Martha Nussbaum, uma defensora da igualdade entre os gêneros com base em posições mais plausíveis do que o feminismo tradicional.
No sexto capítulo, intitulado “Evolução e Raças”, Stamos analisa os equívocos populares sobre o tema, mostrando que o desconhecimento básico de biologia evolucionista produziu muito sofrimento para a humanidade. O autor apresenta as posições dos biólogos que põem em causa a existência de raças (principalmente Stephen Jay Gould) e daqueles que visam reintroduzir o conceito de raças a partir da ecologia e da taxonomia. Assim como nos outros capítulos, o autor não fecha o debate marcando uma posição, mas mostra quão limitados são os posicionamentos de quem busca defender a existência de raças na espécie humana. É neste contexto que o autor analisa as relações entre raça e QI, e mostra um exemplo de como o Modelo-Padrão das Ciências Sociais pode superar certas explicações naturalistas e evolucionistas. Por fim, temos uma análise do racismo como um universal humano, e se este afinal está enraizado no nosso passado evolutivo. Neste ponto, já é mais que necessária a discussão da falácia naturalista, que ainda não havia surgido no livro.
No capítulo 7, intitulado “Evolução e Ética”, o autor desenvolve os vários problemas éticos que a biologia faz surgir. A acusação de que toda explicação naturalista da moralidade é falaciosa, desenvolvida por G. E. Moore, é finalmente analisada, distinguindo-a da falácia ser/dever, formulada por David Hume. O autor passa pela história do debate, que envolve o darwinismo social (Herbert Spencer), a sociobiologia (E. O. Wilson) e a psicologia evolucionista. Por fim, apresenta as críticas às tentativas de naturalização da moralidade e a posição de Peter Singer, que defende que as teorizações sobre a moralidade devem aceitar a visão darwinista da natureza dos seres humanos. Há ainda uma discussão sobre a natureza última dos valores morais (naturalista, claro) e sobre os direitos humanos, sua origem e universalidade.
No mais longo dos capítulos do livro, Stamos examina as implicações da evolução para a religião (Capítulo 8, “Evolução e religião”). Inicia o debate com a explicação memética do fenômeno religioso, passando pela existência de um instinto religioso e termina discutindo a possibilidade de harmonia entre a religião e a ciência, conforme defendiam o falecido Papa João Paulo II e o biólogo Stephen Jay Gould. Num dos poucos pontos onde o autor marca posição, nega a possibilidade de tal harmonia (a teoria dos Magistérios Não-Interferentes) com base na incompatibilidade de certos aspectos de ambas. Richard Dawkins e Daniel Dennett são bastante citados e o posicionamento de Stamos é bem próximo deles, principalmente em relação à oposição entre ciência e religião. Num dos poucos deslizes do livro em relação ao reducionismo, o autor aponta algumas semelhanças curiosas, porém desnecessárias e pouco explicativas, como, por exemplo, entre o êxtase religioso e o sexual.
No nono último capítulo do livro, intitulado “Evolução e Sentido da Vida”, Stamos dedica-se uma tarefa bastante intricada. A evolução acrescenta sentido à vida e à existência, é neutra ou irrelevante? A posição geral é que uma vida com sentido leva em consideração o conhecimento e a procura da verdade, e temos o equipamento necessário para isso. O autor desenvolve também um paralelo entre as conseqüências da evolução para o sentido da vida e algumas idéias do movimento existencialista, mas nega o niilismo. Para isso, baseia-se na posição do filósofo Robert Nozick acerca do sentido relacional que atribuímos à procura da verdade e do conhecimento.
O livro inclui ainda com um informativo apêndice sobre os erros mais comuns no que respeita à evolução. Origem e evolução da vida, evolução como teoria e como fato e o papel do acaso são temas rapidamente apresentados, com o objetivo de informar e evitar erros. A leitura prévia do apêndice poderia ajudar muito na leitura do restante do livro. Há também um informativo glossário, além da bibliografia geral. A tradução brasileira é competente. Alguns deslizes, como traduzir astronomy por astrologia ou evolutionary psychology por psicologia evolutiva (o correto é psicologia evolucionista), foram detectados, mas nada que comprometa o texto como um todo.
Uma ausência bastante sentida é um debate sobre as implicações políticas ou sobre a relação entre política e evolução. A proposta da esquerda darwinista de Peter Singer é apresentada rapidamente no capítulo sobre ética, mas poderia ser mais amplamente discutida, uma vez que se trata de um ponto bastante sensível. A identificação entre a direita política e o evolucionismo é bastante comum no debate e um tratamento mais detido do tema poderia esclarecer as coisas. Outro tema renegado no livro e que poderia ser pelo menos mencionado é a relação entre arte e evolução.
Um capítulo sobre as críticas ao programa naturalista em filosofia também seria muito bem-vindo. O americano Thomas Nagel é um dos filósofos que põe em causa certos aspectos de tal programa, defendendo em A Última Palavra (1998) que há hoje um darwinismo excessivo, um uso abusivo da biologia evolucionista para explicar fatos da vida, incluindo tudo o que respeita à mente humana. Além dessa crítica mais ampla, duas outras críticas são bastante contundentes. A primeira é realizada pela filósofa Mary Midgley em Evolution as Religion (Methuen, 1985), onde defende que certos setores acadêmicos acabam por ater-se acriticamente às explicações evolucionistas e acabam por fazer dela uma nova religião, onde há dogmas que não são passíveis de discussão.
A segunda crítica é tecida por Antony O’Hear em Beyond Evolution (OUP, 2005), principalmente em relação às explicações evolucionistas dos fenômenos antropológicos. O’Hear defende a existência de traços da nossa humanidade a que as teorias evolucionistas, especificamente centradas em questões de sobrevivência e reprodução, são incapazes de responder. Entre eles podemos incluir a procura do conhecimento, a verdade, a moral e a experiência estética. O'Hear, assim como Midgley, não nega a evolução como fato, nem desdenha do seu potencial explicativo em vários casos. Defende assim que certos temas devem ser “deixados nas mãos dos filósofos”, ao contrário do que foi defendido por E. O. Wilson, em Sociobiology: The New Synthesis (HUP, 1975), quando afirmou que a “ética deveria temporariamente ser afastada dos filósofos e entregue aos biólogos”. Para tais autores, o potencial explicativo e interdisciplinar do evolucionismo deve ser adotado criticamente e dentro de certos limites. O livro de Stamos, no entanto, é bastante informativo, mesmo para aqueles que combatem o naturalismo ou a tendência evolucionista no pensamento contemporâneo.
José Costa Junior