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Crítica
25 de Julho de 2017   Filosofia

Jogos e semelhanças de família

Jim Stone
Tradução de Lucas Miotto

Considere-se, por exemplo, os procedimentos a que chamamos “jogos”. Refiro-me a jogos de tabuleiro, jogos de cartas, jogos de bola, jogos olímpicos, e assim por diante. O que há de comum a todos? Não responda: “Tem de haver algo comum, ou não se chamariam “jogos”” — mas olhe e veja se há algo comum a todos. — Pois se os olhar não verá algo comum a todos, mas semelhanças, relações e ainda por cima uma série destas. Reiterando: não pense, mas olhe! — Olhe por exemplo para os jogos de tabuleiro, com as suas diversas relações. Agora passe para os jogos de cartas; aqui encontra muitas correspondências com o primeiro grupo, mas muitas características comuns desaparecem e surgem outras. Quando em seguida passamos aos jogos de bola, muito do que é comum mantém-se, mas muito se perde. — Serão todos “divertidos”? Compare-se o xadrez com o jogo do galo. Haverá sempre ganhar e perder, ou competição entre jogadores? Pense no jogo da paciência. Nos jogos de bola há ganhar e perder; mas quando uma criança arremessa a bola contra a parede e a apanha novamente, essa característica desapareceu. Olhe para o papel desempenhado pela aptidão e pela sorte; e a diferença entre a aptidão no xadrez e a aptidão no tênis. Pense agora em jogos como as canções de roda Ring a Ring o’ Roses; aqui há o elemento de diversão, mas quantos outros aspectos característicos desapareceram!...

Não me ocorre melhor expressão para caracterizar essas semelhanças do que “semelhanças de família”; […] E passo a afirmar: os “jogos” formam uma família.1 (Ludwig Wittgenstein, 1953)

Mesmo no nível da linguagem comum, é estranho afirmar que todos os jogos “têm algo em comum”, nomeadamente, o serem jogos. Pois alguns jogos envolvem ganhar e perder, outros não (“Ring a Ring o’Roses”); alguns jogam-se para recreação dos jogadores, outros não (como os jogos gladiatórios) ; alguns jogos têm mais de um jogador, outros não; e assim por diante. Analogamente, quando examinamos de perto todos os casos em que diríamos que alguem se “referiu a” algo […], não encontramos uma relação única entre a palavra e a coisa referida.2 (Hilary Putnam, 1988)

A doutrina das semelhanças de família está ligada de um modo peculiar ao exemplo particular dos jogos. Pois embora a doutrina se tenha tornado parte do arsenal da filosofia analítica, por vezes, quando os filósofos sentem necessidade de a sustentar, o exemplo dos jogos é o que supostamente encerra a discussão. Ninguém apresenta o segundo exemplo de Wittgenstein, o dos números, provavelmente por ser tão impersuasivo. Outros exemplos que os filósofos por vezes apresentam, nomeadamente, “festa”, “ponto”, “caravana”, parecem suficientemente fáceis de definir e demasiado superficiais para terem alguma importância. Exemplos de maior peso e interesse, por exemplo, “religião”, “justiça”, “referência”, são controversos, pois há teorias que se propõem explicar o que todas as ações ou sociedades justas, digamos, têm em comum. E ainda que fiquemos insatisfeitos com essas teorias, resta uma possibilidade real de podermos encontrar a explicação correta, se procurarmos mais. Pelo que os exemplos filosoficamente interessantes só irão persuadir-nos se já aceitamos a doutrina das semelhanças de família por outras razões. No que respeita aos fatos históricos, o argumento a favor da doutrina foi formulado do seguinte modo:

A palavra “jogo” não pode ser definida por uma característica comum dos jogos, pois é óbvio que nada de semelhante existe. Chamamos “jogo” a algo devido à relação que esse algo tem com diversas coisas a que chamamos “jogos”; alargamos o nosso conceito segundo estas várias semelhanças “tal como ao fazer uma corda entrançamos uma fibra sobre a outra”, sem que uma só fibra percorra toda a sua extensão.3 Isso é o que explica o nosso conceito “jogo” e, provavelmente, uma multidão de outros termos filosoficamente interessantes, por exemplo, “número”, “referência”, “religião”, etc.

Um bom modo de colocar seriamente em dúvida a doutrina, por conseguinte, é explicitar o que os jogos têm em comum. Afinal, se a doutrina não funcionar com o seu exemplo mais impressionante e persuasivo, por que razão acreditar nela? Wittgenstein dever-nos-ia, no mínimo, novos argumentos. É isso o que me proponho fazer neste artigo.

A exortação de Wittgenstein, “Não pense, olhe!”, é um convite a perder de vista a floresta em função das árvores. Evidentemente, se o leitor olhar para os jogos sem pensar “não verá algo comum a todos, mas semelhanças, relações, e ainda por cima uma série delas”. Desobedeçamos à fatal exortação, fazendo ambas as coisas: olhar e pensar. Um lugar promissor onde procurar a essência dos jogos é na classe das atividades definidas por regras, isto é, atividades que seria impossível realizar sem seguir regras.4 Assim, por exemplo, podemos comer, correr e lutar sem seguir regras, mas não podemos jogar xadrez, bridge ou basquetebol. Ainda que alguns macacos empurrassem peças de xadrez de tal modo que replicassem um jogo de xadrez, não estariam a jogar xadrez a menos que estivessem a seguir as regras do xadrez.

Evidentemente, há atividades definidas por regras que não são jogos. Falar uma língua, por exemplo (pace Wittgenstein). O que faz uma atividade definida por regras ser um jogo? Proponho a seguinte teoria: um jogo é uma atividade definida por regras, a qual envolve um estado que conta como a realização bem-sucedida da atividade porque é definido por uma regra arbitrária; uma atividade tipicamente realizada para recreação dos participantes ou espectadores, ou para apurar capacidades. É isso o que todos os jogos, e só os jogos, partilham, em virtude do qual são jogos. Além disso, creio que essa abordagem capta bastante bem o nosso conceito comum de jogos. Formulando de modo lato, os jogos são atos lúdicos regidos por regras, nos quais o sucesso é gerado por uma regra arbitrária.5

O xadrez, para tomar um exemplo óbvio, é uma atividade definida por regras que envolve um estado (xeque-mate) que conta como sucesso porque é assim definido por uma regra, e o xadrez é tipicamente jogado para recreação dos participantes ou espectadores ou para apurar capacidades. Note-se que o xeque-mate não é sucesso porque procuramos alcançá-lo; ao invés, procuramos alcançá-lo porque, de acordo com as regras, constitui sucesso. Os jogos têm a característica de o estado de sucesso ser, assim, interno às regras. O objetivo imediato de um jogo é realizar o estado que as regras definem como sucesso porque este é definido como tal. Note-se também que o leitor pode jogar xadrez sem ser bem-sucedido, como quando se joga não conseguindo pôr o adversário em xeque-mate. Para ganhar um jogo, há que jogar de maneira bem-sucedida um jogo que podemos jogar sem ser bem-sucedidos.

O exemplo do xadrez ilustra também o modo como é arbitrária a regra que define o que é jogar de maneira bem-sucedida um jogo. Não raro, fazemos duas perguntas quando aprendemos a jogar um jogo: “Como se joga?” e “O que conta como ganhar?”. Essas perguntas são diferentes. Saber como se move as peças de xadrez de acordo com as regras não é o mesmo que saber o que conta como ganhar; na verdade, o conjunto de regras que me dizem como mover as peças é compatível com um número indeterminado de definições para ganhar (e.g., xeque-mate, tomar todas as peças do adversário exceto o seu rei, tomar três peões com a rainha, etc.). Essas regras não determinam o estado de sucesso. Daí que a regra que define o sucesso seja uma adição arbitrária, na medida em que poderíamos ter adotado, em consistência com todas as outras regras, uma definição diferente de sucesso.

Considere-se uma criança que arremessa uma bola contra uma parede e a apanha novamente. Quando essa atividade é um jogo, a criança segue uma regra do género: “Arremessa a bola contra a parede e apanha-a, de tal modo que o que conta como sucesso é apanhar a bola que arremessaste contra a parede”.6 Uma característica de muitos jogos infantis é a atividade em que jogar o jogo é também o que é definido pela regra como sucesso. Como a atividade é normalmente fácil, também realizá-la de maneira bem-sucedida o é, o que constitui uma das razões pelas quais esses jogos proporcionam tanto prazer às crianças e tão pouco aos adultos. A regra para Ring around O’ Roses é: “Você e os seus colegas dão as mãos e correm em círculo cantando “Ring around o’ Roses […] All fall down”; e todos vão abruptamente ao chão quando cantam “All fall down”, e isso é ser bem-sucedido”. Quando a própria atividade que constitui o jogo é definida como sucesso, há sucesso mas não há vitória. Note-se, todavia, que em cada caso poderíamos ter adotado definições diferentes de sucesso, consistentes com as regras restantes, e.g., “Ser bem-sucedido é apanhar a bola vinte vezes seguidas”, no primeiro caso, e “Ser bem-sucedido é ser o primeiro (ou o segundo, ou o último) participante a ir ao chão”, no segundo caso.

Essa teoria do que são os jogos explica a nossa atitude ambivalente no que respeita a chamar “jogos” a desportos como o boxe. Imagine um comentador desportivo num combate profissional gritando: “Ele levantou-se, caiu, levantou-se outra vez! Que jogo magnífico senhores espectadores!” No entanto, o boxe está incluído nos jogos olímpicos. A nossa ambivalência não é simplesmente acerca de o boxe ser violento. Não temos problemas em chamar “jogos” ao futebol, ao rugby e ao lacrosse. Relembremos que a nossa definição requer que um jogo envolva um estado que conta como sucesso porque é definido como tal por uma regra. Lutar, evidentemente, não é definido por regras. E derrubar o adversário numa escaramuça é sucesso porque esse é o propósito de uma escaramuça, e não porque uma regra o diz. Claramente, transformámos a escaramuça num desporto concebendo as regras do boxe de modo a contar como sucesso de algum modo aquilo que já é sucesso numa escaramuça, com ou sem regras. Quando vemos o boxe como um jogo, temos de pensar que um K.O. conta como ganhar porque a regra assim o diz. Um K.O. seria perder caso a regra fosse diferente. Mas também reconhecemos que a regra define um K.O. como ganhar a luta porque isso é ganhar a luta. Por conseguinte, temos uma atitude ambivalente quanto ao estado de sucesso contar como sucesso porque é definido como tal por uma regra.7

A nossa teoria capta a ideia contida no sarcasmo: “A filosofia não passa de um jogo”. A ideia é a que aquilo que conta como sucesso em filosofia não tem validade ou valor independente; conta como ser bem-sucedido somente porque uma regra arbitrária assim o diz. Se a regra fosse diferente, algo diferente contaria como sucesso. Além de que, de acordo com o sarcasmo, os filósofos procuram o estado de sucesso simplesmente porque sabem que este é assim definido, não por estarem interessados em qualquer valor extrínseco — por exemplo, na verdade.

Talvez a teoria ilumine de algum modo o propósito da consideração de Wittgenstein acerca da linguagem como um agregado de “jogos linguísticos”. A perspetiva agostiniana da aquisição de linguagem pressupõe que as criaturas humanas têm a capacidade natural de pensar acerca das coisas, isto é, de representar mentalmente os objetos no mundo, mais a capacidade de transferir o conteúdo dos pensamentos para as palavras. Uma língua, nesta perspectiva, é essencialmente um sistema de sons com intencionalidade derivada, usado para comunicar informação acerca de como o mundo é.8 Como observa Wittgenstein: “Agostinho descreve a aprendizagem de uma língua humana como se […] a criança pudesse já pensar, embora não consiga ainda falar”.9 Se a linguagem é feita de jogos, todavia, o que conta como sucesso ao jogar um jogo linguístico não tem valor ou validade independente ou exterior; ser bem-sucedido é algo exclusivamente interno ao jogo, que é aquilo que define o sucesso. Consequentemente, não há qualquer intencionalidade natural que transferimos para as palavras, a capacidade de pensar acerca das coisas, que determine o sucesso linguístico, a capacidade de falar acerca das coisas. Agostinho está errado. Os significados das palavras somente podem ser determinados pelo seu uso num jogo linguístico. E as regras não têm intencionalidade derivada para determinar como os jogos são jogados: o significado de uma regra é determinado pelo modo como se a aplica, não o inverso. No fundo, portanto, a intencionalidade é determinada inteiramente por práticas, aquilo que efetivamente dizemos e fazemos. Se a linguagem é feita de jogos, então a intencionalidade é determinada pelo comportamento, uma consequência da qual se seguem as conclusões mais impressionantes de Wittgenstein, por exemplo, a de que não pode haver uma linguagem privada.

E quanto às objeções e contra-exemplos? Considere-se os jogos de tabuleiro, como o Monopólio e Gettysburg, que procuram construir o sucesso no jogo de modo a refletir a vitória numa competição preexistente. Se a teoria é verdadeira, não deveríamos sentir pelo menos algo da ambivalência acerca de contar essas coisas como jogos, como sucede no caso do boxe? No entanto, não sentimos. Podemos chamar “jogos representacionais” a esses passatempos. Cada jogo é fundamentalmente um sistema ininterpretado — pedaços de madeira, quadrados coloridos, etc. — ao qual se acrescenta um patamar de conteúdo representacional. Mas o jogo poderia ser jogado sem a interpretação. (Considere-se como poderíamos interpretar o gamão de diversas maneiras.) Nesse patamar fundamental de descrição, ganhar é algo inteiramente criado pelas regras: uma determinada disposição de pedaços de madeira consiste em ganhar porque a regra assim o diz. Não há uma competição preexistente com pedaços de madeira em função da qual as regras são elaboradas. Daí que os jogos representacionais sejam claramente jogos. Mas no boxe há uma competição preexistente que ocorre no nível fundamental do jogo, em função da qual as regras são elaboradas: os adversários batem um no outro em ambos os casos. Daí a nossa ambivalência.

E quanto a passar o tempo tentando resolver problemas aritméticos e quebra-cabeças? Não se trata de um jogo, mas será que não satisfaz a definição? Necessariamente, resolver um problema ou um quebra-cabeças consiste simplesmente em descobrir a resposta correta. Portanto as regras aritméticas que determinam as respostas corretas definem o que conta como realizar a atividade de maneira bem-sucedida. Lembremos, todavia, que a regra que define jogar um jogo de maneira bem-sucedida é um acréscimo arbitrário, subdeterminado pelas outras regras. O que conta como jogar um jogo de maneira bem-sucedida é, num certo sentido, inventado a partir do nada. Mas não poderíamos, em consistência com as restantes regras, ter adotado respostas corretas diferentes para os problemas aritméticos, declarando que essas respostas seriam as soluções. Por exemplo, não poderíamos coerentemente definir 5 como a soma de 2 + 2, deixando intocadas as restantes regras. Se uma regra define a resposta correta para um problema matemático, não é uma regra arbitrária. Pelo que resolver quebra-cabeças aritméticos por prazer não é um jogo. Podemos, evidentemente, adotar semelhante regra, e.g., “O sucesso consiste em resolver cinco problemas à primeira tentativa em cinco minutos”, caso em que estaríamos a jogar um jogo.10

O que dizer de ler por prazer? Sigo diversas regras ao fazê-lo e essas regras determinam o que é ser bem-sucedido na leitura. Porém, ler seguramente não é um jogo. Aqui será útil distinguir entre realizar com êxito uma atividade, isto é, conseguir realizá-la simpliciter, e realizar a atividade de maneira bem-sucedida. Considere-se, por exemplo, a diferença entre uma criança ter êxito a jogar xadrez, isto é, jogar xadrez, e jogar xadrez de maneira bem-sucedida, isto é, ganhar. Mas note-se também que há casos nos quais a distinção não se aplica: como é que caminhar de maneira bem-sucedida difere de ter êxito a caminhar, isto é, simplesmente caminhar? A dificuldade é que não se deu qualquer sentido definido à expressão “caminhar de maneira bem-sucedida”; não sabemos o que seria caminhar “de maneira bem-sucedida”. Por contraste, falar em jogar jogos de maneira bem-sucedida tem um sentido claro e robusto, precisamente porque cada jogo tem de envolver um estado que é explicitamente definido por uma regra como equivalente a jogar o jogo de maneira bem-sucedida. Mesmo no caso especial em que a atividade que conta como jogar o jogo é a mesma que a regra define como jogar o jogo de maneira bem-sucedida, falar em jogar o jogo de maneira bem-sucedida tem um sentido definido. (Muitas vezes joguei Ring Around O’ Roses, sempre de maneira bem-sucedida.)

Isso ajuda a distinguir o suposto contraexemplo. Claramente, o facto de as regras determinarem o que é realizar uma atividade simpliciter não implica que uma regra define explicitamente algum estado que equivale a realizá-la de maneira bem-sucedida.11 Por exemplo, as regras que sigo quando leio determinam o que é ler; mas falar em “ler de maneira bem-sucedida” faz tanto sentido como “caminhar de maneira bem-sucedida”. Não sabemos o que seria ler “de maneira bem-sucedida”. Pelo que não há, na verdade, qualquer estado explicitamente definido por uma regra como ler de maneira bem-sucedida. Consequentemente, ler por prazer não é um jogo. Evidentemente, podíamos adotar uma regra semelhante (e.g., “Ler de maneira bem-sucedida é ler em voz alta ao ritmo de cem palavras por minuto sem erros”), caso em que estaríamos a jogar um jogo.

Por que razão dançar a valsa não é um jogo, de acordo com a nossa definição? Para dançar a valsa de maneira bem-sucedida é, evidentemente, necessário dançar a valsa.12 Mas isso não é suficiente. O valsar bem-sucedido é o valsar com graça, fluidez e beleza. Concedo que é simplesmente óbvio que o valsar com beleza não é bem-sucedido porque uma regra afirma que o é. A dança é um tipo de matéria-prima usada como meio para realizar características estéticas, à semelhança do modo como o barro é moldado para exibir propriedades semelhantes. É porque valorizamos a graça e a beleza que criamos diversos meios para a sua realização. A beleza é sucesso no valsar porque procuramos a beleza; não procuramos a beleza por esta ser definida como sucesso por uma regra. (Contraste-se com uma linha reta de marcadores no Bingo.) Evidentemente, podíamos adotar uma regra semelhante, caso em que dançar a valsa seria um jogo, como sucede (valha-nos Deus!) num concurso de valsas.

Wittgenstein escreve:

Mas se alguém quisesse dizer: “Há algo comum a todas estas construções — nomeadamente a disjunção de todas as suas propriedades comuns” — replicaria: Agora está simplesmente a brincar com as palavras. Poderia igualmente afirmar: “Algo percorre toda a extensão do fio — nomeadamente a sobreposição contínua dessas fibras”.13

Mas um jogo, na nossa perspectiva, é tipicamente jogado para recreação dos participantes ou espectadores ou para apurar capacidades. Não se trata do gênero de definição disjuntiva que Wittgenstein explicitamente rejeita? Bom, não. Primeiro, todos os jogos têm de partilhar a característica de serem atividades definidas por regras, envolvendo um estado que conta como realizar a atividade de maneira bem-sucedida porque este assim é definido por uma regra arbitrária. Claramente, Wittgenstein tem em vista uma disjunção mais radical, em que nada de importante há em comum e os jogos partilham somente a disjunção de propriedades diferentes. Segundo, as próprias disjuntas têm algo em comum, nomeadamente, refletem o fato de o sucesso nos jogos ser criado por uma regra arbitrária. Tipicamente, não jogamos um jogo por considerarmos intrinsecamente valioso o seu estado de sucesso, nem o jogamos por o seu estado de sucesso ter conexões causais preexistentes com outros estados que valorizamos. Criamos um estado de sucesso definido por uma regra e procuramos alcançá-lo, não porque este tenha valor intrínseco ou um valor instrumental preexistente, mas porque valorizamos a tentativa de o alcançar.

Assim, por que não omitir a condição disjuntiva na definição? Se vivêssemos num mundo em que os processos judiciais fossem resolvidos por meio do xadrez, acreditando que Deus só aos inocentes permitiria colocarem o adversário em xeque-mate, e no qual essa seria a única ocasião para jogos de xadrez, não consideraríamos o xadrez um jogo nem consideraríamos essas atividades um ato de jogar.14 Na verdade, os jogos não são essencialmente jogos, uma característica que a nossa teoria preserva.

Para concluir: a doutrina das semelhanças de família continua viva e influente na filosofia analítica, como o ilustra a citação de Hilary Putnam. Creio que a doutrina teve uma influência particularmente nociva em disciplinas intimamente relacionadas com a filosofia, por exemplo, a teologia filosófica, na qual se tornou numa espécie de ortodoxia.15 Devo confessar um preconceito congênito contra os diversos cantos de sereia que nos convidam a abandonar o projeto filosófico tradicional. Escuto-as cantando docemente além das ondas: “Marinheiro, por que te esforças por descobrir a natureza dos números, da intencionalidade, da referência, da religião, quando estas não têm semelhante coisa?” Este artigo pretende dar um exemplo particularmente relevante da razão por que devemos continuar procurando. À falta de melhores argumentos, proponho que nos amarremos ao mastro e continuemos a navegar.16

Jim Stone
Philosophical Investigations, 17:2, Abril de 1994. Revisão da tradução de Vitor Guerreiro.

Notas

  1. Ludwig Wittgenstein, Philosophical Investigations, 3.ª ed., trad. G.E.M. Anscombe (Basil Blackwell, 1958), parágrafos 66 e 67. A ênfase é dada no original.↩︎
  2. Hilary Putnam, Representation and Reality, (MIT Press, 1988), p. 3. A ênfase é dada no original.↩︎
  3. A citação aqui é de Wittgenstein, 67. O resto da frase que contém a citação parafraseia de perto Wittgenstein 67, exceto que aí ele fala acerca de números.↩︎
  4. As atividades definidas por regras foram originalmente discutidas em John Rawls, “Two Concepts of Rules”, Philosophical Review, Janeiro, 1955, pp. 3-32. Veja em especial pp. 22–29.↩︎
  5. Jonathan Bennett disse-me (em correspondência) que definiu “jogo” jocosamente como “X é um jogo” = “X não é um objeto físico e X pode ser jogado”. O Professor Bennett, que me informou ter tirado esta definição de Ian Hacking há vinte e cinco anos, usa-a para mostrar que analisar algo não é somente encontrar uma conjunção que lhe seja estritamente equivalente.↩︎
  6. Há bastantes atividades recreativas que são apenas passatempos agradáveis, e não jogos, e.g. brincar com um iô-iô. Aqui não há um estado que conta como sucesso porque há regras que o definem. Ou simplesmente apreciamos realizar a atividade, e.g. arremessar uma bola de futebol de um lado para o outro, ou tentar fazer truques e proezas (com um iô-iô, digamos, ou equilibrar um pau sobre o nariz) que contam como sucesso porque tentamos fazê-las. Se uma criança arremessa uma bola contra a parede e a apanha simplesmente porque a atividade lhe é agradável, do mesmo modo que achamos agradável chutar uma bola de futebol de um lado para o outro, não está jogando um jogo.↩︎
  7. Outros estados contam também como sucesso no boxe, por exemplo, atingir o adversário mais vezes do que este o atinge em cada round. Mas exatamente o mesmo ponto se aplica. A regra conta isso como ganhar a luta porque isso é ganhar a luta. Note-se que a regra que define o sucesso pode ser disjuntiva, definindo o sucesso como colocar o adversário em K.O. ou atingi-lo mais vezes do que ele nos atinge ou…↩︎
  8. É certo que fazemos muitas coisas com palavras, mas se uma língua não faz pelo menos isso, não é uma língua.↩︎
  9. Wittgenstein 32. A ênfase é dada no original. Veja também 25: “Diz-se por vezes que os animais não falam porque não têm a capacidade mental. E isso significa: “não pensam e é por isso que não falam” […]”↩︎
  10. Em geral, os quebra-cabeças definidos por regras e os problemas não são jogos, precisamente porque o sucesso em resolver quebra-cabeças tem de consistir em alcançar a resposta correta e o que conta como a resposta correta a um quebra-cabeças não é arbitrário; não poderíamos ter adotado respostas corretas diferentes mantendo constantes as outras regras que definem o quebra-cabeças. Portanto, ao passo que o xadrez é um jogo — podíamos ter definido outro estado que não o xeque-mate como ganhar, em consistência com as outras regras — resolver problemas de xadrez (e.g. “Como podem as brancas forçar o mate a partir desta posição em duas jogadas?”) não é. Quando praticamos derivações lógicas para apurar as nossas capacidades, estamos resolvendo problemas lógicos, não a jogar um jogo. Mas não poderíamos introduzir um jogo que envolvesse o cálculo proposicional, axiomas, regras transformativas, e uma lista de teoremas; e definindo o ganhar como derivar um teorema a partir dos axiomas por meio das regras? E não seria isso um jogo? Seria. Mas note-se que, ao elaborar esse jogo, podíamos ter também definido ganhar como derivar um teorema a partir dos axiomas num número par de linhas, ou em menos de cinco minutos, ou antes de os outros jogadores o fazerem, ou… Na verdade, podíamos ter definido ganhar como realizar inúmeras transformações sobre os axiomas ao mesmo tempo evitando todos os teoremas. Para tratar um cálculo lógico como um jogo, temos de considerar arbitrário o estado de sucesso.↩︎
  11. Isso é assim mesmo que o sucesso seja definido pelas regras como conseguir realizar a atividade, como no Ring around O’ Roses.↩︎
  12. Evidentemente, há a questão de valsar ser ou não realmente definido por regras — um urso treinado pode valsar, mas estará a seguir uma regra? Pequemos pelo lado da objeção e coloquemos isto de parte.↩︎
  13. Wittgenstein, 67.↩︎
  14. Claro que provavelmente observaríamos que o xadrez é como um jogo.↩︎
  15. Veja deste autor, “A Theory of Religion”, em Religious Studies, 27, pp. 337-351.↩︎
  16. Os meus agradecimentos a Judith Crane e Norton Nelkin pelas discussões e comentários úteis.↩︎
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