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Crítica
7 de Janeiro de 2016   Lógica

O que a Tartaruga disse a Aquiles

Lewis Carroll
Tradução de Vítor Guerreiro

Aquiles alcança a tartaruga e senta-se confortavelmente na sua carapaça.

— Então, chegaste ao fim da nossa corrida — perguntou a Tartaruga — apesar de consistir numa série infinita de distâncias? Supunha que um certo sabichão havia provado que tal não poderia ser feito.

Pode ser feito, — retorquiu Aquiles. — Foi feito! Solvitur ambulando. Sabes, as distâncias diminuíam constantemente; e portanto…

— Mas e se em vez disso aumentassem constantemente? — Interrompeu a Tartaruga — O que sucederia?

— Nesse caso eu não estaria aqui — respondeu modestamente Aquiles —, e tu já terias dado a volta ao mundo várias vezes!

— Deixas-me assoberbada, quero dizer, esmagada — disse a Tartaruga — e não minto se te chamar “peso pesado”! Bom, gostarias que te falasse agora numa corrida cuja meta a maioria das pessoas crêem poder alcançar em dois ou três passos, quando na verdade consiste num número infinito de distâncias, cada uma maior do que a anterior?

— Muitíssimo! — Replicou o guerreiro grego, ao tirar do elmo (não era comum naquele tempo os guerreiros gregos terem bolsos) um enorme bloco de notas e um lápis. — Continua! E fala devagar, por favor! A estenografia ainda não foi inventada!

— Aquela belíssima primeira proposição de Euclides! — Murmurou embevecida a Tartaruga — Admiras Euclides?

— Apaixonadamente! Pelo menos tanto quanto se pode admirar um tratado que não verá a luz do dia durante alguns séculos ainda!

— Bom, consideremos um pouco do argumento contido nessa Primeira Proposição — apenas dois passos, mais a conclusão que deles se tira. Tem a gentileza de os anotar no teu bloco de notas. E para que tenhamos um modo de os referir convenientemente, chamemos-lhes A, B e Z:

(A) Duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si.
(B) Os dois lados deste Triângulo são iguais a um terceiro.
(Z) Os dois lados deste Triângulo são iguais entre si.

— Os leitores de Euclides concedem, suponho, que Z se segue logicamente de A e B, de modo que quem quer que aceite a verdade de A e B tem de aceitar a verdade de Z?

— Sem dúvida! O mais jovem aluno de uma Escola Secundária (assim que for inventada a Escola Secundária, daqui a mais ou menos dois mil anos) concederá isso.

— E se um leitor não tivesse já aceitado a verdade de A e B, poderia ainda aceitar a sequência como válida, suponho?

— Sem dúvida que poderia existir semelhante leitor. Poderia dizer “Aceito a verdade da Proposição Hipotética de que, se A e B forem verdadeiras, Z tem de ser verdadeira; mas não reconheço a verdade de A e B”. Esse leitor faria bem em abandonar Euclides e dedicar-se ao futebol.

— E não poderia haver também um leitor que dissesse “Reconheço a verdade de A e B, mas não reconheço a verdade da Hipotética”?

— Seguramente que poderia. Também ele faria melhor em dedicar-se ao futebol.

— E nenhum destes leitores, — prosseguiu a Tartaruga — se encontra para já logicamente obrigado a aceitar a verdade de Z?

— De facto — assentiu Aquiles.

— Ora bem, quero que me consideres como um leitor do segundo género, e me forces, logicamente, a reconhecer a verdade de Z.

— Uma tartaruga a jogar futebol seria… — Começou Aquiles.

— … uma anomalia, claro — interrompeu apressadamente a Tartaruga. — Não te afastes do tema. Primeiro Z, depois o futebol!

— Tenho então de te forçar a aceitar Z? — Disse Aquiles contemplativamente. — E a tua posição por agora é que aceitas A e B mas não a Hipotética…

— Chamemos-lhe C — disse a Tartaruga.

— Nesse caso tenho de te pedir que aceites C.

— Assim farei — respondeu a Tartaruga, — assim que a registes nesse teu bloco de notas. O que mais tens aí?

— Apenas algumas notas — respondeu Aquiles, folheando nervosamente as páginas — algumas notas de… de batalhas nas quais me distingui!

— Muitas páginas em branco, pelo que vejo! — Observou jocosamente a Tartaruga. — Precisaremos delas todas! (Aquiles estremeceu) — Agora escreve como disse:

(A) Duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si.
(B) Os dois lados deste triângulo são iguais a um terceiro.
(C) Se A e B são verdadeiras, então Z tem de ser verdadeira.
(Z) Os dois lados deste triângulo são iguais entre si.

— Devias chamar-lhe D, e não Z, — sugeriu Aquiles. — Vem a seguir às outras três. Se aceitas A e B e C, então tens de aceitar Z.

— E por que razão tenho de o fazer?

— Porque se segue logicamente delas. Se A e B e C são verdadeiras, Z tem de ser verdadeira. Imagino que não contestes isso?

— Se A e B e C são verdadeiras, Z tem de ser verdadeira, — repetiu ponderadamente a Tartaruga. — Essa é outra Hipotética, não? E se não conseguisse ver a sua verdade, poderia aceitar A e B e C e ainda assim não aceitar Z. Certo?

— Poderias, — admitiu o nosso honesto herói — embora tamanha obtusidade fosse sem dúvida fenomenal. Ainda assim, é possível que tal sucedesse. Pelo que tenho de te pedir que concedas uma Hipotética mais.

— Muito bem. Estou mais do que disposto a concedê-la, assim que a tenhas escrito. Chamar-lhe-emos

(D) Se A e B e C são verdadeiras, então Z tem de ser verdadeira.

— Tomaste nota no teu bloco?

— Sim — exclamou alegremente Aquiles, enquanto colocava o lápis na capa. — E finalmente chegámos à meta desta pista de corridas conceptual! Agora que aceitas A e B e C e D, obviamente que aceitas Z.

— Será? — Indagou a Tartaruga com ar inocente. — Explicitemos isso tão bem quanto possível. Aceito A e B e C e D. Suponhamos que ainda assim recuso aceitar Z; e então?

— Então a Lógica forçar-te-ia a fazê-lo! — Replicou triunfantemente Aquiles. — A Lógica dir-te-á “Nada mais podes fazer. Agora que aceitas A e B e C e D, tens de aceitar Z!” Pelo que, como vês, não tens alternativa.

— Tudo o que seja digno de me ser dito pela Lógica é digno de ser anotado. — Disse a Tartaruga. — Portanto, regista-o no teu bloco, por favor. Chamar-lhe-emos

(E) Se A e B e C e D são verdadeiras, Z tem de ser verdadeira.

— Evidentemente, não teria de aceitar Z até que aceitasse essa. Pelo que se trata de um passo necessário, vês?

— Vejo — respondeu Aquiles; e havia na sua voz um tom de tristeza.

Aqui o narrador, tendo assuntos urgentes a tratar no Banco, foi obrigado a abandonar o feliz duo, não tendo regressado ao local senão ao fim de alguns meses. Quando o fez, Aquiles estava ainda sentado sobre a carapaça da mui paciente Tartaruga, e escrevia no seu bloco de notas, que parecia quase cheio. A Tartaruga dizia

— Anotaste esse último passo? Se não perdi a conta, são já mil e um. Muitos milhões mais virão ainda. E pergunto, como favor pessoal, tendo em conta o quão instrutivo será este nosso diálogo para os lógicos do século XIX, se não poderias adoptar um trocadilho que a minha prima, a Tartaruga Fingida, fará então, consentindo em mudar o teu nome para Testudo?

— À vontade! — Retorquiu o extenuado guerreiro, num tom esmorecido de desalento, enquanto escondia o rosto nas mãos. — Desde que, da tua parte, adoptes um trocadilho que nunca ocorreu à Tartaruga Fingida, consentindo em mudar o teu nome para Aquilino!

Lewis Carroll
Mind, 14 (Abril 1895), pp. 278-280.
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ISSN 1749-8457