Uma questão que muito preocupou os filósofos políticos dos séculos XVII e XVIII foi a de encontrar uma justificação racional — dedutiva — para a existência das sociedades humanas. O problema apresenta-se do seguinte modo: sendo um dado indiscutível (ou pelo menos aceitável pela maioria dos contratualistas) que o homem possui uma natureza própria que lhe garante a liberdade e a igualdade, como explicar a existência dos governos e como legitimar o poder destes? E, se à partida todos são naturalmente livres e iguais, como justificar o dever de obediência ao governo por parte de qualquer indivíduo?
A ideia central contida nas respostas a essas perguntas (que não é de modo algum comum a todos os contratualistas) é a de que, sendo o estado natural uma situação que promove a instabilidade e a insegurança, os indivíduos teriam concordado em associar-se e em constituir um governo, cedendo a este último certos poderes. A condição desta cedência era que os governantes utilizassem esse poder para garantir a segurança de todos. E, assim, os indivíduos comprometer-se-iam a acatar as deliberações do governo. Desse acordo resulta um hipotético contrato que, por ser subscrito por todos, faz que todos saibam quais as suas obrigações e quais as obrigações do governo.
A base comum aos vários contratualistas reside no tratamento dos conceitos de “estado de natureza” e de “estado civil”. As diversas soluções apresentadas constroem-se a partir da interpretação e valorização dadas a determinados elementos contidos nesses conceitos. Nos vários filósofos que se interessaram por este problema, o que se encontra são diferentes teorizações do estado de natureza, diferenças essas que levam a diferentes concepções da sociedade. Seguidamente irei apresentar, resumidamente, algumas dessas diferenças.
O modo como os filósofos constroem as suas teorias a partir da noção de “estado de natureza” é fundamental porque é a partir desse trabalho que surgirá a defesa de um determinado regime político. Destaque-se o trabalho de Hobbes. Na sua teoria, o estado de natureza é descrito como uma situação de violência generalizada provocada por um egoísmo exacerbado, no qual todos os outros indivíduos são vistos como obstáculos à satisfação dos desejos de um determinado indivíduo. (Este estado de natureza não é necessariamente histórico, não é uma hipótese teórica, mas é sim derivável de qualquer situação na qual não há, ou deixa de haver, um governo para impor a ordem.)1 Nesta situação, todos têm a possibilidade de eliminar o próximo porque todos possuem a liberdade suficiente para isso. (Não é aqui muito importante entrar em pormenores acerca das causas dessa possibilidade.) Surge desta “guerra generalizada” a necessidade de se entrar num compromisso que crie condições que garantam a segurança de cada um. O pacto social é o resultado da cedência de uma parte da liberdade individual, cedência esta que é uma promessa de obediência a um governo, na condição de ser garantida, por parte deste, a estabilidade. A existência deste governo baseia-se na delegação de poderes absolutos ao soberano (que não é necessariamente um indivíduo) que age em nome da comunidade como um todo, garantindo a paz e a segurança. Esses poderes têm de ser absolutos para que o estado de natureza não prevaleça. Facto interessante é o de o soberano, representando o conjunto dos indivíduos da sociedade, não estar submetido às leis do seu estado. E com isto surge um problema: saber porque é que criaturas racionais escolhem um governo que não está submetido às leis do estado.
Outro caso destacado, que ilustra o modo como o tratamento dado ao estado de natureza leva a concepções diferentes de sociedade, é o de Pufendorf. Aqui, a justificação da sociedade civil é feita pela necessidade de ultrapassar a instabilidade inerente ao isolamento dos indivíduos no estado de natureza, no qual não há quaisquer tipo de relações intersubjectivas. Esta situação justifica a necessidade de dois pactos: o de associação — que forma a estrutura social — e o de submissão política — que constitui a estrutura política. O poder político do soberano torna-se secundário em relação ao poder que deriva da associação de um determinado grupo. Enquanto tal, a política deixa de possuir o estatuto fundador das sociedades. E, como consequência, torna-se possível dissolver determinadas formas de governo sem desmembrar a estrutura social, isto é, sem cair no estado de natureza. Também para Pufendorf a monarquia é o regime escolhido; não necessariamente, mas por ser o mais conveniente dada a sua estabilidade.
Julgo que estes dois casos são suficientes para apresentar (ainda que de um modo simplista e a partir de fontes secundárias) as pretensões do contratualismo. Para finalizar, registem-se algumas objecções a essa teoria.2
Em primeiro lugar pode dizer-se que, se não houve realmente contrato, então nem os governos, nem as pessoas estão “obrigadas” a cumprir as suas promessas. Isto que faz que — de acordo com o contratualismo — nenhum governo seja legítimo. Defende-se, como alternativa, que esta consequência é implausível, uma vez que o que legitima os governos actuais — e a obrigação que lhes é devida — é a justiça da suas acções, e não a sua hipotética origem contratual. Objecta-se também que a insistência na justificação contratualista acaba por abranger não só os governos justos, mas também os injustos. Um contratualista poder defender-se dizendo que as pessoas assinariam um contrato que estipulasse a obediência apenas a governos justos e, assim, pode falar-se de um “contrato hipotético” entre governados e governantes. Contudo, se o contrato é meramente hipotético, então, novamente, nada obriga a que promessas hipotéticas tenham de ser cumpridas, uma vez que ninguém se comprometeu, de facto, com nenhuma obrigação.
Em segundo lugar, repare-se que a teoria do contrato social justifica a obediência aos governos pela necessidade de cumprir as nossas promessas. O ponto é que podemos sempre colocar a pertinente questão de saber por que deveremos nós cumprir as nossas promessas. Os contratualistas caem no erro de substituir um dever já em si duvidoso — a obediência — por outro também duvidoso — o cumprimento de promessas.
Luís Filipe Bettencourt