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17 de Setembro de 2022   Lógica

Para que serve a lógica?

Desidério Murcho

Uma maneira esclarecedora de compreender o que é a lógica e qual é a sua importância é compreender primeiro o que é o raciocínio e qual é a sua importância. Será aqui abordado sobretudo o raciocínio discursivo, que é onde a lógica desempenha o seu papel mais óbvio, mas nem todo o raciocínio é discursivo. Quando reconhecemos um rosto humano, subimos um lance de escadas ou até quando caminhamos, a quantidade de raciocínio exigida é impressionante. Contudo, está quase inteiramente fora do nosso controlo. Fazemo-lo, demorámos anos a aprender a fazê-lo desde o tempo em que gatinhávamos, mas não sabemos exactamente como o fazemos. De modo que será abordado aqui sobretudo o raciocínio discursivo: o tipo de raciocínio que fazemos usando uma linguagem. A matemática, a ciência, a filosofia, a história e a arqueologia fazem-se com raciocínio discursivo; e o raciocínio quotidiano também é em parte discursivo.

O raciocínio discursivo é uma tentativa de provar uma conclusão com base numa ou mais premissas — e o que não é discursivo não anda longe disto, se bem que neste caso não faça muito sentido falar literalmente de premissas e conclusões. Toda a gente raciocina todos os dias, mesmo sem uma compreensão robusta do que é raciocinar, nem de como se raciocina bem. E é aqui que entra a lógica. O objectivo desta área de estudos é ter uma compreensão mais robusta do raciocínio, e desenvolver instrumentos para distinguir o bom do mau raciocínio. No último século, o progresso da lógica tem sido notável, apesar de ser ainda em grande parte mal compreendida, sobretudo porque é muito mais fácil compreender aplicações específicas da lógica, como o raciocínio estatístico, e também porque não temos uma única lógica completamente geral que seja consensual entre os especialistas — apesar de a lógica clássica e as suas extensões serem talvez as mais promissoras.

Sem raciocínio discursivo, ficaríamos reduzidos ao que conseguimos saber só pela observação directa. Não saberíamos o que aconteceu há sessenta e seis milhões de anos que eliminou a maior parte da fauna do planeta, e não saberíamos que a água é feita de oxigénio e hidrogénio. Para saber a maior parte do que queremos saber precisamos de raciocinar, ou seja, precisamos de tentar chegar a uma conclusão com base numa ou mais premissas, porque não temos uma maneira mais directa de descobrir essa conclusão. É por isso que o raciocínio é importante, e, consequentemente, é por isso que a lógica é importante.

O raciocínio discursivo ora é dedutivo, ora indutivo. Até muito recentemente, só o primeiro estava apropriadamente compreendido (ainda que se tratasse apenas de alguns dos seus tipos), porque não tínhamos instrumentos matemáticos para aplicar adequadamente ao raciocínio indutivo — instrumentos do género dos que temos no caso da dedução desde as primeiras décadas do século XX. Mas qual é exactamente a diferença entre o raciocínio dedutivo e o indutivo? Há algumas diferenças cruciais, mas a mais fundamental é que o raciocínio dedutivo é exclusivamente linguístico, ao passo que o indutivo não o é. Eis um exemplo de uma dedução válida:

Se Úrsula nasceu em Tiradentes, nasceu no Chile.
Contudo, ela não nasceu no Chile.
Logo, não nasceu em Tiradentes.

Para saber que esta dedução é válida, não precisamos de saber quem é a Úrsula, nem onde nasceu ela; não precisamos de saber onde fica Tiradentes, nem se é ou não uma localidade chilena. Tudo o que temos de conhecer é as condições de verdade das três afirmações, e a maneira como estão organizadas. Apesar de a maior parte das pessoas serem incapazes de o descobrir por si, sem ajuda matemática, esta dedução é válida — porque qualquer condição de verdade na qual as duas premissas sejam verdadeiras é também uma condição de verdade em que a conclusão é verdadeira. Eis um pequeno arrazoado para mostrar por que razão isto é assim:

Suponha-se que a conclusão é falsa. Há alguma condição de verdade na qual as duas premissas sejam verdadeiras, dada essa suposição? A resposta é que não há. Não há, porque se a conclusão for falsa, então ela nasceu em Tiradentes. Contudo, se a primeira premissa for verdadeira, ela nasceu no Chile, o que significa que a segunda premissa é afinal de contas falsa. E caso suponhamos agora que a segunda premissa é verdadeira, isso significa que a primeira é falsa, porque nesse caso ela nasceu em Tiradentes, mas não no Chile, e consequentemente não é verdadeiro que se ela nasceu naquela cidade, nasceu naquele país.

Eis uma dedução mais simples, que qualquer pessoa consegue ver que é válida, mesmo que não tenha formação lógica:

Úrsula e Marguerite são cineastas.
Logo, Úrsula é cineasta.

Neste caso, é completamente óbvio que qualquer condição de verdade na qual a premissa seja verdadeira é também uma condição de verdade na qual a conclusão será verdadeira. E sabemo-lo sem precisarmos de saber quem são aquelas pessoas, nem se são realmente cineastas. É isto que significa dizer que a dedução é uma forma meramente linguística de raciocínio: tudo o que precisamos de conhecer para saber que uma dedução é válida, ou inválida, é as condições de verdade de todas as suas afirmações. Isto não basta, contudo, no caso do raciocínio indutivo. Neste caso, o conhecimento linguístico não é suficiente; precisamos também de conhecimento de fundo geral para determinar se as premissas de um raciocínio indutivo apoiam, ou não, a conclusão. Será dado a seu tempo um exemplo deste tipo de raciocínio.

Para já, é importante compreender o próprio conceito de condição de verdade. Considere-se a afirmação “Há extraterrestres azuis inteligentes”. Não sabemos se esta afirmação é verdadeira, ou se será falsa. Talvez seja verdadeira, talvez seja falsa. Não sabemos. Não somos omniscientes; há um número indefinido de afirmações verdadeiras que não sabemos que são verdadeiras, e também um número indefinido de afirmações falsas que não sabemos que são falsas. E o que há de terrível quanto a nós é que há muitas afirmações falsas que muitas pessoas acreditam que são verdadeiras sem provas adequadas, e também muitas afirmações verdadeiras que muitas pessoas acreditam que são falsas sem provas adequadas. Voltaremos a este tema.

Para já, note-se que não sabemos se a frase “Há extraterrestres azuis inteligentes” é verdadeira ou falsa. Contudo, há algo que sabemos: sabemos que se há extraterrestres azuis inteligentes, então aquela afirmação é verdadeira; e sabemos que aquela afirmação é falsa se não existirem tais seres. Por outras palavras, não sabemos qual é o valor de verdade daquela afirmação, mas sabemos quais são as suas condições de verdade, porque sabemos quais são os requisitos para que aquela afirmação seja verdadeira, e quais são os requisitos para que seja falsa. Assim, as condições de verdade de uma afirmação são aquelas condições nas quais essa afirmação é verdadeira, e as outras condições nas quais é falsa.

O raciocínio dedutivo é meramente linguístico precisamente nesse sentido: quando é válido, o nosso conhecimento das condições de verdade das suas afirmações é suficiente para saber que não terá conclusão falsa caso todas as premissas sejam verdadeiras.

De notar que em lógica e filosofia a palavra “válido” é entendida num sentido especializado. Quase todos os cientistas e leigos usam esta palavra de maneira diferente. É um pouco como velocidade e aceleração, na física, ou massa e peso. A maior parte das pessoas, à excepção dos físicos, usam os dois pares de palavras como se quisessem dizer aproximadamente o mesmo. No seu sentido especializado, contudo, aqueles dois pares de palavras não querem dizer o mesmo — e a física nem sequer dá os primeiros passos a menos que distingamos cuidadosamente a velocidade da aceleração e a massa do peso. O mesmo acontece com o conceito de validade. No seu sentido especializado, em lógica e filosofia, a validade é uma característica do raciocínio dedutivo, e não é o mesmo que a verdade. Num dado raciocínio, as suas afirmações são verdadeiras ou falsas, mas não são válidas nem inválidas, porque a validade diz respeito ao raciocínio constituído por essas afirmações. Por outro lado, o próprio raciocínio não é verdadeiro nem falso, mas antes válido ou inválido, porque a verdade e a falsidade são características de afirmações, e não de raciocínios. É um pouco como ser numeroso. Os indianos são numerosos, porque há muitos, mas nenhum indiano individual é numeroso, porque essa é uma característica do conjunto dos indianos, e não dos indianos individuais. Simetricamente, o conjunto dos indianos não tem cérebro, que é uma coisa que todos os indianos certamente têm. Só porque todos os membros de um conjunto têm uma dada característica, isso não significa que o conjunto tenha também essa característica, nem vice-versa. De modo que quando as pessoas falam de raciocínios verdadeiros ou de afirmações válidas, isso significa que nada praticamente sabem de lógica. São como crianças perdidas na floresta, e nem têm disso consciência.

A validade, pois, é o que temos num raciocínio quando as suas afirmações estão organizadas de tal maneira que não há condições de verdade nas quais a conclusão seja falsa, caso todas as premissas sejam verdadeiras. É esta característica do raciocínio dedutivo que nos permite descobrir o que não sabíamos, com base no que já sabemos. Assim, se uma pessoa souber que Úrsula não nasceu no Chile, e se souber também que se ela nasceu em Tiradentes, nasceu no Chile, essa pessoa, caso saiba raciocinar bem, consegue descobrir algo de novo acerca de Úrsula: que não nasceu em Tiradentes.

Contudo, a validade não é suficiente para que tenhamos um bom raciocínio dedutivo. Pelo menos duas outras condições são necessárias — condições que serão abordadas a seu tempo. Contudo, note-se que a validade é a única condição estritamente lógica, no sentido de ser a única condição para a análise da qual temos instrumentos matemáticos. As outras duas condições caem fora do âmbito da lógica num sentido estrito, matemático — ainda que façam parte da lógica, concebida de maneira abrangente como um instrumento geral para examinar o raciocínio, concepção esta da lógica que a aproxima sobremaneira, e ainda bem, de uma área da filosofia conhecida como “teoria do conhecimento” ou “epistemologia”.

É óbvio que alguns raciocínios perfeitamente válidos são apesar disso bastante desastrados, porque têm premissas falsas. É dedutivamente válido concluir que Aristóteles nasceu em Portugal das premissas de que 1) ou nasceu na Grécia ou em Portugal e 2) não nasceu na Grécia. Apesar de válido, contudo, este raciocínio é bastante desastrado, porque a segunda premissa é falsa. Para chegar a conclusões verdadeiras, é preciso começar com premissas verdadeiras; a validade não basta. Por outro lado, sem validade, as premissas verdadeiras não fazem seja o que for para provar que a conclusão é verdadeira. Precisamos tanto da validade como de premissas verdadeiras para chegar a uma conclusão verdadeira. O raciocínio é sólido quando é ao mesmo tempo válido e todas as suas premissas são verdadeiras. Todas as deduções sólidas têm conclusões verdadeiras. Este é o conceito semitécnico de solidez.

Porém, como sabemos que as premissas são de facto verdadeiras? Como deveria ser evidente, isso depende das premissas. Talvez sejam acerca de planetas e estrelas; nesse caso, precisamos de astronomia. Ou talvez sejam acerca da depressão; nesse caso, precisamos de psicologia ou psiquiatria. É quase certo que as nossas premissas, a menos que sejam as mais óbvias afirmações do aqui-e-agora, serão em si conclusões de outros raciocínios, sejam eles dedutivos ou indutivos. É esta característica que nos dá uma espécie de árvore inferencial, na qual vários fragmentos de raciocínio se combinam de várias maneiras para nos permitir chegar a uma conclusão geral. E como já se sugeriu, em quase todos os casos, com a distinta excepção da própria lógica e da matemática, combinamos vários raciocínios dedutivos e indutivos para tentar saber seja o que for que queremos saber. Nem a indução por si, nem a dedução, nos levam muito longe. Precisamos de ambas — excepto, é claro, na matemática e na lógica, onde todos os resultados técnicos são puramente dedutivos, ainda que mesmo aí se encontre um imenso pano de fundo de pressupostos que, afinal, são também indutivos.

Foram mencionadas três condições para que um raciocínio seja bom, e só se falou até agora de duas delas: a validade e a verdade das premissas. Por que razão não é isto suficiente? Afinal, todos os raciocínios sólidos têm conclusão verdadeira. E o que se quer é isso mesmo: conclusões verdadeiras. Ou não?

Bem, em rigor, não é isso que se quer. Queremos também saber que essas conclusões são verdadeiras. E porque não somos omniscientes, ser verdadeiro não significa que sabemos que é verdadeiro. Há muitas afirmações verdadeiras que acreditamos erradamente que são falsas, e vice-versa. Só porque uma afirmação é verdadeira, isso não significa que sabemos que o é. Para sabermos que uma afirmação é verdadeira precisamos de provas, e o raciocínio é uma maneira de tentar provar que uma dada conclusão é verdadeira. Não há outra maneira apropriada de tentar descobrir se uma dada conclusão é verdadeira a não ser começando com algo que já acreditamos que sabemos. Considere-se o seguinte raciocínio, que não é propriamente genial:

Há extraterrestres azuis inteligentes.
Logo, há extraterrestres azuis inteligentes.

A primeira surpresa aqui é que esta é uma dedução válida, porque não há condições de verdade na qual a premissa seja verdadeira, apesar de a conclusão ser falsa. Mas isso só é assim porque a premissa é igual à conclusão. O raciocínio é viciosamente circular, é claro, mas isso não quer dizer que não seja válido, porque a validade, no sentido especializado da lógica, não quer de modo algum dizer que o raciocínio é bom.

E que dizer da solidez? Aquele raciocínio é sólido? Bem, se houver extraterrestres inteligentes azuis, o raciocínio é sólido, porque é válido e porque, nesse caso, a premissa será verdadeira. Contudo, é óbvio que somos incapazes de usar este raciocínio para descobrir se a conclusão é verdadeira, simplesmente porque teríamos de saber de antemão que a premissa é verdadeira — mas a premissa é a mesma afirmação que encontramos na conclusão. De modo que precisaríamos de saber de antemão que a conclusão é verdadeira, para conseguirmos provar que é verdadeira com este raciocínio. E isso seria uma tolice, claro.

Assim, como se vê agora claramente, a solidez não é suficiente para que um raciocínio seja bom. É também necessário que o raciocínio não seja circular. Ora, este é um conceito epistémico, no sentido em que diz respeito às nossas maneiras de tentar descobrir coisas e saber coisas. Para descobrir algo que ainda não sabemos, precisamos de começar por algo que já sabemos. Contudo, o conceito de conhecimento é enganador, porque tem um pé fora do nosso controlo, e outro perfeitamente sob o nosso controlo. Precisamos de ter cuidado ao entrar nestas águas, porque muitas pessoas pretendem falar e escrever acerca do conhecimento sem se darem conta de que, afinal de contas, não estão falando do conhecimento.

E o que é o conhecimento, afinal de contas? Bem, seja o que for que se possa dizer, não é certamente o mesmo do que a verdade, porque há muitas afirmações verdadeiras que desconhecemos. E o conhecimento não é também seja o que for que por acaso pensamos que é conhecimento, porque não somos omniscientes: em muitos casos, acreditamos que sabemos, mas não sabemos; estamos enganados.

Para que consigamos saber que a Terra está parada, a Terra precisa de estar parada. Se a Terra não estiver parada, não sabemos que está parada, ainda que pensemos que sabemos que o está. Neste caso, temos essa crença, mas estamos enganados. Isto é o que em filosofia e linguística é conhecido como “a factividade do conhecimento”: podemos acreditar erradamente que sabemos que a Terra está parada mas, a menos que a Terra esteja parada, não o sabemos. É isto que significa dizer que o conhecimento tem um pé fora do nosso controlo; esse pé é a verdade. Para que realmente saibamos seja o que for, em contraste com a crença falsa de que sabemos, a verdade tem de estar envolvida — e a verdade está largamente fora do nosso controlo. Se há ou não extraterrestres inteligentes azuis, isso é algo que está fora do nosso controlo. Se há, a afirmação em questão é verdadeira, e é falsa caso contrário. A verdade, felizmente, está na sua maior parte fora do nosso controlo. (Porquê “na sua maior parte”? Porque em alguns casos temos controlo sobre o que é verdadeiro: quando uma pessoa corre, a afirmação “Ela está correndo” é verdadeira, porque ela está correndo: foi ela que tornou essa afirmação verdadeira.)

De modo que o conhecimento tem um pé na verdade, que é algo que está em grande parte fora do nosso controlo. Contudo, o conhecimento não diz respeito apenas à verdade. Talvez algumas pessoas acreditem que há extraterrestres inteligentes azuis, mas não o sabem efectivamente, ainda que eles existam. Para saber realmente algo é preciso ter provas; a verdade não chega. E o que são as provas? É a nossa maneira de tentar descobrir a verdade. Uma prova é seja o que for que conta apropriadamente a favor de uma dada conclusão. Ver uma borboleta pousada na nossa perna é uma prova suficientemente boa, em condições comuns, de que está de facto uma borboleta pousada na nossa perna. Mas ouvir vozes que mais ninguém ouve, quando uma pessoa sobe à montanha e faz jejum durante dois dias, não é uma prova suficientemente boa de que essa é a voz de Deus. Em epistemologia, é comum usar o termo “justificação” para falar de provas, mas o que há de importância capital a compreender aqui, seja qual for o termo que se use, é que ter uma boa prova ou justificação de uma coisa qualquer não implica que isso é realmente verdadeiro; as provas não são factivas, ao contrário do conhecimento.

Voltando ao raciocínio, este é o nosso principal instrumento de descoberta da verdade. Sem raciocínio, a observação seria fútil. Quando observamos certos resultados num laboratório, precisamos ainda de raciocinar para concluir que uma cerca hipótese científica foi refutada, ou vindicada. Raciocinar é inferir conclusões a partir de premissas que, tanto quanto conseguimos ver, provam essas conclusões.

Não há conhecimento, no sentido declarativo em que sabemos que as baleias não são peixes, sem raciocínio discursivo de algum tipo, e este é o pedaço que está sob o nosso controlo. O conhecimento declarativo exige prova ou justificação, e isto envolve raciocínio discursivo. O raciocínio discursivo está sob o nosso controlo, o que significa que conseguimos raciocinar cuidadosa e responsavelmente, ou irresponsavelmente, que é a alternativa de eleição da maior parte dos terráqueos.

Agora que clarificámos um pouco o conceito de conhecimento, estamos em condições de retomar o tema e explicar o que há de errado no raciocínio viciosamente circular. Ainda que seja sólido, este tipo de raciocínio é evidentemente deficiente. Mas porquê? Há aqui dois factores em jogo, e só um deles é óbvio desde o início. É óbvio desde logo que não há maneira alguma de provar adequadamente uma afirmação se começarmos por ela ou por uma qualquer equivalente verbal. Eis um exemplo deste último caso:

Nenhuma sociedade realmente justa carece de igualdade.
Logo, não há justiça sem igualdade.

Neste caso, a conclusão não é exactamente a mesma afirmação que se encontra na premissa, mas o raciocínio é à mesma viciosamente circular, porque quem considera a conclusão duvidosa, considera que também a premissa o é.

Porém, qual é o segundo factor aqui em jogo que não é assim tão óbvio? Trata-se de um factor tão crucial, que não é talvez um exagero afirmar que explica por si o sucesso da ciência. Considere-se a diferença entre as seguintes duas situações:

  1. Casualmente, uma pessoa olha pela janela e vê o que parece alguém que caminha naquela manhã muito fria e chuvosa.
  2. Casualmente, uma pessoa olha pela janela e vê o que parece alguém a voar como o Super-Homem.

No primeiro caso, a prova visual casual é perfeitamente suficiente para traçar a conclusão de que alguém está efectivamente a caminhar lá fora. Contudo, precisamente a mesma prova não é suficiente no segundo caso. Porquê? Porque a conclusão a traçar no segundo caso é bastante implausível, ao passo que, no primeiro, a conclusão é comum até mais não. Isto significa que não avaliamos as provas no vácuo; avaliamo-las contra um pano de fundo de crenças prévias. Sempre que uma prova parece apontar na direcção de uma conclusão muitíssimo implausível, exigimos mais e mais provas plausíveis, tão perto de serem incontestáveis quanto o conseguirmos. O elemento indutivo aqui é óbvio, e quem já conhece o raciocínio indutivo bayesiano está em casa. Voltaremos ao tema daqui a pouco; para já, importa persistir no raciocínio dedutivo e no papel crucial que o conceito de plausibilidade prévia desempenha também aqui. Numa palavra, a terceira condição para que um raciocínio dedutivo seja bom, além da validade e da verdade das premissas, é esta: as premissas precisam de ser mais plausíveis do que a conclusão.

Esta terceira condição vai além de bloquear o raciocínio viciosamente circular; ajuda além disso a explicar por que razão começa por ser viciosamente circular. E é-o porque para descobrir algo é preciso começar pelo que é mais plausível do que o que queremos descobrir. Imagine-se que alguém está a tentar descobrir se há oxigénio em Marte. É simplesmente desatinado tentar fazê-lo partindo de premissas que não sejam mais plausíveis do que a hipótese de que há oxigénio em Marte; se essas premissas não são mais plausíveis e contudo as aceitamos para traçar essa conclusão, por que não poupar trabalho e aceitar também que há oxigénio em Marte desde logo? Isto significa que há uma espécie de princípio epistémico geral com respeito ao raciocínio probatório, ou seja, o raciocínio que visa descobrir algo que ainda não sabemos. O princípio é que para o fazermos adequadamente precisamos de começar com premissas que sejam mais plausíveis do que a conclusão que estamos a tentar traçar.

Repare-se que este princípio epistémico aplica-se apenas ao raciocínio probatório, e nem tudo o que se apresenta como raciocínio tem esse aspecto probatório — em alguns casos, não pretendemos encontrar provas a favor de uma dada conclusão que ainda desconhecemos, mas antes explicar por que razão é verdadeira uma conclusão que já sabemos que é verdadeira. E por vezes este tipo de tarefa é explicitada na forma de um raciocínio dedutivo, ainda que neste caso não se trate de modo algum de raciocínio probatório.

Eis um exemplo. Suponha-se que uma criança vê água fervendo pela primeira vez, e pergunta por que razão está fervendo. Quem lhe responde tenta então explicar-lhe as leis da natureza relevantes que estão em operação naquele fenómeno, e essa explicação é susceptível de ser entendida como um raciocínio dedutivo: isto e aqueloutro ocorre; logo, a água está fervendo. Obviamente, a conclusão é muito mais óbvia e plausível do que as premissas, e não apenas para a criança. Porquê? Porque basta olhar para ver a água fervendo. Mas não se consegue olhar e com esse simples gesto ver que as leis da natureza são assim e assado. As premissas usadas são menos plausíveis do que a conclusão — e não há problema algum com isso, porque este não é um caso de raciocínio probatório, mas antes de raciocínio explicativo.

Eis outro exemplo de raciocínio que não é probatório. Em lógica conseguimos provar, por exemplo, que a afirmação “Úrsula é grega ou não” é uma verdade lógica, usando premissas que são menos óbvias do que esta afirmação. Isto ocorre porque não estamos a tentar descobrir se aquela afirmação é verdadeira; isso já nós sabemos. O que estamos a tentar descobrir é se conseguimos provar que é verdadeira usando princípios lógicos mais fundamentais.

Esta terceira condição do raciocínio bom — a que vou chamar “cogente”, a partir de agora — é bastante mais óbvia quando raciocinamos para tentar persuadir alguém. Um argumento, não no sentido de uma disputa irracional, mas antes no sentido lógico, é um raciocínio que visa persuadir alguém. Ora, se uma pessoa está a tentar persuadir outra de uma maneira apropriada, o que é muito diferente de manipulá-la, terá de começar de premissas que aquela pessoa considera plausíveis; de outro modo, ela limitar-se-á a rejeitá-las. E se a pessoa está a tentar persuadi-la de que a conclusão é verdadeira, isso significa que a outra não a considera plausível, pelo menos à partida. De modo que é preciso partir de premissas que quem não aceita a conclusão considere mais plausíveis do que a conclusão.

Porém, o que é, afinal, a plausibilidade? É um juízo quotidiano, e bastante impreciso, de probabilidade. A plausibilidade é o que parece mais ou menos provável a alguém, e diferentes pessoas podem fazer diferentes juízos de plausibilidade. A plausibilidade é fortemente subjectiva, ao contrário da verdade e da validade. Porém, não é irredutivelmente subjectiva, porque se consegue provar muitas afirmações inicialmente implausíveis. Por exemplo, se alguém afirmar que dobrar cinquenta vezes uma folha comum de papel, que tem cerca de 0,1 milímetros de espessura, tem como resultado uma espessura de mais de cem milhões de quilómetros, isso é muitíssimo, muitíssimo implausível. Contudo, consegue-se provar de maneira simples que as coisas são mesmo assim, e depois disso a afirmação é ajuizada como maximamente plausível: provou-se que é verdadeira.

Na verdade, o próprio fito da argumentação, quando argumentamos cooperativamente para tentar descobrir a verdade, é fazer diminuir o fosso hiante entre o que a outra pessoa considera plausível e o que nós consideramos plausível. Quando duas pessoas razoáveis discordam quanto a uma questão, precisam de dar um e outro passo atrás até conseguirem descobrir um terreno comum, a partir do qual possam então tentar descobrir que conclusão retirar das premissas que ambos consideram plausíveis.

Evidentemente, que não é isto que os terráqueos tendem a fazer, em geral, quando argumentam; em vez de tentarem descobrir a verdade, é muito comum que as pessoas tentem manipular as outras, enganá-las e marcar pontos numa guerra verbal. Trata-se de um exercício imoral, e é uma pena que em vez de ser publicamente condenado seja, ao invés, desfrutado como um entretenimento doentio, mais ou manos como ver touradas. O dolo epistémico é muito comum entre terráqueos. Raciocinar bem não é coisa natural no nosso planeta.

Passando agora à indução, trata-se de um tipo muito diferente de raciocínio, porque não é meramente linguístico. Para saber se um dado raciocínio dedutivo é válido ou não, exige-se apenas o exame cuidadoso das condições de verdade de todas as suas afirmações; o conhecimento de fundo sobre o mundo em geral é irrelevante. Porém, no caso do raciocínio indutivo, o conhecimento de fundo sobre o mundo é crucial. Porque a dedução é tão diferente da indução, é hoje em dia comum reservar a palavra “validade” para a dedução, ao contrário do que alguns autores faziam há umas décadas. Isto é só uma convenção. Se uma pessoa falar de validade indutiva, terá de dizer que é um tipo muito diferente de validade. Hoje em dia é comum reservar a palavra “validade” para a dedução, e falar acerca de premissas que apoiam indutivamente a conclusão, no caso da indução.

Para ver claramente a diferença mais fundamental entre a dedução e a indução, considere-se o raciocínio óbvio que conclui que a probabilidade de sair caras é de 1/2, depois de Úrsula lançar uma moeda ao ar:

Úrsula lançou uma moeda ao ar.
Logo, há uma probabilidade de cinquenta por cento de a moeda sair caras.

Este não é um bom raciocínio indutivo, por razões que se tornarão visíveis daqui a pouco, mas é um ponto de partida razoável. Por agora, note-se que dependemos do conhecimento de fundo para ajuizar se o raciocínio está pelo menos na direcção certa. Por que não retirar a conclusão de que a moeda irá ficar de pé? Ou que irá ficar parada no ar? Ou explodir? Ou simplesmente transformar-se num elefante púrpura com asas? Todas estas hipóteses remotas são tão boas como quaisquer outras, se ignorarmos o conhecimento de fundo que temos acerca do mundo, e pensarmos ao invés exclusivamente em condições de verdade. Recorde-se que, para saber se uma dedução é válida, basta pensar nas condições de verdade: há alguma condição de verdade, de todo em todo, ainda que completamente louca e rebuscada, na qual as premissas sejam todas verdadeiras e a conclusão falsa? Não é preciso saber seja o que for acerca do mundo em geral; a competência linguística é suficiente.

No caso da indução, contudo, é claro que essa competência não é suficiente. A conclusão indutiva de que a moeda tem uma probabilidade de cinquenta por cento de sair caras não é melhor do que a conclusão de que irá transformar-se num elefante púrpura com asas, caso só se tenha em consideração as condições de verdade daquelas afirmações. Por mais forte que seja um raciocínio indutivo, há sempre condições de verdade em que todas as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa. Tudo o que isto quer dizer, contudo, é que o raciocínio indutivo não é dedutivo — o que não é uma surpresa assim tão grande. Os padrões dedutivos são simplesmente demasiado grosseiros; é como tentar ver bactérias a olho nu. Quando temos dois raciocínios indutivos, mesmo que um seja muito melhor do que o outro, ambos são dedutivamente inválidos, por igual. O ponto importante aqui é que isso é irrelevante.

Voltando um pouco atrás, por que razão o raciocínio indutivo da moeda não é particularmente bom? Porque é o que seria apropriado chamar uma “indução preguiçosa”, e o facto de parecer que este género de induções são razoáveis é talvez um dos factores cruciais que explica por que razão os terráqueos demoraram tanto tempo a descobrir a ciência, e por que razão ainda hoje a maior parte das pessoas têm dificuldade em compreender as características mais básicas do raciocínio científico, que é crucialmente indutivo. Suponha-se que alguém afirma que Úrsula comprou a sua moeda numa loja de truques de magia. Subitamente, não parece uma boa ideia inferir que a moeda tem cinquenta por cento de hipóteses de sair caras. Talvez a moeda esteja viciada, de modo que sai coroas a maior parte das vezes. Como se vê, o conhecimento de fundo é o coração da questão quando se trata do raciocínio indutivo.

Assim, um raciocínio indutivo promissor irá incluir a premissa de que a moeda não parece viciada. Contudo, mesmo assim a indução seria muito preguiçosa. Uma boa indução, neste caso, exige que se lance a moeda ao ar pelo menos umas dezenas de vezes e se registe os resultados, para então se inferir indutivamente que a probabilidade de sair caras é de cinquenta por cento. Esta é uma exigência crucial da indução sólida, porque o mundo não é perfeitamente uniforme. Não há qualquer uniformidade perfeita na natureza; há algumas uniformidades ou regularidades, mas estas existem contra um pano de fundo de excepções, irregularidades e não-uniformidades. O raciocínio indutivo intuitivo, preguiçoso, está quase sempre errado precisamente devido a este aspecto: os terráqueos tendem a esperar regularidades quando não há regularidades. Descobrir regularidades é importante, e é uma das principais missões da ciência, mas as regularidades genuínas são muito difíceis de descobrir. O simples facto de uma coisa se seguir a outra não é suficiente para inferir que uma é um efeito da outra, ou sequer que ocorrem regularmente juntas. Desde que existe Terra, o Sol sempre nasceu, todos os dias, até hoje — mas concluir que sempre irá nascer sempre no futuro é uma inferência indutiva terrível.

Para ver claramente a tentação ilógica de pressupor regularidades quando não há boas razões para o fazer, e para ver ao mesmo tempo como o conhecimento de fundo é crucial, considere-se o seguinte raciocínio indutivo:

Sete bolas foram retiradas de uma caixa fechada que tinha oito bolas.
Todas as bolas retiradas até agora são pretas.
Logo, a última bola que falta é provavelmente preta.

Esta previsão indutiva é na verdade terrível, mas intuitivamente parece boa. É terrível porque ainda não temos suficiente conhecimento de fundo. Talvez se trate de bolas de um jogo que tem sete bolas pretas e uma branca. Nesse caso, a previsão segura é que a próxima bola será branca, e não preta. Ou talvez se trate de bolas usadas num jogo só com bolas pretas, caso em que a previsão é que a próxima bola será também preta. Contudo, sem conhecimento de fundo acerca daquelas bolas e da caixa, não há simplesmente qualquer boa previsão indutiva a fazer. Acontece apenas que não sabemos; é daqueles casos em que os sábios fazem silêncio e os tolos concluem alegremente.

Por que razão é isto tão crucial para o raciocínio científico, e ao mesmo tempo tão contra-intuitivo? Porque os cérebros humanos são essencialmente péssimas máquinas previsivas, que se baseiam em padrões óbvios; em contraste, o bom raciocínio científico, indutivo, tem de pôr de lado os padrões fáceis e proceder activamente à experimentação, para tentar descobrir padrões genuínos.

Eis outro exemplo. Uma pessoa faz a sua vida na cidade onde vive, vai às compras, vai trabalhar e vai a vários outros sítios da sua cidade. De vez em quando, vê um corvo preto. E parece-lhe que nunca viu um corvo que não fosse preto. Tem ela dados suficientes para inferir bem indutivamente que todos os corvos são pretos?

Claro que não. Ela irá sentir essa tentação — esta é uma aposta segura. Os cérebros humanos funcionam dessa maneira. Contudo, ela não tem simplesmente dados suficientes para inferir indutivamente seja o que for desse género. Que teria ela de fazer? Isto é crucial para compreender o raciocínio indutivo sólido. Eis uma lista de três tarefas importantes que ela tem de levar a cabo para conseguir inferir indutivamente bem seja o que for acerca de corvos:

  1. Observação sistemática. A observação casual, quotidiana, é quase completamente irrelevante. Ela tem de observar os corvos sistematicamente, o que significa ir à procura deles, tentar observar o máximo de corvos que for praticável, e em tantos sítios diferentes do mundo quanto possível. Isto significa obviamente que as boas induções exigem cooperação; ela precisa de uma equipa de cientistas que a ajudem a observar corvos sistematicamente. Precisa de um programa científico de observação de corvos. Preferencialmente, espalhados por todo o planeta. Se só conseguir fundos para fazer observações sistemáticas na Europa, então a hipótese em estudo dirá respeito apenas aos corvos europeus, e não aos corvos do mundo inteiro.
  2. Procura de contra-exemplos. Ela precisa de procurar activamente corvos que não sejam pretos — e isto é exactamente o oposto do que fazemos intuitivamente. Nas nossas vidas diárias, em geral, reparamos apenas naqueles casos que parecem confirmar as nossas expectativas, e rapidamente esquecemos ou nem sequer reparamos nos casos que são contrários a essas expectativas. O raciocínio indutivo apropriado, pelo contrário, é muito sensível a contra-exemplos, simplesmente porque isso poupa-nos imenso trabalho. Encontrar um corvo que não seja preto é suficiente para refutar a hipótese indutiva de que todos os corvos são pretos.
  3. Registos fidedignos. A memória humana já se sabe que é muitíssimo falível. Temos tendência para nos recordarmos de seja o que for que apresenta padrões expectáveis, e para esquecer o que é contrário a esses padrões. A pressão das expectativas é tão forte que temos até memórias inteiramente falsas, só porque a memória falsa está em harmonia com as nossas expectativas. Talvez aquela pessoa já tenha visto um corvo que não é preto no mês passado, mas recorda-se dele como mais um corvo preto.

Talvez não seja já uma surpresa insistir numa quarta condição para que aquela pessoa infira indutivamente bem seja o que for acerca da cor dos corvos: o conhecimento de fundo. Sabe ela já alguma coisa de relevante para a indução acerca da cor dos corvos? Sim. A menos que tenha vivido numa caverna nos últimos milhares de anos em que os terráqueos andam por aí a matar-se uns aos outros, ela já sabe que a cor dos animais não é, em geral, uniforme; há sempre excepções. Animais albinos, animais que nascem com cores ligeiramente diferentes dos seus progenitores, e todo o género de interferências ambientais na cor de um animal. Bem, sem essas variações, a teoria da evolução por selecção natural nem sequer dá os primeiros passos. De modo que, na melhor das hipóteses, a conclusão indutiva seria que quase todos os corvos são pretos, e não realmente todos. (E, a propósito, os corvos não são todos pretos, nem sequer quase todos.)

Como se vê, o conhecimento de fundo acerca do mundo em geral é crucial no raciocínio indutivo, e irrelevante no dedutivo. É por isso que é informativo dizer que o raciocínio dedutivo é meramente linguístico, ao contrário do indutivo. E é por isso que é simplesmente irrelevante que num raciocínio indutivo, independentemente de quão bom ele seja, se encontra sempre condições de verdade na qual todas as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa. O ponto principal é antes que num bom raciocínio indutivo é muitíssimo improvável que as suas premissas sejam todas verdadeiras e a sua conclusão falsa.

Para concluir esta brevíssima viagem por alguns dos importantes ensinamentos que a lógica tem a oferecer, vale a pena mencionar duas características sociais do raciocínio. A primeira já foi sugerida, quando se viu que a observação casual é quase sempre completamente irrelevante como base do raciocínio indutivo cogente. Precisamos de observações sistemáticas, ou seja, de um programa científico de observações. Porém, isto não é o tipo de coisa que uma pessoa seja capaz de fazer sozinha; é preciso ter observadores fidedignos, com registos também fidedignos. O bom raciocínio indutivo é profundamente social. Ora, a dificuldade é que os terráqueos são agentes sociais epistémicos terríveis. Um bom agente social epistémico, responsável, nunca afirmaria saber para ganhar pontos, às custas da verdade e da prova apropriada. Porém, isso é exactamente o que os terráqueos estão concebidos por natureza para fazer: para mentir e enganar e iludir, a caminho da fama e do poder. E isto só é assim porque compensa. E compensa porque os terráqueos são, regra geral, terrivelmente crédulos. É muito mais provável que um ser humano aleatório aceite uma ideia só porque a maior parte das pessoas que o rodeiam a aceitam, ou porque as pessoas prestigiadas a aceitam, do que se essa mesmíssima ideia lhe for apresentada como uma conclusão apropriada de um conjunto de premissas muito plausíveis.

E esta é a segunda característica social do raciocínio: para a maior parte das pessoas, é mais fácil acreditar só porque os outros acreditam do que acreditar porque alguém lhes apresentou boas provas cuidadosamente. É este aspecto muitíssimo desafortunado do perfil epistémico humano que é responsável por tanto sofrimento, ignorância e obscurantismo geral, ao longo dos séculos. Eis um punhado de exemplos da credulidade humana:

Considere-se por momentos um europeu bem educado típico de 1600 […] Acredita que as bruxas podem invocar tempestades que afundam os navios em alto-mar […] Acredita em lobisomens, ainda que não existam na Inglaterra […] Acredita que os ratos são espontaneamente gerados em amontoados de palha […]

Acredita que um corpo assassinado irá sangrar na presença do homicida. Acredita que há um unguento que, se for esfregado num punhal que causou uma ferida, irá curar a ferida […] Acredita que é possível transformar metais vis em ouro, apesar de ter dúvidas de que alguém saiba como isso se faz. Acredita que a natureza abomina o vácuo […] (David Wootton, The Invention of Science: A New History of the Scientific Revolution, Capítulo 1, §2)

Não havia uma réstia sequer de provas a favor de qualquer uma destas crenças, que eram naquele tempo tão comuns. Mas antes de se fazer pouco daqueles desgraçados pobres de espírito ignorantes, é uma boa ideia parar uns segundos. Quem pensa que já ultrapassámos esses tempos das trevas, o melhor é pensar outra vez. A homeopatia, a Terra plana, as conspirações contra as vacinas e as crenças estatisticamente falsas diariamente sugeridas pelos meios de comunicação não são assim tão diferentes, para já não falar de crenças albergadas por motivos religiosos.

Note-se que em 1600 qualquer pessoa poderia ter provado que aquelas crenças que Wootton relata eram falsas ou que careciam de prova — bastando em alguns casos fazer breves experiências. Por que não o fizeram? Há aqui três factores relevantes.

  1. O primeiro é que, por natureza, o nosso aparato racional é terrível. Projectamos padrões que não existem, inferimos indutivamente sem começar por observar sistematicamente, e somos terríveis a deduzir. Porque sabemos como evitar que a nossa estupidez leve a melhor — afinal, é isso que se faz na melhor ciência — este primeiro factor não seria uma notícia assim tão má, não fossem os outros dois.
  2. O segundo factor é a natureza social da crença. A maior parte do que sabemos ou erradamente acreditamos que sabemos vem de outras pessoas. Cada um de nós é simplesmente incapaz de verificar por si todas as afirmações e todas as provas. Precisamos de apoiar-nos nos outros. Eu não tenho maneira alguma directa de provar que o Holocausto ocorreu. Não tenho sequer acesso directo aos registos históricos relevantes. Só sei do Holocausto porque leio sobre isso nos livros. De novo, este factor não seria tão mau se tivéssemos códigos sociais estritos de conduta epistémica, de maneira que ninguém transmitisse crenças aos outros sem boas provas. Porém, não temos tais códigos, em geral, ainda que os tenhamos na maior parte das ciências. O pior, contudo, é o terceiro factor.
  3. Os terráqueos têm uma doença infecciosa terrível: a ansiedade quanto ao estatuto. Querem sair-se bem, querem sentir-se superiores, querem parecer inteligentes, moralmente superiores e bem informados. Suponha-se que uma pessoa me diz que uma raiz antiga da floresta da Amazónia cura tudo, do cancro à depressão, passando pela disfunção eréctil, pela calvície e pelas cáries, mas só nos dentes da frente. Sinto-me algo humilhado porque a outra pessoa está na posse de uma informação importante que eu não tinha. De modo que na próxima oportunidade faço aos outros o que os outros me fizeram a mim: volto a contar o milagre. Não exactamente por acreditar nele, mas antes porque me faz sentir superior. Agora reitere-se o processo e temos uma dificuldade terrível em mãos. No fim, quase toda a gente acredita na mentira, só porque quase todas as outras pessoas também acreditam. Em 1600 as pessoas acreditavam naquelas tolices que Wootton relata só porque as outras também acreditavam, e hoje acontece exactamente o mesmo, mas com outras crenças.

Espreita-nos aqui de longe uma espécie de ironia cósmica. O conhecimento é meramente instrumental, biologicamente falando. Algumas pessoas algo estranhas gostam realmente de explorar e de descobrir e de compreender só pelo gozo de o fazer, mas a maior parte das pessoas têm outras maneiras de se divertir que não obrigam ao esforço concertado de que precisamos para saber um pouco de lógica, digamos, ou de astronomia. Contudo, quando o conhecimento é visto como meramente instrumental para a sobrevivência, é também visto como meramente instrumental para seja o que for que nos apetece, mesmo que de facto prejudique a sobrevivência. De modo que usar o conhecimento fingido é uma triste constante na história da humanidade — constante que, na maior parte dos casos, matou pessoas, ou fê-las ficar doentes, pobres e miseráveis. Esta é a ironia cósmica: procurar determinadamente o conhecimento, em vez de o usar apenas instrumentalmente, tende a melhorar a vida humana, ao passo que tomá-lo como meramente instrumental tende a contribuir para piorar as nossas desgraças e tragédias.

O que nos conduz de novo ao início. Muitas pessoas ao longo dos séculos estudaram a lógica do raciocínio humano. Este é um tema fascinante em si, e seria bom que estas linhas o tenham pelo menos sugerido. Mas é também um instrumento de importância capital para descobrir maneiras de melhorar a condição humana. Afinal, temos de raciocinar bem para o fazer. E é a lógica, entendida na sua maior amplitude, que nos ajuda nessa importante tarefa.

Desidério Murcho

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ISSN 1749-8457