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Crítica
16 de Novembro de 2009   Metafísica

História da ontologia

Alasdair MacIntyre
Tradução de Desidério Murcho

O termo ontologia foi introduzido pelos autores escolásticos no século XVII. Rudolf Goclenius, que mencionou a palavra em 1636, poderá ter sido o primeiro a fazê-lo, mas o termo era de tal modo natural em latim e começou a surgir tão regularmente que as disputas sobre quem detém a prioridade da sua introdução são vãs. Alguns autores, como Abraham Calovius, usavam o termo sem o distinguir de metafísica; outros, usavam-no como nome de uma subdivisão da metafísica. Johannes Clauberg (1622–1665), um cartesiano, introduziu em seu lugar o termo ontosofia. No tempo de Jean-Baptiste Duhamel (1624–1706), a ontologia distinguia-se claramente da teologia natural. As outras subdivisões da metafísica são a cosmologia e a psicologia, das quais a ontologia também se distingue. Assim, o termo ontologia, enquanto termo técnico, já existia quando foi finalmente canonizado por Christian Wolff (1679–1754) e Alexander Gottlieb Baumgarten (1714–1762).

Wolff

Para os autores mencionados, a ontologia trata do ser enquanto ser. O termo “ser” era entendido univocamente, como se tivesse um só sentido. A ontologia pode consequentemente reivindicar ter como precursores João Duns Escoto e Guilherme de Ockham, e não Tomás de Aquino. No caso do próprio Wolff, Gottfried Wilhelm Leibniz foi mais influente do que a escolástica, mas na sua Philosophia Prima Sive Ontologia, Wolff refere explicitamente Francisco Suárez. Segundo Wolff, o método da ontologia é dedutivo. O princípio principal que se aplica a tudo o que é é o da não-contradição, que sustenta que uma propriedade do próprio ser é que não pode conjuntamente ter e não ter uma dada característica ao mesmo tempo. Daqui, pensava Wolff, seguia-se o princípio da razão suficiente, nomeadamente, que em todos os casos tem de haver alguma razão suficiente para explicar por que qualquer ser existe em vez de não existir. O universo é uma colecção de seres, cada um dos quais tem uma essência que o intelecto é capaz de apreender como ideia clara e distinta. O princípio da razão suficiente é invocado para explicar por que a algumas essências foi concedida a existência e a outras não. As verdades sobre os seres são todas necessárias. Assim, a ontologia nada tem a ver com a ordem contingente do mundo.

A influência da escolástica tardia (ou o que Étienne Gilson chama “essencialismo”) na metafísica racionalista foi paga na mesma moeda, pois a divisão da metafísica em ontologia, cosmologia e psicologia reentrou nos manuais escolásticos, onde persistiu até muito recentemente. Juntamente com esta divisão, persistiu a perspectiva de que o ser constitui um tópico independente para lá dos tópicos das ciências especiais. A persistência desta perspectiva explica-se talvez por factores culturais e não intelectuais. Nos séculos XVIII e XIX a escolástica encontrava-se apenas em seminários, até o Papa Leão XIII ter reintroduzido o tomismo no debate intelectual. Só deste modo a escolástica conseguiu evitar a némesis (na forma de Immanuel Kant) que esperava a metafísica racionalista.

Kant

No anúncio escrito das lições dadas de 1765 a 1766, Kant tratava a ontologia como uma subdivisão da metafísica, incluindo esta a psicologia racional, mas distinguindo-se, neste caso, da psicologia empírica, da cosmologia e do que Kant chamava a “ciência de Deus e do mundo”: “Então, em ontologia, discuto as propriedades mais gerais das coisas, a diferença entre os seres espirituais e materiais”. Mas quando Kant escreveu a Crítica da Razão Pura, resolveu de uma vez por todas as coisas relativamente à ontologia. As duas passagens nucleares são a discussão da segunda antinomia da razão pura e a refutação do argumento ontológico. Wolff argumentara a priori que o mundo é composto de substâncias simples, que não são percepcionadas nem possuem extensão nem configuração, sendo cada uma delas diferente, sendo os objectos físicos compósitos, colecções de substâncias. Na segunda antinomia, a tese é que “toda a substância compósita no mundo consiste em partes simples, e nada existe em parte alguma que não seja ou simples ou composta de partes simples”; e a prova que Kant apresenta é efectivamente wolffiana. Mas Kant apresenta uma prova igualmente poderosa a favor da antítese, nomeadamente, que “nenhuma coisa composta do mundo consiste de partes simples, e nada existe seja onde for que seja simples”. Ao expor a falácia comum às duas provas, Kant tornou possível aceitar uma vez mais a ontologia como um corpo dedutivo de verdades necessárias aparentado à geometria, na sua configuração, mas tendo o ser como objecto de estudo. A sua análise da existência na sua refutação do Argumento Ontológico é uma contraparte a isto.

A partir de Kant, o uso mais influente do termo ontologia, para lá dos manuais de escolástica, tem sido nos escritos de Martin Heidegger e W. V. Quine. Ambos foram saudados pelos autores escolásticos por se entregarem essencialmente à mesma tarefa que eles, adoptando o Padre D. A. Drennen esta perspectiva de Heidegger, fazendo o Padre Bochenski o mesmo no que respeita a Quine.

Heidegger

Com respeito à ontologia de Heidegger, o Padre Drennen tem talvez parcialmente razão. Heidegger queria explicar que carácter tem o ser de ter para que a consciência humana seja o que é. Começa por ter uma rixa com o princípio da razão suficiente na forma que assumiu em Leibniz e Wolff. Isto, afirma, é um ponto de partida inadequado para a ontologia porque a pergunta “Por que há algo em vez de nada?” pressupõe que já sabemos o que são o ser e o nada. Heidegger tratava o “Ser” e o “Nada” como nomes de poderes contrastantes e opostos cuja existência está pressuposta em todos os nossos juízos. Nos juízos negativos, por exemplo, falar do que não se verifica é referir implicitamente o Nada. A ontologia de Heidegger, contudo, não tinha configuração dedutiva nem sequer sistemática. Procede por vezes por meio da exegese da poesia ou dos fragmentos mais aforísticos dos filósofos pré-socráticos, sendo assim muito diferente da ontologia escolástica.

Quine

No caso de Quine, o nome ontologia tem de facto sido dado a um conjunto bastante diferente de preocupações. Quine preocupou-se com duas perguntas intimamente relacionadas: A crença numa dada teoria compromete-nos com a existência de que tipo de coisa? E quais são as relações entre a lógica intensional e extensional? A sua resposta à primeira pergunta é que ser é ser o valor de uma variável: temos de admitir a existência daquela gama de entidades possíveis cujos nomes podem ocorrer como valores daquelas variáveis sem as quais não podemos formular as nossas crenças. A sua resposta à segunda pergunta é que as lógicas intensionais e extensionais envolvem a admissão não apenas de tipos diferentes de entidade, mas também de tipos incompatíveis de entidade. “Os dois tipos de entidade só podem ser acomodados na mesma lógica com o género de restrições de Church, que servem para não os misturar, e isto é quase uma questão de ter duas lógicas separadas com um universo para cada” (From a Logical Point of View, p. 157).

É claro que as preocupações de Quine são de facto relevantes para Wolff e para os escolásticos apenas no sentido em que uma compreensão das investigações de Quine nos impediriam de tentar construir uma ontologia dedutiva à maneira de Suárez ou Wolff.

Alasdair MacIntyre
Encyclopedia of Philosophy, ed. Donald M. Borchert (Macmillan Reference, 2006), Vol. VI, pp. 27–28.

Bibliografia

Fontes primárias

Fontes secundárias

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ISSN 1749-8457