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Crítica
29 de Dezembro de 2023   Metafísica

Quine e as modalidades aléticas

Dagfinn Føllesdal
Tradução de Desidério Murcho

O cepticismo de Quine com respeito às perspectivas tradicionais do significado andava de mãos dadas com o seu cepticismo com respeito às modalidades. Na peugada de Carnap e de C. I. Lewis, Quine considerava que as noções modais estavam intimamente ligadas à noção de significado. Carnap e Lewis subscreviam a chamada perspectiva linguística da necessidade, que Quine formulou da seguinte maneira:

Uma afirmação da forma “Necessariamente…” é verdadeira se e só se a afirmação constituinte regida por “necessariamente” é analítica, e uma afirmação da forma “Possivelmente…” é falsa se e só se a negação da afirmação constituinte regida por “possivelmente” é analítica.1

Quine via dois tipos de problemas ligados às noções modais. O primeiro era que, como as noções de significado e de analiticidade, não são claras: é difícil traçar uma linha entre o que é necessário e o que é meramente acidental. Isto acontece também com muitas outras noções: onde traçamos a linha entre montanhas e meras colinas, e quando deixa um homem de ter falta de cabelo para se tornar careca? Contudo, a obscuridade que afecta as noções modais, assim como as noções de significado e analiticidade, é de um tipo mais maligno: não há apenas vagueza, que é um problema com casos de fronteira difíceis; mesmo nos casos aparentemente mais simples, é difícil compreender o que distingue o necessário do que é apenas verdadeiro. Podemos, é claro, “explicar” a necessidade em termos de possibilidade: o que é necessário é o que não é possível ser de outro modo. Contudo, a menos que se apresente uma explicação iluminante da possibilidade que não invoque a necessidade, andamos às voltas num círculo muito pequenino.

Há também uma razão que fazia Quine considerar a chamada semântica dos mundos possíveis uma petição de princípio. É certo que essa semântica é formulada numa metalinguagem extensional, mas dado que nesta metalinguagem se quantifica sobre mundos possíveis, não nos aproxima da compreensão das noções modais, a menos que se torne clara a noção de mundos possíveis. Tudo o que a semântica nos diz é como as noções capitais do pequeno círculo estão interconectadas: a possibilidade pode na maior parte dessas semânticas ser definida em termos de necessidade, como se segue: “possivelmente p se e só se não é necessário que não-p”. Em algumas semânticas, o que não é necessário, necessariamente não é necessário, e assim por diante. Obtemos várias estruturas algébricas. Algumas têm interesse matemático, e outras podem ser interpretadas em termos de noções modais que têm uma base filosófica mais satisfatória do que as modalidades lógicas.

O segundo problema de Quine com as noções modais é que são ontologicamente obscuras. Não só a noção de mundo possível é turva, como não é claro quais são os objectos de que falamos ao usar expressões modais. Estes problemas ontológicos são muito mais claramente visíveis no caso da modalidade do que em conexão com o significado. A obscuridade ontológica da modalidade era por isso particularmente apropriada para tornar patente o carácter abstruso de todo este agregado de noções inter-relacionadas.

Em vários ensaios dos anos quarenta e cinquenta, Quine apresentou argumentos gradualmente mais poderosos contra as noções modais. Observou que o princípio de substituibilidade leva a resultados inaceitáveis em contextos modais e que, consequentemente, não é claro de que objectos falamos nesses contextos.2 Nesse mesmo ano (1941), Quine fez notar que esta questão levanta dificuldades à quantificação em contextos de crença. Este problema foi explicitado mais pormenorizadamente em 1943. Quine fez notar que há algo de curioso quanto a “∃x necessariamente (x > 7)”, por exemplo, e perguntou: “Será 9, ou seja, o número de planetas, um dos números necessariamente maior do que 7?” Quine fez notar que aquela afirmação seria verdadeira na forma “Necessariamente (9 > 7)” e falsa na forma “Necessariamente (o número de planetas > 7)”.3

Contudo, em 1947, Ruth Marcus e Rudolf Carnap desenvolveram os primeiros sistemas de lógica modal quantificada — e por boas razões. Na formulação de Carnap de alguns anos depois, “Qualquer sistema de lógica modal sem quantificação só tem interesse como base de um sistema mais amplo que inclua quantificação. Caso se descobrisse que tal sistema mais amplo é impossível, os lógicos abandonariam por completo, provavelmente, a lógica modal”.4

“Three Grades of Modal Involvement” (1953)5 contém a discussão crítica mais aturada das modalidades por parte de Quine. Neste artigo, Quine formula novos argumentos para considerar que as afirmações de identidade são necessárias (p. 80) e, o que é mais importante, defende também que a quantificação para o interior de contextos modais exige o essencialismo aristotélico, a doutrina de que alguns atributos de uma coisa lhe são essenciais — propriedades necessárias da coisa independentemente da maneira como a referimos — sendo outros atributos acidentais. Esta noção de essencialismo está em dessintonia abrupta com a ideia, favorecida por Carnap e Lewis, entre outros, de que é a analiticidade que explica a necessidade. Pois se a necessidade se baseia na analiticidade, então a distinção entre características essenciais e acidentais de um objecto não será absoluta, mas antes relativa à maneira como o objecto é especificado.

Em Word and Object, Quine fornece finalmente um argumento que visa concluir a sua argumentação contra as modalidades. Depois de dezanove anos a fornecer argumentos cada vez mais fortes, é aqui, nas páginas 181–182, que defende que se quantificarmos para o interior de contextos modais, então as distinções modais desagregam-se, tornando as modalidades despropositadas.

Contudo, um escrutínio do argumento de Quine mostra o seguinte:

  1. Há algo de seriamente errado no argumento.6 Aplica-se não apenas à necessidade e à possibilidade, mas a todos os operadores que não sejam extensionais. Os pressupostos do argumento, que abordaremos no ponto 3, levam à desagregação de qualquer tentativa de especificar, por meio de um operador como “necessariamente”, uma subclasse própria das frases verdadeiras: a subclasse irá coincidir com a classe toda. Tome-se “sabe que” como exemplo; não só será verdadeiro tudo o que se sabe (que é o que queremos), mas também tudo o que é verdadeiro se saberá que é verdadeiro. Podemos repetir o argumento de Quine com crença, causalidade, contrafactuais, probabilidade e operadores morais, como “é obrigatório” e “é permissível”. O argumento é simplesmente demasiado desastroso para estar correcto.
  2. Se formalizarmos o argumento para tornar explícitos os seus vários pressupostos, descobrimos que o argumento não pressupõe seja o que for que não se aceitasse universalmente em 1960.
  3. O pressuposto que é mais plausível abandonar é a perspectiva de que os nomes e os outros termos singulares definidos têm basicamente o mesmo tipo de semântica dos termos gerais e das frases. Naquela altura, pressupunha-se que os termos singulares se comportavam como os termos gerais que por acaso se aplicam apenas a um objecto. É isto que está subjacente à teoria das descrições definidas de Russell, e é esta característica que Quine põe ao seu serviço no argumento. Dada a necessidade da identidade, isto leva à desagregação das noções modais.

Para evitar a desagregação prevista por Quine, temos de aceitar que os nomes e outros termos singulares “genuínos” têm um tipo de semântica diferente dos termos gerais. Entre outras coisas, têm de referir o mesmo objecto “em todos os mundos possíveis”. Isto reflecte o papel central que os objectos desempenham na nossa vida quotidiana e nas nossas teorias científicas. São os nodos fixos na estrutura do mundo, e é muito importante não os perder de vista no decorrer de todas as mudanças e confusões. É de esperar que as línguas incluam dispositivos por meio dos quais os referimos e com os quais assinalamos uns aos outros que queremos seguir o mesmo objecto no decorrer de todas as mudanças. Os nomes desempenham esse papel.

Dependendo de quão clara é para nós a identidade do objecto, podemos ser mais ou menos bem-sucedidos em ver claramente qual é o objecto que estamos a referir. Se estamos confundidos quanto à identidade de um objecto, então estamos também confundidos no nosso uso dos nomes desse objecto e no nosso uso de pronomes e quantificadores que têm esses objectos no seu domínio. Estamos acostumados a essa individuação nas nossas vidas quotidianas. Quando dizemos que um objecto muda, queremos dizer que continua a ser o mesmo objecto ao longo do tempo, apesar de ter diferentes propriedades à medida que o tempo passa. Além disso, as noções modais de crença, conhecimento, ética, probabilidade, causalidade e condicionais contrafactuais estão intricadamente entrelaçadas à maneira como individuamos os objectos.

Se pressupomos uma semântica “dupla” desse género, onde os termos gerais e as frases se comportam como na semântica fregiana comum, ao passo que os termos singulares mantêm a sua referência “em todos os mundos possíveis”, podemos evitar a desagregação e dar sentido à quantificação para o interior de contextos modais. Muitas expressões que foram tradicionalmente classificadas como termos singulares, como as descrições definidas, são agora classificadas como tipos de termos gerais que por acaso se aplicam a um só objecto.

Num dos seus últimos artigos de 1994, Quine descreve estes termos singulares “genuínos” como se segue:

Estes são os termos que obedecem à substituição da identidade mesmo em contextos modais. Estes são também os termos que apoiam a inferência por generalização existencial, mesmo em contextos modais; os outros termos, não. Como poderíamos dizer num espírito modal, estes são os termos que nomeiam os seus objectos necessariamente. (“Promoting Extensionality,” in Confessions, p. 444)

Restringir o universo a conceitos ou outras entidades intensionais não serve qualquer propósito. São os termos singulares, e não os objectos, que importam. Se os termos singulares satisfazem a condição mencionada, então a quantificação funciona, sejam qual for o tipo de objectos sobre os quais quantificamos.

  1. Vários dos insights de Quine quanto às modalidades quantificadas continuam de pé depois de se abandonar a semântica una: a substituibilidade da identidade, a necessidade da identidade e o essencialismo aristotélico.

A semântica dupla torna possível ter contextos onde a identidade é universalmente substitutiva, de modo que quantificar para o interior desses contextos faz sentido, mas aí os termos gerais e as frases co-extensionais não podem ser substituídas entre si e, por isso, as distinções modais não se desagregam. Isto é precisamente aquilo a que equivale o essencialismo aristotélico: distinguimos entre atributos necessários e contingentes (opacidade extensional), e os objectos sobre os quais quantificamos têm estes atributos independentemente da maneira como são referidos (transparência referencial).7


Na Primavera de 1961, Quine reconheceu estes quatro pontos. Reescreveu imediatamente as partes de From a Logical Point of View que tratam das modalidades. Na nova edição, que saiu no Outono de 1961, Quine levou a cabo várias revisões com base nos pontos anteriores, e elenca-as no prefácio a essa edição.

Depois da segunda edição de From a Logical Point of View de 1961, Quine aceitou que a situação com respeito às modalidades estava bem compreendida e que não havia grande necessidade de mais argumentos ou clarificações. Quine nunca mais mencionou o seu argumento em Word and Object a favor da desagregação das distinções modais. Já não tinha em mente um argumento estritamente formal contra a lógica modal quantificada, mas voltou à sua razão original para rejeitar as modalidades lógicas: a sua falta de clareza.

Na nova edição de Word and Object, Quine queria fazer um apanhado da sua perspectiva final quanto às modalidades. Pretendia ligá-la a uma discussão actualizada das atitudes proposicionais. Em 1960, Quine era céptico quanto a todas as expressões que não fossem extensionais. Preservou este cepticismo até ao último ensaio, “Confessions of a Confirmed Extensionalist,” que foi publicado depois da sua morte. Contudo, tal como teria preferido ser nominalista, dada a sua tendência ascética, mas via que as entidades abstractas eram necessárias, também teria gostado de ser extensionalista, mas não encontrou maneira de o ser.

Dagfinn Føllesdal
Word and Object, nova edição (Cambridge, MA: MIT Press, 2013), pp. xxii–xxvi.

Notas

  1. Quine, From a Logical Point of View, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1980, p. 143.↩︎
  2. Quine, “Whitehead and the Rise of Modern Logic,” in The Philosophy of Alfred North Whitehead, ed. Paul Arthur Schilpp (Library of Living Philosophers) (Evanston, Ill.: Northwestern University Press, 1941); 2.ª ed., Nova Iorque: Tudor, 1951, pp. 125–163.↩︎
  3. Quine, “Notes on Existence and Necessity,” Journal of Philosophy 40(5) (1943): 113–137.↩︎
  4. Rudolf Carnap, Meaning and Necessity (Chicago: University of Chicago Press, 1947), p. 196.↩︎
  5. Quine, “Three Grades of Modal Involvement,” in Proceedings of the Eleventh International Congress of Philosophy (Bruxelas, 1953), vol. 14, pp. 65–81.↩︎
  6. Uma apresentação mais completa dos pontos 1–4 encontra-se na minha dissertação Referential Opacity and Modal Logic, Abril de 1961. Mimeografado, Oslo University Press 1966, Routledge 2004.↩︎
  7. Esta noções são desenvolvidas em Word and Object, §§30–31.↩︎
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