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Crítica
4 de Setembro de 2009   História da filosofia

Verdade intocável e definitiva

Rui Daniel Cunha
Routledge Philosophy Guidebook to Wittgenstein and the Tractatus
de Michael Morris
Londres: Routledge, 2009, 408 pp.

Quando Wittgenstein, após ter escrito no Prólogo do Tractatus que “a verdade dos pensamentos aqui comunicados parece-me a mim intocável e definitiva” e ter definido pensamentos, em 4, como consistindo em “proposições com sentido”, escreve em 6.54 que “as minhas proposições são elucidativas pelo facto de que aquele que as compreende as reconhece afinal como sem sentido [unsinnig]”, está criado um paradoxo: como é possível que as proposições do Tractatus sejam simultaneamente verdadeiras (a fortiori, com sentido) e sem sentido? Eis o problema magno do Tractatus.

Este paradoxo tem assombrado a scholarship tractariana desde a publicação da obra e tem gerado várias tentativas de solução que consigam evitar a resposta mais óbvia: não é de todo possível — Wittgenstein, algures no Tractatus, errou.

Naturalmente, podemos interpretar o Tractatus colocando entre parênteses, por assim dizer, o paradoxo e limitando o âmbito do nosso estudo, por exemplo, à ontologia ou à teoria da linguagem. E talvez seja este o melhor caminho — avançar passo a passo, esperando que cada sucesso parcial na interpretação da obra propicie as condições para novo avanço, ignorando, pelo menos temporariamente, aquele conjunto de proposições “esotéricas” do final da obra, que se inicia em 6.41 (“O sentido do mundo tem de estar fora do mundo”) e que inclui o referido paradoxo de 6.54.

Se se pretende, porém, uma interpretação global do Tractatus, e não de âmbito restrito a uma parte ou partes da obra, isto é, uma interpretação que explique também aquelas secções da obra onde se discutem os problemas do sentido da vida e da ética, da estética e do “místico”, etc., então não podemos deixar de nos confrontar com o paradoxo acima enunciado e tentar resolvê-lo.

Michael Morris, nesta obra, tem o mérito, entre vários outros, de propor uma nova solução para o famoso paradoxo, no capítulo sétimo (e último, certamente não por coincidência), intitulado “Metaphysics, Ethics and the Limits of Philosophy” (pp. 309-354). Centraremos esta recensão nessa tentativa.

Mas as estratégias hermenêuticas dos comentadores da obra diante do paradoxo têm sido francamente diversificadas. A mais polémica delas, surgida a partir dos trabalhos de Cora Diamond e James Conant, desde o início dos anos 90 do século passado, é a interpretação “terapêutica” (também chamada do “novo Wittgenstein” ou ainda “interpretação resoluta”), que considera justamente o paradoxo como o núcleo mais essencial do Tractatus: o leitor deve inicialmente ler o Tractatus como aquilo que parece que é: uma obra acerca das proposições da linguagem e de como estas representam a realidade. Porém, ao aperceber-se que o caminho aparente do Tractatus conduz ao impasse da falta de sentido da própria obra, o leitor deverá compreender que o verdadeiro propósito de Wittgenstein ao escrever o seu livro é “curar” o leitor da ilusão de que é possível construir uma teoria filosófica da linguagem (ou do mundo, ou da lógica, etc.). Daí o seu carácter “terapêutico”, que é bem-sucedido se, no fundo, o leitor do Tractatus deixar de sentir a necessidade de pensar filosoficamente. E eis como, afinal, a conhecida tese do Wittgenstein das Investigações Filosóficas da filosofia como “doença conceptual” apareceria já implícita no Tractatus.

Além das discussões interpretativas (e Morris apresenta, a meu ver com pertinência, objecções a esta nova corrente da scholarship tractariana, nas páginas 343–344 do livro), há um facto que milita decisivamente contra a interpretação terapêutica: é que, quando em 1929 Wittgenstein regressa a Cambridge e à Filosofia, publica um artigo (“Some Remarks on Logical Form”) que é uma tentativa de continuação, sublinho, do seu trabalho no Tractatus, para resolver dificuldades específicas do conceito de “forma lógica”, e que representa precisamente aquilo que ele não deveria fazer se a sua intenção ao escrever o Tractatus fosse realmente terapêutica: se o objectivo fosse efectivamente o de curar o leitor do Tractatus da ilusão de que é possível construir uma teoria filosófica da linguagem, então não seria necessário escrever um artigo para tentar resolver um problema específico de um conceito específico justamente dessa teoria filosófica da linguagem, como é óbvio.

Como explicar então a existência das tais secções finais do Tractatus? O próprio Morris sugere (embora recusando-a, note-se) aquela que parece a explicação disponível mais simples:

“não é implausível, contudo, atribuir esta ética estranha aos efeitos de [Wittgenstein] ter estado na frente de batalha durante a primeira guerra mundial, que foi onde o tratado lógico que Wittgenstein estava a compor se alargou para incluir a questão do sentido da vida” (p. 327).

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A experiência da guerra e a constante possibilidade da morte poderão ter levado, afinal, Wittgenstein a ir, no Tractatus, muito além do seu espaço conceptual — a filosofia da lógica e da linguagem. E a existência de uma versão inicial do Tractatus sem as secções finais da obra — no Ms. 104 do Nachlass wittgensteiniano fornece evidência textual para fundamentar esta hipótese.

Entre estes dois extremos — algumas interpretações, digamos, tradicionais, que desvalorizam, de modo geral, a importância das secções finais da obra (por exemplo, Russell, Anscombe ou Griffin) e a interpretação terapêutica que as considera, por assim dizer, a essência do Tractatus — situa-se este livro de Michael Morris.

Vejamos então a interpretação de Morris dos principais parágrafos finais do Tractatus:

“a filosofia tenta levantar questões que não são verdadeiras questões (6.5). O cepticismo (uma espécie de pânico diante da ausência de uma resposta) tenta levantar uma questão que não pode ser levantada (6.51). A filosofia tenta responder às questões que permanecem após a ciência estar terminada; mas não existem tais questões, e logo não há lugar para a filosofia (6.52). Mas isto não significa que, por assim dizer, não haja algo lá (“existe por certo o inexprimível”, 6.522), antes [significa que] o que quer que seja não se deixa dizer — “é o que se mostra” (6.522) [também]. Sob este ponto de vista, o misticismo parece ser a atitude que deve ser adoptada em vez da filosofia, uma vez que vimos que a filosofia, com a sua ambição de dizer coisas que não podem ser ditas, não pode ser levada a cabo” (p. 338).

A partir daqui, com esta linha de interpretação, Morris fica em condições de propor uma nova tentativa de solução para o famoso paradoxo. De facto, na base da sua tentativa está a rejeição de uma pressuposição geralmente aceite quando se analisa o paradoxo, a que Morris chama (T): “A finalidade do Tractatus é comunicar verdades” (p. 345). Justamente, Morris propõe que não aceitemos T. A finalidade do Tractatus, na sua interpretação, não é comunicar verdades.

Mas esta interpretação de Morris não vai flagrantemente contra a formulação do Prólogo do Tractatus acerca da verdade dos pensamentos comunicados na obra ser intocável e definitiva? Vai, claro, mas Morris sugere que se interprete a observação do Prólogo de modo comparativo: Wittgenstein está apenas a querer dizer que a sua teoria filosófica é superior a qualquer teoria filosófica rival. Ou seja,

“aquilo que é distintamente próprio do Tractatus, assim — na perspectiva de Wittgenstein — é que o que segue é verdadeiro acerca dele e apenas dele: só quando aplicado a si próprio é que se torna problemático [ao contrário de outras teorias filosóficas]” (p. 348).

Deste modo, Morris conclui que a verdade dos pensamentos do Tractatus é intocável e definitiva “até se aplicar a si própria” (p. 348). É, pois, apenas neste sentido, o de ser comparativamente superior a outras eventuais teorias filosóficas, que se fala no Prólogo da tal verdade intocável e definitiva.

Subsiste, porém, o problema de saber qual é então a finalidade do Tractatus:

“Se (T) é falsa, e o Tractatus foi publicado para algum fim, é necessário que exista uma finalidade que seja plausível atribuir a Wittgenstein e que não dependa de quaisquer verdades serem comunicadas na obra” (p. 346).

E aqui Morris recorre a uma bem conhecida carta de Wittgenstein a Ludwig von Ficker:

“O ponto do livro é ético. Pensei incluir no prólogo uma frase que agora não está lá, mas que escreverei aqui para si, porque será uma chave para si. Aquilo que eu queria ter escrito então era isto: a minha obra consiste em duas partes — aquela que se apresenta aqui mais tudo o que não escrevi. E é precisamente esta segunda parte que é a parte importante” (p. 348).

Se o ponto do livro é ético, qual é então o resultado da aceitação por parte do leitor da ética do Tractatus? Morris é explícito: “parece claro que aquilo que ele [Wittgenstein] pensa que a ética exige é a adopção de uma atitude mística ou artística” (p. 349).Temos finalmente a solução de Morris: Wittgenstein não quer comunicar verdades filosóficas no Tractatus porque a sua verdadeira finalidade é induzir o leitor a adoptar uma atitude mística. Escreve Morris:

“Se é desta maneira que Wittgenstein espera que o Tractatus funcione, então podemos compreender como é que ele pensaria ter atingido a finalidade de induzir os seus leitores a adoptar uma atitude mística sem aceitar o Tractatus como verdadeiro. A ideia seria que, ao trabalhar o próprio Tractatus, ser-nos-ia dado um sentido da forma das coisas — da forma da realidade — que perduraria mesmo depois da tentativa de o exprimir em frases ter sido apagada” (pp. 350–351).

Deste modo fica afastado o paradoxo: as proposições do Tractatus não são verdades filosóficas que Wittgenstein queira comunicar ao leitor. Elas são efectivamente proposições sem sentido, que sugerem — mostram, como ele escreve — o verdadeiro caminho para o leitor compreender a realidade — a adopção do misticismo.

Aqui chegados, a solução de Morris parece não ser mais, afinal, do que uma variação da interpretação terapêutica: a filosofia, no fundo, é impossível, isto é, reduz-se a uma patologia conceptual que apenas gera proposições sem sentido, cujo verdadeiro tratamento consiste no seu abandono e substituição por algo não filosófico — o “místico”. O efeito terapêutico do místico traduz-se, enfim, na adopção do silêncio.

Está então solucionado o paradoxo do Tractatus? Creio que não está. Esta interpretação de Morris, com a prescrição da substituição da filosofia pelo misticismo, contradiz flagrantemente o que o próprio Wittgenstein escreve acerca da tarefa da filosofia noutros passos do Tractatus, como por exemplo em 4.112: “o objectivo da Filosofia é a clarificação lógica dos pensamentos”. O místico nada clarifica — apenas silencia o pensamento. E o próprio Morris, mesmo no fim do livro, depois de considerar possíveis objecções à sua interpretação, parece reconhecer que o problema subsiste: “não há, talvez, qualquer tratamento completamente satisfatório do paradoxo do Tractatus” (p. 354). Sugiro que regressemos ao óbvio: não é de todo possível que as proposições do próprio Tractatus sejam simultaneamente verdadeiras e sem sentido. Wittgenstein simplesmente errou. O paradoxo não tem solução.

Do facto de termos centrado esta recensão no paradoxo do Tractatus não se segue de todo que os outros capítulos do livro de Morris sejam menos conseguidos. Bem pelo contrário, aliás.

Depois de uma introdução (pp. 1–20), Morris dedica o capítulo 1 à ontologia do Tractatus (pp. 21–58, mais um apêndice acerca do argumento a favor da existência necessária dos objectos constituintes da substância do mundo, de 2.0211–2.0212, nas páginas 355 a 363).

A influência de Frege e Russell em Wittgenstein constitui o capítulo 2 (pp. 59–113). Como escreve Morris, “a importância do trabalho de Frege e Russell para uma compreensão do Tractatus dificilmente se pode exagerar” (p. 63). No entanto, é sob o prisma de Kant que Morris vê o posicionamento filosófico do Tractatus. É possível interpretar o Tractatus como consistindo essencialmente numa investigação transcendental da questão “como é a linguagem de todo possível?”, à semelhança da questão essencial da Crítica da Razão Pura “como é o conhecimento de todo possível?”. O locus classicus de uma interpretação kantiana do Tractatus é, evidentemente, a obra de 1960 de Erik Stenius, Wittgenstein's Tractatus.

A posição de Morris, contudo, é subtilmente diferente:

“sugeri que o livro [Tractatus] pode ser visto como uma reacção contra a abordagem de Kant à metafísica — particularmente, contra a posição segundo a qual as verdades filosóficas são verdades sintéticas a priori” (p. 264).

É esta a tese crucial de Kant (a existência de verdades filosóficas sintéticas a priori) a que Wittgenstein, segundo Morris, reage no Tractatus, rejeitando-a. Justamente, na interpretação de Morris, relembre-se, Wittgenstein, no Tractatus, não pretende comunicar quaisquer verdades filosóficas, como vimos.

A teoria da linguagem ocupa os capítulos 3 e 4 (pp. 114–142 — teoria geral da representação — e 143–203 — as proposições como modelos da realidade). A exposição é clara e sugestiva, tal como em todo o livro, aliás. Por exemplo, Morris destaca a importância de 2.172 (“a imagem não pode porém representar pictorialmente a sua forma de representação pictorial; exibe-a”), e extrai a consequência desta afirmação para o problema do paradoxo tractariano: “esta afirmação implica que o próprio Tractatus é desprovido de sentido nos seus próprios termos” (p. 132). A argumentação de Wittgenstein, de 2.173–2.174, em favor desta sua tese crucial é então elegantemente reconstruída e discutida.

À teoria da lógica do Tractatus, nem sempre bem compreendida, é dedicado o capítulo 5 (pp. 203–262), e trata-se de um óptimo capítulo do livro, rigoroso e adequado. Já no capítulo 6 (pp. 263–308), Morris ocupa-se das famosamente crípticas observações sobre o solipsismo do Tractatus, e a distinção conceptual que faz entre solipsismo, idealismo, realismo e anti-realismo, bem como das respectivas variantes, por assim dizer, ajuda a obter uma compreensão mais clara da metafísica do Tractatus (pp. 264-272).

Escusado será dizer que até o leitor experiente no Tractatus tem muito a aprender com este livro de Michael Morris, o que estes capítulos amplamente comprovam — mesmo quando não se partilha a interpretação do seu autor.

Cumpre assinalar, para finalizar, que na colecção da Continuum Publishing (“Reader's Guides”), de algum modo paralela a esta colecção da Routledge (“Philosophy Guidebooks”), já tinha sido publicado mais um livro sobre o Tractatus, de outro importante estudioso da obra, Roger White (Wittgenstein's Tractatus Logico-Philosophicus Reader's Guide, Londres: Continuum, 2006). Numa muito sintética comparação entre ambos, julgo que o livro de White é mais pedagógico, com questões para o leitor responder e tópicos para discussão acerca das várias partes da obra, bem como mais acessível ao leitor principiante no estudo do Tractatus. A meu ver, este livro de Michael Morris é mais inovador e mais exaustivo na análise da obra, com a contrapartida de possivelmente não ser tão acessível ao leitor que se inicia no estudo do Tractatus. Em ambas as obras, contudo, fica bem patente aquela qualidade típica da melhor scholarship filosófica britânica, que as tornam indispensáveis ao estudioso da filosofia de Wittgenstein em geral e do Tractatus em particular.

Rui Daniel Cunha

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ISSN 1749-8457