Em 2018, uma semana apenas depois de o senado argentino ter recusado a descriminalização do aborto nas primeiras catorze semanas de gravidez, uma mulher de trinta e quatro anos morreu em resultado de tentar interromper a sua própria gravidez. O aborto tem uma vasta cobertura mediática nos EUA, onde a primeira pergunta que se faz aos juízes nomeados para o Supremo Tribunal é acerca da posição que têm quanto ao aborto. Porém, dá-se muitíssimo menos atenção aos abortos que são feitos no mundo em desenvolvimento, e que constituem oitenta e seis por cento de todos os abortos do mundo. Apesar de uma maioria de países africanos e da América Latina terem leis que proíbem o aborto na maior parte das circunstâncias, as interdições oficiais não impedem as elevadas taxas de aborto. Segundo um relatório de 2018 do Instituto Guttmacher, os abortos inseguros levam à morte de vinte e duas mil mulheres, todos os anos, ocorrendo quase todas nos países em desenvolvimento. Cinco milhões mais de mulheres ficam todos os anos com lesões, por vezes permanentes.
Por piores que sejam, estes números estão a diminuir. E poderiam chegar a quase zero, se conseguíssemos cumprir a necessidade de educação sexual e de informação sobre planeamento familiar e contracepção, fornecendo abortos induzidos seguros e legais, assim como cuidados posteriores para evitar ou tratar complicações médicas. Cerca de duzentas e vinte milhões de mulheres sexualmente activas no mundo em desenvolvimento afirmam que querem evitar a gravidez, mas não usam contracepção moderna. Isto é uma tragédia imensa para as pessoas individuais e para o futuro do nosso planeta, já fortemente povoado. Contudo, em Julho de 2012, quando a Cimeira de Londres sobre Planeamento Familiar, patrocinado pelo Departamento para o Desenvolvimento Internacional do governo britânico e pela Fundação Gates, anunciou compromissos para chegar a cento e vinte milhões destas mulheres até 2020, a resposta do jornal do Vaticano foi criticar Melinda Gates, cujos esforços para organizar e em parte financiar esta iniciativa se calcula que conduziria a quase três milhões de bebés que não irão morrer no primeiro ano de vida, e a cinquenta milhões de abortos a menos. Seria de pensar que os católicos romanos considerariam desejáveis estes resultados. (A própria Gates é uma católica praticante que viu o que acontece quando as mulheres não conseguem alimentar os filhos, ou quando ficam estropiadas devido a abortos inseguros.)
Restringir o acesso ao aborto legal leva muitas mulheres pobres a procurar abortos inseguros. Na África do Sul, a legalização do aborto, em 1988, viu as mortes relacionadas com a interrupção da gravidez cair noventa e um por cento. E o desenvolvimento dos fármacos misoprostol e mifepristona, que podem ser fornecidos por farmacêuticos, torna possível o aborto relativamente seguro e barato, tanto nos países em desenvolvimento, como nos desenvolvidos. Nos EUA, tem havido um recuo em direcção a leis mais restritivas, em alguns estados. Graças a Women on Web e a Aid Access, iniciativas da Dra. Rebecca Gomperts, uma activista feminista, as mulheres de muitas jurisdições onde o aborto é proibido conseguem obter estes fármacos pelo correio, como fizeram milhares de mulheres do Texas, quando o aborto foi aí drasticamente restringido, em 2021.
Os oponentes respondem que o aborto é, pela sua própria natureza, inseguro — para o feto. Fazem notar que o aborto mata um indivíduo humano vivo e único. Essa afirmação é difícil de negar, pelo menos se com “humano” queremos dizer “membro da espécie Homo sapiens”.
Também é verdadeiro que não podemos simplesmente invocar o “direito de escolha” da mulher, para evitar a questão ética do estatuto moral do feto. Se o feto tivesse realmente o estatuto moral de qualquer outro ser humano, seria difícil defender que o direito de escolha de uma mulher grávida inclui o direito de provocar a morte do feto, excepto talvez nos casos em que a vida da mulher esteja em perigo.
A falácia do argumento contra o aborto está na passagem da afirmação cientificamente rigorosa de que o feto é um indivíduo vivo da espécie Homo sapiens para a afirmação ética de que, consequentemente, o feto tem o mesmo direito à vida de qualquer outro ser humano. A pertença à espécie Homo sapiens não é suficiente para conferir a um ser o direito à vida. O mesmo acontece com algo como a autoconsciência ou a racionalidade: não dá mais protecção a um feto do que, digamos, a uma vaca, porque as capacidades mentais do feto são inferiores às das vacas. Contudo, raramente se vê os grupos “pró-vida” que fazem piquetes à porta das clínicas de aborto a fazê-los à porta dos matadouros.
Podemos plausivelmente defender que não devemos matar, contra a sua vontade, seres autoconscientes que querem continuar a viver. Pode-se considerar que isso é uma violação da sua autonomia, ou uma frustração das suas preferências. Porém, por que razão haveria o potencial de um ser para se tornar racionalmente autoconsciente tornar incorrecto pôr fim à sua vida antes de ter efectivamente a capacidade da racionalidade e da autoconsciência?
Não temos a obrigação de permitir que todos os seres com o potencial para se tornarem racionais realizem esse potencial. Se há um conflito entre os supostos interesses de seres que em potência são racionais, mas que ainda não têm sequer consciência, e os interesses vitais de uma mulher efectivamente racional, devemos dar sempre preferência à mulher.