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Crítica
22 de Setembro de 2023   Ética

A verdadeira tragédia do aborto

Peter Singer
Tradução de Desidério Murcho

Em 2018, uma semana apenas depois de o senado argentino ter recusado a descriminalização do aborto nas primeiras catorze semanas de gravidez, uma mulher de trinta e quatro anos morreu em resultado de tentar interromper a sua própria gravidez. O aborto tem uma vasta cobertura mediática nos EUA, onde a primeira pergunta que se faz aos juízes nomeados para o Supremo Tribunal é acerca da posição que têm quanto ao aborto. Porém, dá-se muitíssimo menos atenção aos abortos que são feitos no mundo em desenvolvimento, e que constituem oitenta e seis por cento de todos os abortos do mundo. Apesar de uma maioria de países africanos e da América Latina terem leis que proíbem o aborto na maior parte das circunstâncias, as interdições oficiais não impedem as elevadas taxas de aborto. Segundo um relatório de 2018 do Instituto Guttmacher, os abortos inseguros levam à morte de vinte e duas mil mulheres, todos os anos, ocorrendo quase todas nos países em desenvolvimento. Cinco milhões mais de mulheres ficam todos os anos com lesões, por vezes permanentes.

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Dúvidas?

Por piores que sejam, estes números estão a diminuir. E poderiam chegar a quase zero, se conseguíssemos cumprir a necessidade de educação sexual e de informação sobre planeamento familiar e contracepção, fornecendo abortos induzidos seguros e legais, assim como cuidados posteriores para evitar ou tratar complicações médicas. Cerca de duzentas e vinte milhões de mulheres sexualmente activas no mundo em desenvolvimento afirmam que querem evitar a gravidez, mas não usam contracepção moderna. Isto é uma tragédia imensa para as pessoas individuais e para o futuro do nosso planeta, já fortemente povoado. Contudo, em Julho de 2012, quando a Cimeira de Londres sobre Planeamento Familiar, patrocinado pelo Departamento para o Desenvolvimento Internacional do governo britânico e pela Fundação Gates, anunciou compromissos para chegar a cento e vinte milhões destas mulheres até 2020, a resposta do jornal do Vaticano foi criticar Melinda Gates, cujos esforços para organizar e em parte financiar esta iniciativa se calcula que conduziria a quase três milhões de bebés que não irão morrer no primeiro ano de vida, e a cinquenta milhões de abortos a menos. Seria de pensar que os católicos romanos considerariam desejáveis estes resultados. (A própria Gates é uma católica praticante que viu o que acontece quando as mulheres não conseguem alimentar os filhos, ou quando ficam estropiadas devido a abortos inseguros.)

Restringir o acesso ao aborto legal leva muitas mulheres pobres a procurar abortos inseguros. Na África do Sul, a legalização do aborto, em 1988, viu as mortes relacionadas com a interrupção da gravidez cair noventa e um por cento. E o desenvolvimento dos fármacos misoprostol e mifepristona, que podem ser fornecidos por farmacêuticos, torna possível o aborto relativamente seguro e barato, tanto nos países em desenvolvimento, como nos desenvolvidos. Nos EUA, tem havido um recuo em direcção a leis mais restritivas, em alguns estados. Graças a Women on Web e a Aid Access, iniciativas da Dra. Rebecca Gomperts, uma activista feminista, as mulheres de muitas jurisdições onde o aborto é proibido conseguem obter estes fármacos pelo correio, como fizeram milhares de mulheres do Texas, quando o aborto foi aí drasticamente restringido, em 2021.

Os oponentes respondem que o aborto é, pela sua própria natureza, inseguro — para o feto. Fazem notar que o aborto mata um indivíduo humano vivo e único. Essa afirmação é difícil de negar, pelo menos se com “humano” queremos dizer “membro da espécie Homo sapiens”.

Também é verdadeiro que não podemos simplesmente invocar o “direito de escolha” da mulher, para evitar a questão ética do estatuto moral do feto. Se o feto tivesse realmente o estatuto moral de qualquer outro ser humano, seria difícil defender que o direito de escolha de uma mulher grávida inclui o direito de provocar a morte do feto, excepto talvez nos casos em que a vida da mulher esteja em perigo.

A falácia do argumento contra o aborto está na passagem da afirmação cientificamente rigorosa de que o feto é um indivíduo vivo da espécie Homo sapiens para a afirmação ética de que, consequentemente, o feto tem o mesmo direito à vida de qualquer outro ser humano. A pertença à espécie Homo sapiens não é suficiente para conferir a um ser o direito à vida. O mesmo acontece com algo como a autoconsciência ou a racionalidade: não dá mais protecção a um feto do que, digamos, a uma vaca, porque as capacidades mentais do feto são inferiores às das vacas. Contudo, raramente se vê os grupos “pró-vida” que fazem piquetes à porta das clínicas de aborto a fazê-los à porta dos matadouros.

Podemos plausivelmente defender que não devemos matar, contra a sua vontade, seres autoconscientes que querem continuar a viver. Pode-se considerar que isso é uma violação da sua autonomia, ou uma frustração das suas preferências. Porém, por que razão haveria o potencial de um ser para se tornar racionalmente autoconsciente tornar incorrecto pôr fim à sua vida antes de ter efectivamente a capacidade da racionalidade e da autoconsciência?

Não temos a obrigação de permitir que todos os seres com o potencial para se tornarem racionais realizem esse potencial. Se há um conflito entre os supostos interesses de seres que em potência são racionais, mas que ainda não têm sequer consciência, e os interesses vitais de uma mulher efectivamente racional, devemos dar sempre preferência à mulher.

Peter Singer
Ética no Mundo Real: 90 Ensaios Sobre Coisas que Importam (Lisboa: Edições 70, 2024)
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ISSN 1749-8457