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Crítica
28 de Dezembro de 2008   História da filosofia

Profundamente original

Rui Daniel Cunha
Últimos Escritos sobre a Filosofia da Psicologia
de Ludwig Wittgenstein
Tradução de João Tiago Proença, António Marques e Nuno Venturinha
Lisboa: Gulbenkian, 2007, 372 pp.

Quando iniciei a licenciatura em Filosofia, em meados dos anos 80, não existia em Portugal — sinal do nosso atraso filosófico — uma única obra de Wittgenstein traduzida para a nossa língua (embora no Brasil, honra lhe seja feita, já existissem algumas edições). Foi a Fundação Gulbenkian quem quebrou esta lamentável situação e inaugurou as traduções portuguesas de Wittgenstein, com a publicação do Tractatus e das Investigações Filosóficas, mesmo no final de 1987, e é desta mesma editora que nos surge agora, em edição modelar, os Últimos Escritos sobre a Filosofia da Psicologia.

Trata-se de uma obra publicada inicialmente em dois tomos (Volume I: Estudos Preliminares para a Parte II das Investigações Filosóficas e Volume II: O Interior e o Exterior), em 1982 e 1992, pela editora Blackwell, em edição bilingue alemão-inglês. É aqui reunida num só volume, sem o texto original alemão, mas com uma excelente tradução da responsabilidade de António Marques, Nuno Venturinha e João Tiago Proença.

Vinte anos depois dessa primeira e fundamental tradução, que se deve ao Professor M. S. Lourenço, e com várias traduções importantes — embora nem todas da mesma qualidade — nas Edições 70 e na Cotovia, o panorama, felizmente, é significativamente diferente — parte relevante da obra de Wittgenstein está já acessível ao leitor de língua portuguesa, dos Cadernos 1914–16 até Da Certeza, passando pelas Aulas e Conversas sobre Estética, Psicologia e Fé Religiosa, Blue & Brown Books e Zettel, por exemplo.

Apesar da inexistência de traduções, Wittgenstein já era mencionado em livros de alguns filósofos portugueses, desde os anos 30, pelo menos: pertence ao Professor Delfim Santos, tanto quanto sei, a primeira análise detalhada entre nós da filosofia do Tractatus, no seu livro Situação Valorativa do Positivismo, publicado em 1938. Mas apenas essa primeira fase do pensamento filosófico de Wittgenstein era conhecida. Todos os desenvolvimentos posteriores da sua filosofia, iniciados com o seu regresso a Cambridge, em Janeiro de 1929, foram completamente ignorados por cá enquanto Wittgenstein viveu. É verdade que Delfim Santos fora bolseiro do Instituto para a Alta Cultura em Cambridge, em 1937, tendo mesmo sido aluno de C. D. Broad. Certo é, porém, que não lhe teria sido possível ser aluno de Wittgenstein: este terminara a docência no Trinity College no Verão de 1936 (só a retomaria em 1938), e partira para a Noruega com o intuito de escrever a tão desejada e nunca conseguida versão definitiva do que ele queria que fosse o seu novo livro, só postumamente publicado sob o título de Investigações Filosóficas.

Claro que, nada tendo Wittgenstein publicado em vida excepto o Tractatus, as versões das suas obras que conhecemos são da responsabilidade dos seus executores testamentários (Rush Rhees, G. E. M. Anscombe e G. H. von Wright), a quem Wittgenstein deixou a missão de editar aqueles escritos do seu Nachlass que julgassem publicáveis. O mesmo é o caso destes Últimos Escritos sobre a Filosofia da Psicologia, organizados na edição original por G. H. von Wright e Heikki Nyman e agora traduzidos.

As dificuldades e os detalhes da tarefa de editar satisfatoriamente o Nachlass, tendo em conta as dezenas de manuscritos, dactiloscritos e ditados que constituem a fonte das obras póstumas de Wittgenstein que conhecemos — e muito em especial o caso pormenorizado desta obra — são detalhadamente abordados e discutidos numa notável “Apresentação Histórico-Filológica” (páginas 29-41), da autoria de um dos tradutores — Nuno Venturinha.

A edição beneficia também de uma óptima Introdução (“Vivência e Significado”, pp. 5-28), da autoria de outro dos tradutores — António Marques. Nela se apresentam, com precisão e clareza, os três grandes eixos da concepção wittgensteiniana da filosofia da psicologia:

a) é uma investigação inseparável do emprego linguístico dos conceitos psicológicos;
b) é uma investigação que tem como objecto o comportamento unitário (das Benehmen) do ser humano; e
c) é uma investigação que assenta necessariamente na vivência do significado. (p. 12)

Cada um destes três eixos é de seguida detalhadamente analisado e discutido nessa Introdução. Centrar-nos-emos nesta recensão apenas no primeiro desses eixos.

A edição conta ainda com um útil glossário alemão-português, no final do volume (pp. 369-370), onde são explicitadas algumas das principais opções de tradução. Nota-se, porém, a ausência do também útil índice remissivo das edições originais da Blackwell, aspecto que talvez possa ser corrigível em futura reedição.

Wittgenstein não é um pensador fácil, e este livro mostra-o bem:

Uma sociedade na qual a classe dominante fala uma linguagem que a classe servil não pode aprender. A classe superior atribui valor ao facto de a classe inferior nunca vir a adivinhar o que aqueles sentem. Tornam-se assim imprevisíveis, misteriosos (U.E., II, MS 169, § 273, p. 293).

Não é neste sentido — a pertença uma classe de supostos “pensadores”, que utilizam um qualquer jargão pseudofilosófico ininteligível para praticarem puro terrorismo intelectual — que Wittgenstein é um pensador difícil. É que de facto o seu pensamento filosófico (em qualquer uma, aliás, das duas fases em que é geralmente subdividido) é intrinsecamente complexo, porque profundamente original.

Para poder compreender melhor estes Últimos Escritos sobre a Filosofia da Psicologia, é conveniente relembrar que, para Wittgenstein, todo o trabalho filosófico é um trabalho conceptual. Isto significa que por “filosofia da psicologia” se deve entender uma investigação referida a conceitos psicológicos. Como é que isso se faz, perguntar-se-á, e por que deve ser feita?

Vejamos: segundo Wittgenstein, uma investigação dos conceitos psicológicos consiste numa descrição dos usos linguísticos (os “jogos de linguagem”) em que cada conceito em análise ocorre. A esta descrição do comportamento linguístico de um conceito chama Wittgenstein a sua “gramática”. Como tal, o fim da filosofia da psicologia é a construção de uma representação panorâmica da “gramática” dos conceitos psicológicos. Como escreve Wittgenstein,

saber, crer, esperar, temer (entre outros) são conceitos tão diversos que uma classificação, uma ordenação em diferentes grupos, não tem para nós nenhuma utilidade. Queremos sim reconhecer as diferenças e semelhanças entre eles. (U.E., I, § 122, pp. 76-77)

Tal tarefa é relevante visto que, na concepção metafilosófica de Wittgenstein, o objectivo do trabalho filosófico é a dissolução dos próprios problemas da filosofia, revelando, através da representação gramatical clara, as ilusões linguísticas que lhes subjazem. Leia-se, por exemplo, o § 834, Parte I, dos U.E.:

Dizemos “eu sei...” quando se pode duvidar, enquanto os filósofos dizem precisamente que se sabe algo quando não existe nenhuma dúvida e quando, por isso, as palavras “eu sei” são supérfluas como introdução às frases. (pp. 210–211)

Um problema filosófico, em suma, não é mais do que uma doença conceptual, por assim dizer. Deste modo, a finalidade última de uma filosofia da psicologia, tal como Wittgenstein a concebe, é a dissolução dos problemas filosóficos acerca da mente. Como escreve o próprio Wittgenstein,

na filosofia temos de distinguir as frases que exprimem a nossa tendência de pensar das frases que resolvem o problema. (U.E.,I, § 109, pp. 74)

E posteriormente, noutro passo:

se não quisermos RESOLVER [em maiúsculas no original] problemas filosóficos — por que não desistimos de nos ocupar com eles. Pois resolvê-los significa modificar o seu ponto de vista, o antigo modo de pensar. Se não o quiseres fazer, deves considerar os problemas como insolúveis. (U.E.,II, MS 174, § 24, pp. 354)

Consequência desta concepção é que Wittgenstein não se propõe defender quaisquer teses ou teorias substantivas em filosofia da psicologia, nem explicar qualquer alegado verdadeiro sentido de determinado conceito psicológico — “os filósofos dispõem para muitas palavras um emprego ideal que depois para nada serve” (U.E.,I,§ 830, pp. 210). O que encontramos aqui, no estilo fragmentário e confessional tão característico da última fase do pensamento de Wittgenstein, é antes a tentativa de clarificar determinadas ilusões conceptuais — “desenlear muitos nós, tal é a tarefa do filósofo” (U.E., I, § 756, pp. 195).

Uma delas, e proeminente nestas páginas, é a dicotomia interior/exterior, isto é, o dualismo entre o mental e o físico, entre o mundo privado da mente humana e o mundo físico dos objectos exteriores a ela. Escreve, por exemplo, Wittgenstein:

O “interior” é uma ilusão. Quer dizer: o complexo de ideias no seu todo ao qual se alude com esta palavra é como uma cortina pintada corrida à frente da cena do genuíno emprego da palavra. (U.E., II, MS 174, § 26, p. 355)

Outra delas é o acesso privilegiado do próprio sujeito, por introspecção, à sua própria mente, por oposição ao acesso meramente indirecto — porque limitado às observações do comportamento de outrem — a mentes de outras pessoas. Leia-se, por exemplo, o seguinte passo:

Em primeiro lugar, “Não posso saber quais são os seus sentimentos” não significa naturalmente: ... em oposição aos meus. Em segundo lugar, não significa: nunca posso ter a certeza dos seus sentimentos. (U.E., II, MS 174, § 55, pp. 360)

Outra ainda, que decorre da anterior, é que o autoconhecimento se baseia na introspecção, supostamente directa e infalível — a privacidade epistémica (só eu posso saber o que sinto). Escreve-se nesta mesma obra o seguinte, por exemplo: “Só eu sei o que penso nada mais significa, na verdade, do que: apenas eu penso os meus próprios pensamentos”. (U.E., II, MS 171, § 10, p. 318)

É este o tipo de trabalho filosófico de que se ocupa Wittgenstein, apresentando sucessivamente jogos de linguagem e casos linguísticos relevantes para diagnosticar e tratar tais situações. Como bem observa António Marques,

o que a filosofia da psicologia de Wittgenstein propõe é uma espécie de actividade terapêutica que consiste na comparação e na diferenciação desses múltiplos jogos de linguagem. (p. 25)

Determinar se a abordagem de Wittgenstein é ou não a mais adequado para a investigação conceptual, nesta ou noutras áreas da filosofia, é, porém, uma questão em aberto. O filósofo britânico A. C. Grayling, por exemplo, escreveu o seguinte:

A maior parte do que aconteceu em filosofia durante e desde o seu tempo [de Wittgenstein] consiste exactamente no que os seus escritos condenam: nomeadamente, a investigação sistemática dos mesmos “problemas da filosofia” que ele dizia que desapareceriam quando se atentasse adequadamente à linguagem. O facto é que a maioria dos filósofos analíticos recentes simplesmente discorda desta pretensão. A sua prática revela que, longe de aceitarem a perspectiva de Wittgenstein, são mais influenciados pelo legado filosófico de Frege e de Russell do que por ele (Wittgenstein, Oxford: Oxford University Press, p. 112).

A tese de Grayling não é inquestionável — basta pensar na filosofia do Tractatus. Mas ainda que Grayling tivesse razão e a última filosofia de Wittgenstein não fosse directamente integrável no mainstream da filosofia analítica que se pratica hoje em dia (questão que excede o âmbito desta recensão), permanece inegável a importância e a influência de Wittgenstein no pensamento filosófico do século XX. Inegável é também a relevância desta edição para o leitor de língua portuguesa poder compreender melhor o complexo pensamento filosófico do último Wittgenstein.

Rui Daniel Cunha

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