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Crítica
21 de Setembro de 2003   Ética

Valores e factos

D. D. Raphael
Tradução e adaptação de Luís Filipe Bettencourt

A filosofia adopta uma atitude crítica em relação a determinadas crenças que foram previamente consideradas verdadeiras. A filosofia moral faz o mesmo em relação a crenças relacionadas com o certo e o errado, com o bom e o mau, com o que se deve e com o que não se deve fazer. A questionação crítica de determinadas crenças tende a surgir quando existe um conflito aparente entre uma ideia antiga e uma nova. Eis dois exemplos:

  1. Na Grécia antiga, como em muitas outras sociedades, aceitava-se que as regras morais eram absolutas e reflectiam a ordem do universo como um todo. Quando os professores itinerantes, os chamados “sofistas”, viajaram pelo mundo conhecido, descobriram que os códigos morais e os sistemas legais variavam de sociedade para sociedade. Isto levou-os a questionar a antiga crença de que as regras morais são absolutas e universais.
  2. O mesmo pode acontecer nas sociedades modernas do ocidente. Em geral, aceita-se que certos princípios fundamentais — por exemplo, a proibição de matar pessoas — são absolutos e universalmente reconhecidos como tal. No entanto, é claro que todos sabemos que certas tribos primitivas, e até nações civilizadas em situação de guerra, pensam que a proibição absoluta só se aplica dentro do próprio grupo. Contudo, e pelo menos, dentro desses limites, supomos que o princípio é universalmente aceite como auto-evidente. Assim, constitui para nós uma surpresa ver os antropólogos sociais afirmar que em algumas tribos se aprovava a morte das pessoas mais velhas da sua sociedade, ou descobrir na história antiga que os espartanos abandonavam as crianças mais fracas nas montanhas.

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Dúvidas?

Podemos, pois, vir a duvidar da antiga suposição de que os princípios morais básicos são absolutos — isto é, objectivamente válidos em todas as épocas e para todas as pessoas. Mas como é que se testa essa crença? Como é que se encontram boas razões para a aceitar ou rejeitar? Nós sabemos como testar crenças duvidosas acerca de questões de facto. Se, por exemplo, duvidamos do relato de um viajante que nos diz que os pigmeus da bacia do rio Congo não têm mais de um metro e meio, podemos testar essa crença indo lá e vendo com os nossos próprios olhos (descobriremos que esse relato é um exagero). O problema é que não podemos fazer o mesmo com os valores. Não podemos ver com os nossos olhos se matar pessoas é errado ou não.

É claro que há coisas relevantes que podemos ver com os nossos olhos. Se nos falam de diferentes crenças e práticas morais, podemos sempre ver e verificar se o relato é rigoroso ou não. Por exemplo, podemos ver com os nossos olhos se é ou não verdade que entre o povo Chukchi da Sibéria os velhos e os enfermos continuam a ser mortos (como acontecia antes); ou podemos verificar se em França todos os homens têm, não só uma amante, mas também uma mulher [...]. Em suma, podemos observar diferenças de comportamento.

Isto inclui a observação de indícios que apoiem as crenças morais. Não podemos observar as próprias crenças. Mas podemos, por um lado, observar aquilo que as pessoas dizem ao expressarem as suas crenças, e podemos, por outro, observar — mediante o seu comportamento — se as suas afirmações são sinceras ou não. Por exemplo, podemos observar que as pessoas das ilhas de Samoa não apenas têm um código sexual diferente do nosso como também defendem (se lhes perguntarmos) que ele é correcto e decente [...].

Podemos observar diferenças de comportamento e podemos observar indícios a favor de diferentes crenças. Mas se tivermos dúvidas sobre a verdade do nosso próprio código moral, não nos serve de muito confirmar que outras pessoas têm diferentes crenças morais. O nosso problema não é descobrir em que acreditamos nós e em que acreditam os outros. O nosso problema é saber em que devemos acreditar; a questão não é saber o que nós (ou os Samoenses) pensamos que está correcto, mas sim o que devemos pensar que está correcto [...]. Queremos um teste para normas ou valores e não um teste para factos.

Antes, pensava-se que a Terra era plana. Hoje temos boas razões para acreditar na tese de que a Terra é mais ou menos esférica. Mas que indícios podemos nós fornecer para mostrar que a tese de que matar pessoas idosas ou crianças fracas é realmente errada, apesar das práticas e das crenças de algumas sociedades? No exemplo da Terra plana, uma observação pode ser corrigida por outra. À primeira vista a Terra parece plana; mas depois temos que ter em conta a diferença no horizonte, quando é observado ao nível do mar e quando é observado do topo de uma montanha; temos que ter em conta que o casco de um navio, visto ao longe, desaparece primeiro do que os seus mastros; temos que ter em conta as viagens à volta do mundo; e ainda a visão da Terra quando observada de uma estação lunar. Em relação às crenças morais, que tipo de observação poderia surtir o mesmo efeito? Nós não vemos nem tocamos aquilo que é correcto ou aquilo que é errado. Nós não alcançamos as nossas crenças morais a partir dos dados dos sentidos.

Bem, mas talvez as alcancemos através dos dados fornecidos por um tipo diferente de experiência: a experiência do sentimento ou da emoção. Nós temos certos sentimentos de aprovação em relação a certas acções e estados de coisas e temos sentimentos de desaprovação em relação a outras. O mesmo se aplica aos juízos estéticos. Quando afirmamos que a Quinta Sinfonia de Beethoven é bela, ou quando dizemos que o pôr-do-sol é belo, não ouvimos a beleza de um, nem vemos a beleza de outro. Ouvimos os sons da sinfonia e vemos as cores do pôr-do-sol; mas sentimo-nos tocados esteticamente. Do mesmo modo, talvez possamos afirmar que nos sentimos tocados moralmente quando observamos um acto de bondade ou um acto de crueldade.

Esta teoria tem uma implicação importante. Os sentimentos são subjectivos. Os seguintes provérbios são disso prova: “a beleza está nos olhos de quem a vê” (significando a mente, não o olho físico); “gostos não se discutem”; “tu gostas de café, eu gosto de chá”; “os espartanos aprovavam o abandono de crianças débeis, nós desaprovamos”. Assim, a teoria que defende que os juízos morais, tal e qual como os juízos estéticos, dependem dos dados dos sentimentos, tem a consequência de que são subjectivos. Isto é, os juízos morais relacionam-se com os indivíduos ou grupos que têm esses sentimentos. Por outras palavras: não há uma moral objectivamente verdadeira. O estatuto das normas morais é completamente diferente do das leis e teorias científicas. As teorias científicas pretendem ser objectivamente verdadeiras e têm possibilidades de o ser. As leis científicas actuais são aceites como objectivamente verdadeiras; elas poderão ter de ser modificadas à luz de novas descobertas, mas estarão sempre dependentes de dados objectivos, e não de sentimentos subjectivos de indivíduos ou grupos particulares [...].

Além disso, quando comparamos o desacordo que pode haver entre juízos de facto e o desacordo entre juízos de valor há a dificuldade de saber como se pode encontrar um teste objectivo para resolver o desacordo. Se um invisual insiste teimosamente que não existe diferença entre o vermelho e o verde, podemos mostrar-lhe as diferenças nos comprimentos de onda que podem ser registados por meio de instrumentos. O mesmo se pode afirmar em relação a um surdo Mas o que é que se pode fazer para convencer uma pessoa que pensa que nada há de errado em puxar a cauda de um gato? Podemos dizer-lhe que isto causa dor. Mas suponhamos que ele diz “Muito bem, causa dor, e depois?” Como é que lhe podemos mostrar que, se a sua acção causa dor, então é errada? Podemos argumentar que, certamente, ele não gostaria que lhe causassem dor. Mas ele poderia responder o seguinte: “É verdade, eu não gostaria e ainda bem que eu não estou no lugar do gato”. Podemos dizer-lhe que se ele faz os outros sofrer, então os outros farão o mesmo quando puderem. Contudo, isto é um apelo à prudência, à autopreservação, e não um apelo à moralidade. Pretende-se que o apelo à autopreservação o faça alterar o seu comportamento por medo, e não por convicção moral. Como poderemos fazê-lo agir, não por medo, mas sim por convicção moral?

Talvez, o possamos fazer, apelando à simpatia. Hume, entre outros filósofos, explicou a aprovação e a desaprovação moral através de certas tendências gerais presentes na natureza humana. Todos nós (ou praticamente todos) queremos ser felizes, ter prazer e evitar a dor. Todos temos uma tendência natural para simpatizar com os desejos e sentimentos das outras pessoas (e animais) e é por isso que aprovamos ajudar as pessoas a conseguir aquilo que querem, e que desaprovamos fazer coisas que vão contra os seus desejos. De acordo com esta perspectiva, o sentimento de aprovação moral é o resultado da tendência natural para a simpatia. Simpatizar é uma forma de partilhar, na imaginação, os sentimentos dos outros. Imaginamo-nos no seu lugar e assim sentimo-nos como eles. [...] Esta teoria sobre o juízo moral é uma versão do naturalismo. Aqui a ética depende da “natureza humana”, da psicologia. [...] As variações nos códigos morais devem-se às diferentes condições sociais, enquanto a uniformidade subjacente a estes códigos fica a dever-se à posse, por quase todos os seres humanos, das mesmas tendências psicológicas.

Contra as teorias éticas naturalistas, há perspectivas que defendem que a ética contém alguma verdade absoluta, que os valores morais, (se não outros valores) têm a sua fundação na natureza do universo ou na natureza de Deus, e não apenas na natureza humana, que poderia ter sido diferente do que aquilo que é. Tal perspectiva foi defendida por alguns (não todos) teólogos e filósofos racionalistas.

Na teoria do conhecimento (epistemologia), um filósofo racionalista defende que o conhecimento genuíno é adquirido pela razão e que é uma questão de verdade necessária. Exemplos de tal conhecimento são as verdades da matemática e da lógica formal. Na visão de um racionalista, estas são verdades acerca do mundo e são superiores à informação que recebemos através da percepção sensorial precisamente porque a sua verdade é necessária e universal. Toda a informação que é adquirida pelos sentidos, ou que é construída a partir dos dados dos sentidos, não é objecto de conhecimento — no sentido que o racionalista dá ao conceito — precisamente porque não é necessária e universal. A informação inicial diz respeito apenas a percepções individuais, e quando generalizamos apenas poderemos atingir uma conclusão provável que pode ser falsificável. A informação adquirida através dos sentidos não é necessária mas “contingente”; isto é, acontece ser verdadeira numa ocasião particular ou ocasiões, mas poderia não ser verdadeira ou poderia ser falsa nalguns casos.

A esta visão racionalista, a filosofia da razão, opõe-se o empirismo, a filosofia da experiência. Estes defendem que o conhecimento genuíno deve depender da experiência dos sentidos ou dos sentimentos. Este conhecimento não é, de facto, necessário e universal mas é informação acerca do mundo real. As verdades puras da matemática e da lógica formal são necessárias e universais porque não nos dão informação acerca do mundo. Elas dependem de definições e de regras artificiais. Constituem dispositivos úteis, muitos dos quais pode ser aplicados ao mundo natural, mas não de modo a produzirem um conhecimento genuíno adicional. O efeito de aplicar a matemática e a lógica à nossa informação acerca do mundo é o de reorganizar essa informação de novos modos. Uma adição de conhecimento genuíno só pode advir da experiência.

O racionalista sente-se impressionado pelo facto de que os juízos morais tendem a parecer verdades necessárias. Eles são diferentes dos dados da percepção ou dos afectos acerca da psicologia humana, que são contingentemente verdadeiros. Acontece que a relva é verde, mas a sua cor poderia ser diferente; do mesmo modo, acontece que as folhas da maioria das árvores são verdes, no entanto, algumas são vermelhas e outras cinzentas. Acontece que os homens são benevolentes, compreensivos e altruístas — o facto é que poderiam não ser assim, como podemos verificar pelos exemplos de pessoas anormais que são maliciosas e sádicas. Por contraste, argumenta o racionalista, não é uma questão contingente que o amor seja bom e o ódio mau, que ajudar os pobres está certo e que torturar pessoas (ou gatos) é errado, que devemos dizer a verdade e manter as nossas promessas. Estas coisas, afirmam eles, são necessariamente verdadeiras.

A extensão do desacordo acerca dos juízos morais sugere que eles estão longe de ser necessariamente verdadeiros. Porque pensa então um racionalista que eles o são? O racionalista típico está impressionado com duas coisas. 1) Os juízos de valor não podem ser verificados pela percepção sensorial, como acontece com os juízos factuais do tipo “A relva é verde”. Contudo, falamos e pensamos como se tivéssemos um conhecimento firme sobre eles. Um homem pode muito bem dizer: “É claro que todos nós sabemos que o amor é bom e que o ódio é mau, como poderia não ser assim?” 2) Os juízos morais podem muitas vezes ser comparados com os juízos matemáticos que também não são verificáveis pela percepção sensorial (porque vão além do contingente e do particular para o necessário e universal). Um juízo matemático, argumenta o racionalista, ou se atinge por dedução ou é auto-evidente. Um exemplo simples de um juízo conseguido por dedução é este: “O terceiro lado de um triângulo deve ser menor do que a soma dos outros dois porque uma linha recta é a distância mais curta entre dois pontos”. E um exemplo simples de um juízo auto-evidente seria a premissa daquele argumento, nomeadamente: “Uma linha recta é a distância mais curta entre dois pontos”. Do mesmo modo, continua o racionalista, o juízo moral “Deverias chegar a tempo ao teu encontro porque assim o prometeste” é um exemplo simples de um raciocínio dedutivo, sendo a premissa geral do qual ele depende, “Todos devemos cumprir as promessas”, uma verdade auto-evidente. A conclusão de uma inferência dedutiva segue-se necessariamente das suas premissas, e uma proposição auto-evidente é aquela que é necessariamente verdadeira.

O primeiro passo do argumento racionalista, como foi apresentado aqui, é o facto de que os juízos de valor não dependem da experiência na forma de percepção sensorial. Mas o que dizer da sugestão, aparentemente plausível, de que eles dependem dos sentimentos? Os juízos morais e estéticos são parecidos, e é comum afirmar que os juízos estéticos são uma questão de gosto. Algumas questões de gosto dependem de uma simples e imediata reacção, enquanto outros são o resultado da cultura, mas em qualquer dos casos o gosto tem a ver com o sentimento. Num gosto cultivado, quer seja por obras de arte ou por comida e bebida, aquilo que é cultivado é uma forma de gostar, uma forma de prazer. Porque é que não devemos seguir o naturalista quando faz depender a validação dos juízos morais do gosto e, em última análise, do sentimento?

Ainda que a sugestão pareça, à primeira vista, promissora, ela não encaixa bem nos juízos morais. Se alguém afirma que é errado puxar a cauda de um gato, ele não pensaria nisto como algo semelhante a uma expressão de repugnância. Vamos supor que ouvimos dizer que a polícia torturou alguns suspeitos com a intenção de lhes extrair uma confissão, e alguém afirma o seguinte: “Torturar suspeitos é errado”. Seria sinal de loucura se a polícia dissesse “Bom, você sente repugnância com tal coisa, não é? Pois eu não”. O que apeteceria dizer era “Aquilo que eu sinto e aquilo que você sente é irrelevante. Eu disse que era errado”.

O mesmo já não se pode afirmar em relação aos juízos estéticos. Suponhamos que duas pessoas estão em desacordo quanto ao mérito de uma peça de jazz ou de música pop. Uma afirma que é lindíssima, e outra que é um barulho medonho. A primeira poderia retorquir: “Tu não gostas, não é? Pois eu gosto!”. O segundo dialogante não pensaria que isto era uma distorção absurda do seu desacordo. Há, contudo, muitos juízos estéticos que parecem ir além da expressão do gosto individual. Se alguém descreve como lindíssima uma peça de arte que, em geral é designada como grandiosa (a Pietà de Michelangelo, por exemplo), essa pessoa não se refere apenas aos seus sentimentos; o seu juízo inclui a expectativa de que os outros partilhem a sua reacção; ou pelo menos que o deveriam fazer. Mas outras vezes o uso da palavra “lindíssimo” não tem tal implicação. Talvez seja mais óbvio com juízos estéticos relacionados com o cómico. Não esperamos que os outros tenham, necessariamente, de partilhar aquilo que nós achamos cómico, muito menos que o devam fazer. O que uma pessoa acha cómico outra acha aborrecido.

Os juízos estéticos cobrem, então, um espectro, admitindo-se que um dos seus limites é subjectivo. Os juízos éticos são diferentes. Quando consideramos alguns exemplos éticos genuínos, eles não podem ser tomados como expressões de gosto individual. Com justificação ou não, pretende-se que sejam válidos para todos em qual situação análoga. Há uma universalidade naquilo que afirmam. É por isso que o racionalista os compara com os juízos matemáticos, que também são universais no seu significado. Afirmar “2 + 2 = 4” significa que quaisquer duas coisas adicionadas a outras duas somam quatro coisas. A universalidade, muitas das vezes, acompanha a necessidade. A proposição matemática significa que a adição de quaisquer duas coisas com outra duas deve perfazer quatro. O racionalista aponta para algo semelhante nos juízos morais. O juízo que afirma que deves agir de certo modo porque assim prometeste (ou porque implica ajudar alguém necessitado, etc.) não é um juízo contingente assim como não se relaciona apenas com um caso particular. Não se está a dizer “acontece que deves cumprir a tua promessa”, como poderemos dizer “acontece que estas folhas são verdes”. O juízo moral implica que fazer uma promessa implica necessariamente a obrigação de a cumprir, que encontrar uma pessoa necessitada impõe necessariamente a responsabilidade de a ajudar. O significado dos juízos morais frequentemente inclui uma necessidade e uma universalidade. Dizer a uma pessoa particular que ela deveria agir de uma determinada forma porque assim o prometeu, implica que qualquer pessoa tem uma obrigação de manter as promessas que faz.

D. D. Raphael
Moral Philosophy (Oxford University Press, 1994), pp. 11–22.
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ISSN 1749-8457