O mais recente livro de Peter Singer publicado em Portugal é uma recolha de diversos trabalhos seus que procuram apresentar a totalidade do seu pensamento. O livro foi publicado em resposta aos protestos que se seguiram aquando da sua contratação pela Universidade de Princeton. Efectivamente, a imensidão de pessoas que protestava contra a contratação de Singer tinha uma ideia errada das suas posições, assim como o público austríaco e alemão, cujos manifestantes nunca permitiram que Singer discursasse e onde chegou a ser agredido fisicamente. O relato assustador do seu processo de silenciamento na Áustria e na Alemanha é feito por Singer num dos capítulos deste livro.
É comum Singer provocar reacções adversas muito violentas, mas isso não deveria ser surpreendente. Qualquer pessoa que ponha ideias feitas em causa gera anticorpos e a filosofia tipicamente põe ideias feitas em causa porque é em grande parte a análise cuidadosa dos nossos preconceitos mais queridos. Quando tais preconceitos dizem respeito a problemas esotéricos de epistemologia, metafísica ou filosofia da linguagem, ninguém se incomoda. Mas quando dizem respeito à eutanásia, à ajuda aos mais pobres, ao aborto ou ao modo como tratamos os animais não humanos, é natural que as reacções adversas se façam sentir.
O livro tem cinco partes, antecedidas por uma lúcida introdução na qual Singer explica quais são os quatro princípios éticos fundamentais nos quais baseia todas as suas posições. Como é típico na filosofia, estes princípios parecem aceitáveis, e num inquérito talvez a maior parte das pessoas os aceitasse. Contudo, conduzem Singer a conclusões que muitas pessoas não só se recusam a aceitar como acham ofensivas e intoleráveis, dignas de ser proibidas ou ignoradas. O primeiro princípio é que o sofrimento é intrinsecamente mau, “seja quem for aquele que sofre” (pág. 13), sendo igualmente mau independentemente de quem sofre. Por exemplo, o sofrimento dos brancos não pode valer menos ou mais do que o dos índios. O segundo princípio é que a maior parte dos animais não humanos — como os cães, cavalos, galinhas, porcos, vacas, etc. — pode sentir dor e sofrimento. O terceiro é que devemos unicamente ter em consideração cada ser, e não a espécie, raça ou sexo a que pertence, quando consideramos o mal de o matar. O quarto é que não somos responsáveis “só por aquilo que fazemos, mas também por aquilo que poderíamos ter impedido” (p. 13). Destes princípios seguem-se algumas das suas teses que mais irritam os críticos: que o sofrimento que provocamos nos animais não humanos para os comer é imoral; que a eutanásia e o aborto são morais, em certas circunstâncias, assim como o infanticídio; que o modo de vida europeu e americano é imoral, porque a generalidade das pessoas prefere comprar mais um par de calças de cem euros quando poderia dar esse dinheiro para ajudar a impedir uma criança em África de morrer à fome.
Uma parte importante da irritação que as pessoas sentem resulta de antropocentrismo. A distinção crucial entre pessoa e ser humano, estabelecida classicamente por John Locke, parece difícil de entender para muitas pessoas. Ser um ser humano é pertencer a uma dada espécie biológica, e isso só por si é moralmente irrelevante. Mas ser uma pessoa é ter determinadas características — consciência de si, projecção no futuro, autonomia — que são moralmente relevantes. Se um dia descobrirmos extraterrestres que falem connosco não podemos matá-los só por não serem seres humanos, tal como os europeus não tinham o direito de explorar e matar os índios e os negros só por não serem brancos.
A primeira parte do livro é uma breve introdução à ética, na qual Singer explica alguns mal-entendidos em relação a esta disciplina. A segunda parte é dedicada à discussão da relevância moral dos animais não humanos. A generalidade do público pensa que só se fazem experiências dolorosas com animais não humanos para salvar vidas humanas, mas isto é falso. Outra ideia falsa que as pessoas têm é quanto ao modo como os animais para a alimentação são tratados pela indústria alimentar — as pessoas têm em mente as quintas tradicionais, mas isso não existe hoje em dia. A terceira parte é dedicada à pobreza mundial, ao aborto e à eutanásia. Singer apresenta aqui os seus cinco novos mandamentos, em substituição de cinco dos mandamentos tradicionais, assim como dados muito interessantes acerca da perspicaz fantasia inventada pelos médicos de Harvard — a morte cerebral — que é na verdade uma maneira de sancionar a eutanásia involuntária sem termos de passar pelo incómodo lhe chamar tal coisa. A quarta parte contém algumas das ideias de Singer mais atraentes para o grande público: ideias sobre o sentido da vida e sobre o que significa ser de esquerda hoje. Finalmente, na última parte Singer apresenta algumas notas pessoais: a referida nota sobre o seu silenciamento na Alemanha, o seu distanciamento relativamente ao activismo exacerbado em prol da libertação animal e finalmente uma entrevista.
Este é um livro de leitura contagiante, defendendo cuidadosamente ideias importantes, e servido por uma prosa elegante, clara e despretensiosa. Será irritante para muitas pessoas, mas quando a filosofia cumpre o seu papel de pôr em causa os nossos preconceitos mais queridos não pode evitar ser irritante.