É frequente fazer comparações implícitas entre espécies no que respeita ao bem-estar. Os seres humanos matam todos os anos milhares de milhões de animais não-humanos para produzir alimentos. Inúmeros outros animais são negligenciados durante catástrofes naturais, como surtos de doenças, incêndios florestais, inundações e furacões. Estas decisões reflectem um sentido enraizado de bem-estar comparativo, implicando uma hierarquia de bem-estar entre as espécies. Para avaliar estas práticas de forma sistemática, temos primeiro de determinar se as diferentes espécies têm capacidades iguais ou diferentes em termos de bem-estar.
O ponto de vista filosófico predominante — designado por Perspectiva da Diferença (DIF) — defende que as espécies com mais capacidades cognitivas ou emocionais têm mais capacidade para o bem-estar e, portanto, têm experiência de mais bem-estar do que as espécies com menos capacidades. Em Capacity for Welfare Across Species, Tatjana Višak contesta este ponto de vista. A autora defende que, apesar das diferenças cognitivas ou emocionais, os indivíduos de espécies diferentes têm a mesma capacidade para o bem-estar — uma posição que denomina “Perspectiva da Igualdade” (IGU). Nas suas palavras, “um rato feliz pode, em princípio, sentir-se tão bem como um ser humano feliz” (p. 85).
O livro começa por estabelecer os fundamentos de uma discussão ponderada sobre comparações de bem-estar entre as espécies. Na introdução, Višak apresenta uma panorâmica das principais concepções de bem-estar, o que é especialmente louvável uma vez que muitos leitores estarão pouco familiarizados com a bibliografia da teoria dos valores. A autora descreve também a tensão entre as posições DIF e IGU, deixando clara a sua rejeição da DIF e a defesa da IGU. Višak compromete-se ainda com a ideia de que os factos sobre o bem-estar têm relevância directa para o que temos razões para fazer. Isto significa que a discussão sobre o bem-estar das várias espécies irá dar forma, pelo menos em parte, à nossa compreensão de como devemos agir, o que dá a esta discussão uma importância tanto teórica como prática.
O Capítulo 2 apresenta uma análise exaustiva das várias defesas da DIF na bibliografia. O capítulo começa com a perspectiva de Shelly Kagan (2019), que se baseia na perspectiva da lista objectiva do bem-estar. Kagan argumenta que os animais com capacidades cognitivas mais elevadas, como os seres humanos, podem ter experiência de bens como amizades e realizações, fazendo-os ficar em geral melhor do que os animais com capacidades inferiores. No entanto, como Višak questiona, por que razão haveria um animal solitário, sem relações significativas, de estar pior do que um animal social que se envolve nessas relações? A ausência de certos itens de uma lista tão contestada não justifica a conclusão de que um ser tem menos capacidade para o bem-estar — um ponto apoiado tanto por teorias alternativas do bem-estar, observa, como por perspectivas de listas objectivas que não sejam ad hoc.
O capítulo prossegue com a análise de outros defensores da DIF, incluindo o preferencialismo da totalidade da vida de Peter Singer, os prazeres superiores e inferiores de John Stuart Mill, o conceito de fortuna de Jeff McMahan, a distinção entre o bem-estar da experiência e o bem-estar absoluto de Kevin Wong, e a fórmula de Mark Budolfson e Dean Spear. Nenhuma consegue estabelecer de forma convincente que as capacidades cognitivas e emocionais desempenham um papel decisivo na definição do bem-estar. Višak não contesta o facto óbvio de as espécies variarem nas suas capacidades cognitivas e emocionais. Porém, questiona a relevância dessas diferenças em termos de bem-estar. Como Višak reconhece, os seus argumentos não chegam para deitar por terra a DIF. No entanto, no mínimo, a sua crítica põe em questão muitos dos pressupostos predominantes neste campo.
O Capítulo 3 apresenta uma defesa da IGU. Višak defende que a IGU é “pelo menos tão plausível como a DIF, se não mais” (p. 60). Primeiro, a IGU é consistente com os resultados da ciência do bem-estar animal. Por exemplo, o conceito das “cinco liberdades” enfatiza a ausência de danos e a capacidade para responder a desafios, visando o conforto e a felicidade. Em segundo lugar, a IGU está em conformidade com várias teorias do bem-estar, incluindo o conceito de auto-realização. Quer se trate de prazer, felicidade, satisfação de desejos, auto-realização ou satisfação de necessidades, um porco satisfeito pode, em princípio, sentir-se tão bem como um ser humano satisfeito. Em terceiro lugar, uma perspectiva evolutiva das capacidades dos animais apoia ainda mais a maior plausibilidade da IGU. Višak argumenta que a capacidade hedónica (um indicador de bem-estar) é uma função evolutiva que ajuda os indivíduos a escolher acções benéficas. Uma vez que o prazer é contingente, transitório e relativo às opções que um indivíduo tem à sua disposição, isto sugere que os indivíduos de diferentes espécies, com bem-estar, partilham provavelmente a mesma capacidade hedónica.
Uma forma de contestar este ponto de vista seria realçar a maneira como a intensidade do prazer e da dor pode variar entre as espécies. Poder-se-ia argumentar que os animais apresentam diferenças significativas de capacidades perceptivas, e também de fisiologia e arquitectura neural, assim como de complexidade cognitiva, emocional e social. Dadas estas variações, não seria razoável esperar que a intensidade das valências de que têm experiência, como o prazer e a dor, fosse uniforme em todas as espécies (Schukraft 2020). Afinal, mesmo entre os seres humanos, a sensibilidade à dor pode variar significativamente (Hu & Iannetti 2019).
Em resposta, Višak poderia argumentar que estas diferenças não se traduzem necessariamente em diferenças na intensidade da valência de que se tem experiência. Embora as fontes, o processamento e as respostas ao prazer e à dor possam variar devido a diferenças nas necessidades ou nos ambientes dos animais, a capacidade hedónica fundamental permanece semelhante entre as espécies, porque desempenha a mesma função adaptativa. Algumas pessoas poderiam supor que uma maior complexidade cognitiva está relacionada com uma maior intensidade das valências de que se tem experiência, mas isso seria enganador. A investigação mostra que a complexidade cognitiva tem efeitos mistos na intensidade: alguns aspectos aumentam-na, enquanto outros a diminuem, o que está de acordo com a ideia de igual capacidade (IGU). Por outro lado, a complexidade afectiva, como a profundidade emocional, parece expandir a gama de intensidade, o que pode sugerir diferenças entre espécies (DIF) (Schukraft 2020). É evidente que é necessária mais investigação para medir com precisão a intensidade das valências de que se tem experiência, entre as espécies, embora esta seja uma tarefa difícil e que Višak não explora no livro. Embora Višak apresente uma forte argumentação a favor de uma capacidade igual de bem-estar entre as espécies, uma exploração mais aprofundada das questões complexas relativas à intensidade das valências de que se tem experiência reforçaria provavelmente o argumento a favor da IGU.
O Capítulo 4 alarga a discussão ao bem-estar ao longo do tempo. Višak preocupa-se particularmente com o impacto que tem diferentes esperanças de vida na capacidade de um indivíduo para o bem-estar. Depois de examinar as principais perspectivas filosóficas sobre os danos causados pela morte, Višak centra-se na questão de saber se as espécies com mais esperança de vida têm mais capacidade para o bem-estar devido ao facto de viverem mais tempo. Uma abordagem comum é relativizar o bem-estar à esperança de vida, sugerindo que os animais de vida mais curta (como os gatos) não têm necessariamente uma vida pior do que as espécies com uma esperança de vida mais longa (como os seres humanos). No entanto, num capítulo que pode exigir uma atenção especial, sobretudo para os leitores que não estão familiarizados com a ética populacional, Višak defende a perspectiva da duração total, a ideia de que quanto mais longa for a vida, maior será a capacidade para o bem-estar. Pressupondo um bem-estar igual e positivo em cada momento, este ponto de vista implica que os gatos têm, de facto, uma vida pior do que os seres humanos.
Como Višak reconhece, esta pode não ser uma conclusão muito bem-vinda, especialmente para igualitaristas e prioritaristas. No espírito do influente trabalho de Peter Vallentyne (2005), ao qual Višak não faz referência, poder-se-ia perguntar: dado que os gatos (ou ratos), devido à sua esperança de vida mais curta, vivem, em termos absolutos, significativamente pior do que os seres humanos, deveríamos mudar drasticamente a nossa preocupação (e potencialmente recursos) da maioria dos seres humanos para a maioria dos gatos? De forma algo inesperada, Višak considera que não devemos preocupar-nos com isso, “uma vez que essa preocupação de nada serviria num mundo em que nada se pode fazer para prolongar a esperança de vida natural dos gatos” (p. 111). No entanto, como sugere Vallentyne, com a possibilidade de “melhoria radical” (2005:419) da capacidade de bem-estar de um indivíduo, independentemente da espécie, teremos de melhorar aqueles que são menos dotados, entendendo-se neste caso aqueles que têm uma esperança de vida mais curta, se isso melhorar o seu bem-estar geral. Embora haja formas de evitar esta “conclusão problemática” (Vallentyne 2005: 416), teria sido útil ver Višak explorar estas implicações com mais detalhe.
O Capítulo 5 conclui com aquilo que muitos leitores estarão provavelmente a aguardar ansiosamente: uma discussão sobre as implicações práticas da IGU. Višak apresenta uma potencial reductio contra a IGU — a objecção dos insectos e das alterações climáticas. O argumento sugere que a aceitação da IGU pode levar à promoção das alterações climáticas, uma vez que, teoricamente, poderia maximizar o bem-estar por meio da criação de um grande número de insectos. Višak reconhece que a objecção se baseia em vários pressupostos normativos e empíricos com os quais não precisamos de nos comprometer. Embora Višak considere que o livro poderia terminar neste ponto, dá-lhe continuidade, explorando dois debates fundamentais que são relevantes para esta discussão: a questão do estatuto moral e a questão de saber se gerar mais vidas felizes conta como maximização do bem-estar.
Relativamente ao primeiro ponto, após uma análise exaustiva das perspectivas hierárquicas e não hierárquicas do estatuto moral, Višak conclui que a DIF pode produzir resultados contra-intuitivos, a menos que, com algum custo de plausibilidade, introduza uma hierarquia moral que muitos consideram implausível. Uma alternativa é rejeitar a DIF a favor da IGU, o que mantém uma consideração igual dos interesses de todas as espécies e evita a necessidade de uma visão hierárquica do estatuto moral. Considero os seus argumentos extremamente convincentes.
Relativamente ao segundo ponto, Višak introduz um conceito que designa por “baderismo” (Bader 2022), uma perspectiva da ética populacional baseada no não-comparativismo. Se a existência e a não-existência não são comparáveis em termos de bem pessoal, criar um maior número de insectos com bem-estar não é algo que tenhamos razões para fazer. Isto permite a Višak contornar a reductio e sustentar a plausibilidade da IGU.
Bem, quer se concorde quer não com o baderismo ou com o não-comparativismo em geral, há razões adicionais para rejeitar a reductio, sem necessariamente nos comprometermos com o não-comparativismo. A certa altura, Višak sugere que “Visto que se supõe que o principal benefício dos insectos consiste no seu maior número, podemos perguntar-nos se o facto de passar a existir pode beneficiar um indivíduo” (p. 113). No entanto, esta suposição pode ser posta em causa com base em dados empíricos. A dinâmica populacional sugere que muitas espécies adoptam uma estratégia reprodutiva de grande desperdício, produzindo um grande número de descendentes com a expectativa de que apenas alguns sobrevivam para se reproduzir (Ng 1995: 270-271). A maioria morre prematura e dolorosamente — de predação, congelamento, fome, doença ou parasitas — deixando-lhes pouca ou nenhuma hipótese de ter experiência de bem-estar (Ng 1995, Horta 2017, Johannsen 2020, Faria 2023). Os insectos seguem esta estratégia, pelo que aumentar a sua população significaria provavelmente gerar mais indivíduos com vidas miseráveis.
Assim, a partir de uma perspectiva comparativa, não teríamos razões para promover as alterações climáticas. Vale a pena salientar que a mesma conclusão se aplica a uma perspectiva não-comparativa como o baderismo, que postula uma assimetria: embora não tenhamos a obrigação de gerar indivíduos felizes, temos uma razão moral para evitar gerar indivíduos infelizes (Bader 2022, 35, citado em 136). Reconhecer isto reforçaria a forma como Višak evita a reductio e tornaria a sua perspectiva mais susceptível de ser aceite por um leque mais vasto de perspectivas, sejam elas comparativas ou não.
Podemos ainda questionar-nos sobre a forma de aplicar a IGU em situações práticas. Por exemplo, quando confrontados com a decisão de prolongar a vida de um ser humano ou de um ser não-humano, o que devemos fazer? Infelizmente, a IGU não fornece orientações específicas sobre estas questões. De facto, Višak admite que a intuição de favorecer o ser humano não está necessariamente em conflito com a IGU, uma vez que esta perspectiva diz respeito apenas à capacidade de bem-estar entre as espécies. Para determinar o modo correcto de agir, temos de recorrer à ética normativa.
Isto pode parecer um pouco decepcionante. Embora Višak destaque eficazmente a ligação entre o bem-estar e as razões normativas, a discussão seguinte sobre a maneira como estas discussões devem influenciar o nosso comportamento permanece algo limitada. Uma coisa é clara: a nossa tendência actual para desvalorizar drasticamente o bem-estar dos seres não-humanos é largamente injustificada. Se isto inclui os insectos e outros invertebrados continua a ser uma questão em aberto para Višak, uma vez que depende de provas empíricas. Entretanto, a questão de lidar com estimativas de bem-estar num contexto de incerteza continua por resolver na sua abordagem.
Em suma, Capacity for Welfare Across Species é um trabalho eticamente significativo e com uma argumentação meticulosa. Embora algumas questões práticas permaneçam sem resposta, é provável que seja uma das leituras mais cativantes deste ano.