Quando os alemães fizeram seu rápido avanço pela Bélgica no começo do verão de 1940, capturaram, entre outras coisas, Mr. P. G. Wodehouse, que, durante toda a parte inicial da guerra, tinha vivido em sua casa de campo em Le Touquet e até ao último momento parece não ter percebido que estava em perigo. Enquanto era levado para o cativeiro, terá comentado que “depois disto, talvez escreva um livro sério”. Foi colocado provisoriamente em prisão domiciliar e, com base em suas declarações subsequentes, parece ter sido tratado de maneira bastante amigável, com oficiais alemães da vizinhança frequentemente “aparecendo para dar um mergulho ou confraternizar”.
Mais de um ano depois, em 25 de junho de 1941, veio a notícia de que Wodehouse fora libertado do internamento e estava vivendo no Hotel Adlon, em Berlim. No dia seguinte, o público ficou assombrado ao descobrir que concordara fazer algumas transmissões de natureza “não política” pela rádio alemã. Os textos completos dessas transmissões não são fáceis de conseguir hoje, mas Wodehouse parece ter feito cinco delas entre 26 de junho e 2 de julho, quando os alemães o tiraram do ar mais uma vez. A primeira transmissão, em 26 de junho, não foi feita na rádio nazista, e seu conteúdo era uma entrevista com Harry Flannery, o representante da Columbia Broadcasting System, que ainda mantinha seus correspondentes em Berlim. Wodehouse também publicou no Saturday Evening Post um artigo que escrevera enquanto ainda estava no campo de internamento.
O artigo e as transmissões lidam principalmente com as experiências de Wodehouse no internamento, mas também incluem alguns escassos comentários sobre a guerra. Os que se seguem são amostras representativas:
Nunca me interessei por política. Sou totalmente incapaz de nutrir qualquer tipo de sentimento beligerante. Assim que estou prestes a ter sentimentos beligerantes contra um país, acabo encontrando um sujeito decente. Saímos juntos e perdemos quaisquer sentimentos ou pensamentos hostis.
Há pouco tempo observaram-me na parada e tiveram a ideia certa; pelo menos, mandaram-nos para o manicômio local. E lá tenho estado desde há quarenta e duas semanas. Há bastante a dizer em favor do internamento. Mantém-nos longe do bar e ajuda a manter a leitura em dia. O principal problema é que significa que você está longe de casa por muito tempo. Quando me juntar à minha esposa, seria uma boa ideia levar comigo, por segurança, uma carta de apresentação.
Nos dias anteriores à guerra, sempre tive um orgulho modesto em ser inglês, mas agora, sendo residente há alguns meses desta lata ou repositório de ingleses, não tenho tanta certeza. […] A única concessão que quero da Alemanha é que me dê um pedaço de pão, diga aos cavalheiros de mosquete no portão principal que olhem para o outro lado e deixem o resto comigo. Em troca, estou disposto a entregar a Índia, uma coleção autografada dos meus livros e a revelar o procedimento secreto para cozinhar batatas fatiadas em um radiador. Esta oferta é válida por uma semana a partir de quarta-feira.
O primeiro excerto citado acima causou bastante ofensa. Wodehouse também foi repreendido por usar (na entrevista com Flannery) a expressão “quer a Grã-Bretanha ganhe a guerra ou não” e não melhorou as coisas ao descrever, em outra transmissão, os hábitos imundos de alguns prisioneiros belgas com os quais estava internado. Os alemães gravaram essa transmissão e repetiram-na algumas vezes. Parece que o supervisionaram com muita brandura e permitiram-lhe não apenas que falasse de maneira divertida sobre os desconfortos do internamento, como também que comentasse que “todos os internados no campo Trost acreditam fervorosamente que a Grã-Bretanha acabará ganhando”. A impressão geral das transmissões, entretanto, é que não foi maltratado e não tinha qualquer malícia.
Estas transmissões provocaram imediatamente alvoroço na Inglaterra. Houve questionamentos no Parlamento, editoriais raivosos na imprensa e uma enxurrada de cartas de outros autores, quase todas elas de reprovação, embora uma ou outra tenha sugerido que seria melhor suspender o juízo, enquanto várias alegaram que Wodehouse provavelmente não tinha noção do que estava fazendo. Em 15 de julho, a BBC Home Service veiculou um pós-escrito extremamente violento feito por “Cassandra”, do Daily Mirror, acusando Wodehouse de “vender seu país”. O pós-escrito fez livre uso de expressões como “colaboracionista” e “adorador do Führer”. A acusação principal era que Wodehouse havia concordado em fazer propaganda alemã como uma maneira de comprar sua saída do campo de internamento.
O pós-escrito de “Cassandra” causou certa insatisfação, mas em geral parece ter intensificado o sentimento popular contra Wodehouse. Em resultado, várias bibliotecas retiraram os livros de Wodehouse de circulação. Eis uma nota jornalística típica:
Vinte e quatro horas após a audição da transmissão de Cassandra, o colunista do Daily Mirror, o Conselho Distrital Urbano de Portadown (Irlanda do Norte) vetou os livros de P. G. Wodehouse de sua biblioteca pública. O senhor Edward McCann disse que a transmissão de Cassandra encerrara a questão. Wodehouse já não era engraçado. (Daily Mirror)
Além disso, a BBC proibiu as canções com letras de Wodehouse de serem transmitidas, e continuava a fazê-lo alguns anos depois. Em dezembro de 1944, ainda havia no Parlamento exigências para que Wodehouse fosse levado a julgamento como traidor.
Há um ditado antigo que diz que parte da lama irá grudar se você jogar o suficiente, e a lama grudou em Wodehouse de maneira um tanto peculiar. Ficou a impressão de que as transmissões de Wodehouse (não que alguém se lembre do que ele disse nelas) mostravam-no não apenas como um traidor, mas como um simpatizante ideológico do fascismo. Mesmo na época, várias cartas à imprensa afirmavam que “tendências fascistas” podiam ser detectadas em seus livros, acusação que tem sido repetida desde então. Tentarei analisar a atmosfera mental desses livros daqui a pouco, mas é importante entender que os acontecimentos de 1941 não condenam Wodehouse a nada pior do que a estupidez. A pergunta realmente interessante é como e por que ele pôde ser tão estúpido. Quando Flannery encontrou Wodehouse (liberto, mas ainda sob guarda) no Hotel Adlon em 1941, viu imediatamente que estava lidando com uma pessoa politicamente ingênua, e ao prepará-lo para a transmissão da entrevista, precisou adverti-lo para que não fizesse certos comentários excessivamente infelizes, um dos quais com implicação ligeiramente anti-russa. Na ocasião, a expressão “quer a Grã-Bretanha vença a guerra ou não” acabou passando. Logo após a entrevista, Wodehouse disse a Flannery que também iria fazer uma transmissão na rádio nazista, aparentemente sem perceber qualquer importância especial que essa ação tinha. Flannery comenta:2
Naquela altura o plano Wodehouse estava evidente. Foi, da guerra, uma das melhores façanhas de publicidade nazista, a primeira com uma perspectiva humana [...]. Plack (assistente de Goebbels) foi ao campo próximo a Gleiwits para ver Wodehouse, percebeu que o autor era completamente desprovido de discernimento político e teve uma ideia. Ele sugeriu a Wodehouse que, em troca da soltura do campo de prisioneiros, ele escrevesse uma série de episódios de rádio sobre suas experiências; não haveria qualquer censura e ele poderia colocá-los no ar por conta própria. Ao fazer essa proposta, Plack mostrou que conhecia seu homem. Ele sabia que Wodehouse caçoava dos ingleses em todas as suas narrativas e que raramente escrevia de outra maneira, que ele ainda vivia no período sobre o qual escrevera e não tinha qualquer ideia do que era o nazismo e tudo o que isso significava. Wodehouse era seu Bertie Wooster.3
A existência de um acordo real entre Wodehouse e Plack parece ser mera interpretação de Flannery. O arranjo pode ter sido de um tipo muito menos definido, e a julgar pelas próprias transmissões, a principal intenção de Wodehouse ao fazê-las era manter contato com seu público e — a paixão que domina o comediante — arrancar risadas. Elas obviamente não são declarações de um colaboracionista do tipo de Ezra Pound ou John Amery, e nem, provavelmente, de uma pessoa capaz de entender a natureza do colaboracionismo. Flannery parece ter advertido Wodehouse de que seria insensato fazer tais transmissões, embora de maneira não muito assertiva. Ele acrescenta que Wodehouse (por mais que este, em uma transmissão, refira-se a si mesmo como inglês) parecia se considerar um cidadão americano. Wodehouse havia contemplado a naturalização, mas jamais preenchera os papéis necessários. Ele até chegou a usar, dirigindo-se a Flannery, a frase “Nós não estamos em guerra com a Alemanha”.
Tenho em minha frente uma bibliografia dos trabalhos de P. G. Wodehouse. Ela nomeia aproximadamente cinquenta livros, mas certamente está incompleta. É bom também ser honesto e começar por admitir que há vários livros de Wodehouse — talvez um quarto ou um terço do total — que não li. De fato, não é fácil ler toda a produção de um escritor popular normalmente publicado em edições baratas. Mas tenho seguido seus trabalhos com bastante proximidade desde 1911, quando eu tinha oito anos, e estou bem familiarizado com sua atmosfera mental peculiar — uma atmosfera que, claro, não permaneceu completamente inalterada, mas mostra pouca alteração desde aproximadamente 1925. Acima, na passagem que citei do livro de Flannery, há dois comentários que chamariam imediatamente a atenção de qualquer leitor atento de Wodehouse. Um é a afirmação de que Wodehouse “ainda vivia no período sobre o qual escrevera” e o outro é o fato de o ministro da propaganda nazista ter feito uso de Wodehouse porque ele “caçoava dos ingleses”. A segunda afirmação é baseada em um equívoco ao qual voltarei em breve. Porém, o outro comentário de Flannery é totalmente verdadeiro e contém parte das pistas que explicam o comportamento de Wodehouse.
Algo que as pessoas frequentemente esquecem sobre os romances de P. G. Wodehouse é há quanto tempo os mais conhecidos foram escritos. Nós o encaramos como alguém que de alguma forma tipifica a tolice dos anos 1920 e 1930, mas o fato é que todas as cenas e personagens pelos quais ele é mais lembrado surgiram antes de 1925. Psmith surgiu em 1909, tendo sido prenunciado por outros personagens em romances sobre a vida escolar.4 O Castelo Blandings, com Baxter e o Conde de Emsworth lá residentes, foi introduzido em 1915. A saga Jeeves-Wooster começou em 1919, tanto Jeeves quanto Wooster tendo feito rápidas aparições antes. Ukridge foi apresentado em 1924. Quando se olha a lista de 1902 em diante, pode-se observar três períodos muito bem marcados. O primeiro é o período de romances para estudantes. Ele inclui livros como O Bastão de Ouro, Os Caçadores de Troféus, etc. e tem seu ponto alto em Mike (1909). Psmith na Cidade, publicado no ano seguinte, pertence a esta categoria, embora não lide diretamente com a vida escolar. O próximo é o período americano. Wodehouse parece ter vivido nos Estados Unidos a partir de mais ou menos 1913 até 1920, e por um tempo mostrou sinais de americanização no idioma e nos pontos de vista. Alguns dos contos em O Homem com Dois Pés Esquerdos (1917) parecem ter sido influenciados por O. Henry, e outros livros escritos por essa época contém americanismos (e.g. highball em vez de whisky and soda) que um inglês normalmente não diria por conta própria. Entretanto, quase todos os livros desse período — Psmith, Jornalista; A Pequena Pepita; As Indiscrições de Archie; Piccadilly Jim e vários outros — dependem, para surtir efeito, do contraste entre os costumes ingleses e os americanos. Os personagens ingleses surgem em contextos americanos ou vice-versa: há algumas histórias puramente inglesas, mas pouquíssimas que sejam puramente americanas. O terceiro período poderia apropriadamente ser chamado de o período da casa de campo. Por volta do começo dos anos 1920, Wodehouse devia estar tendo uma renda muito alta, e assim o status social dos personagens aumentou na mesma medida, embora os contos sobre Ukridge formem uma exceção parcial. O cenário típico agora é uma mansão interiorana, um apartamento de solteiro luxuoso ou um clube caro de golfe. O atleticismo do garoto de escola desaparece, o críquete e o futebol dão lugar ao golfe e os elementos farsesco e burlesco ficam mais marcados. Não há dúvida de que muitos dos livros posteriores, como Relâmpago de Verão, são comédias leves e não pura farsa, mas os esforços ocasionais de seriedade moral que podem ser encontrados em Psmith, Jornalista; A Pequena Pepita; A Chegada de Bill; O Homem com Dois Pés Esquerdos e outros romances sobre a vida escolar não aparecem mais. Mike Jackson se transformou em Bertie Wooster. Esta não é, entretanto, uma metamorfose muito surpreendente, e um dos aspectos mais perceptíveis a respeito de Wodehouse é a sua falta de desenvolvimento. Livros como O Bastão de Ouro e Histórias de St. Austin’s, escritos nos anos que abriram este século, já têm a atmosfera habitual. O quão formulaica havia se tornado a escrita dos seus últimos livros é algo que pode ser percebido pelo fato de que Wodehouse continuou a escrever livros sobre a vida inglesa por mais que, ao longo dos dezesseis anos anteriores ao seu internamento, ele tenha vivido em Hollywood e Le Touquet.
Mike, um livro agora difícil de conseguir em versão integral, deve ser uma das melhores narrativas “leves” em inglês sobre a vida escolar. Mas embora seus episódios sejam bastante farsescos, ele não é de modo algum uma sátira do sistema de escolas públicas,5 e O Bastão de Ouro, Os Caçadores de Troféus, etc. o são ainda menos. Wodehouse foi educado em Dulwich, tendo então trabalhado em um b anco e se habilitado em escrita de romances por meio da prática de um jornalismo muito barato.6 É evidente que, por vários anos, ele permaneceu “fixado” à sua antiga escola e desprezava o trabalho nada charmoso e a vizinhança de classe média baixa em que se encontrava. Nas primeiras narrativas, o “glamour” da vida nas escolas públicas (competições entre casas, calouros como serviçais de alunos mais velhos, chás em volta da lareira, etc.) é apresentado de forma bem exagerada, e o código de conduta “jogue o jogo” é aceito sem muitas reservas. Wrykyn, a escola pública imaginária de Wodehouse, é uma escola de um tipo mais na moda do que Dulwich, e tem-se a impressão de que, entre O Bastão de Ouro (1904) e Mike (1909), Wrykyn ficou mais cara e se afastou ainda mais de Londres. Psicologicamente, o livro mais revelador do período inicial de Wodehouse é Psmith na Cidade. O pai de Mike Jackson repentinamente perde seu dinheiro e Mike, tal como o próprio Wodehouse, é empurrado mais ou menos aos dezoito anos para um trabalho subalterno e mal remunerado em um banco. Psmith tem um emprego similar, embora não por necessidade financeira. Tanto este livro quanto Psmith, Jornalista (1915) são incomuns no sentido de exibirem algum grau de consciência política. Psmith nesta altura escolhe se chamar de socialista — em sua mente, e sem dúvidas na de Wodehouse, isso significa não mais do que ignorar distinções de classe — e em uma ocasião os dois garotos comparecem a uma reunião ao ar livre em Clapham Common e vão embora para beber chá com um velho orador socialista cuja casa ao mesmo tempo nobre e maltrapilha é descrita com alguma precisão. Mas a característica mais marcante do livro é a falta de habilidade de Mike para se desabituar da atmosfera da escola. Ele começa em seu novo emprego sem fingir qualquer entusiasmo e seu principal desejo não é, como poderíamos esperar, encontrar um emprego mais interessante e útil, mas simplesmente jogar críquete. Quando precisa encontrar uma acomodação, escolhe ficar em Dulwich, pois lá estará perto de uma escola, podendo assim escutar o som aprazível da bola a chocar-se contra o bastão. O clímax do livro surge quando Mike ganha a chance de disputar um jogo do condado e simplesmente abandona o trabalho para jogar. O ponto é que Wodehouse aqui simpatiza com Mike: de fato, Wodehouse se identifica com ele, pois é bem claro que Mike tem com Wodehouse a mesma relação que Julien Sorel tem com Stendhal. Mas ele criou vários outros heróis essencialmente similares. Ao longo dos livros deste período e do seguinte, há toda uma série de homens jovens para os quais praticar jogos e “manter a forma” são suficientes como a ocupação central da vida. Wodehouse é quase incapaz de imaginar um trabalho desejável. O grande negócio é ter dinheiro próprio ou, em caso de fracasso, encontrar uma sinecura. O herói de Algo Novo (1915) escapa do jornalismo barato ao se tornar instrutor de treinos físicos de um milionário dispéptico: isso é considerado um avanço tanto moral quanto financeiro.
Nos livros do terceiro período não há qualquer narcisismo e nem quaisquer interlúdios sérios, mas o pano de fundo moral e social implícito muda, aqui, bem menos do que poderia parecer à primeira vista. Caso se compare Bertie Wooster com Mike, ou mesmo com os monitores7 fortões das primeiras narrativas escolares, percebe-se que a única diferença real entre eles é que Bertie é mais rico e mais preguiçoso. Seus ideais seriam quase idênticos aos deles, mas ele não vive de acordo com esses ideais. Archie Moffam, em As Indiscrições de Archie (1921), é um tipo intermediário entre Bertie e os heróis anteriores: ele é um grosseirão, mas também é honesto, bondoso, atlético e corajoso. Do começo ao fim, Wodehouse simplesmente aceita o código de comportamento das escolas públicas, com a diferença de que em seu período posterior, mais sofisticado, ele prefere mostrar seus personagens violando esses códigos ou vivendo de acordo com eles contra a vontade :
“Bertie! Você não decepcionaria um parceiro, né?”
“Sim, eu decepcionaria.”
“Mas estivemos juntos na escola, Bertie.”
“Não me importo.”
“A velha escola, Bertie, a velha escola!”
“Tudo bem, tudo bem — droga!”
Bertie, um Dom Quixote preguiçoso, não tem qualquer vontade de atacar moinhos de vento, mas não passaria por sua cabeça se recusar a fazê-lo quando é a honra que chama. A maior parte das pessoas que Wodehouse tenta retratar como personagens simpáticas são parasitas, algumas delas perfeitas imbecis, mas pouquíssimas poderiam ser descritas como imorais. Mesmo Ukridge é um visionário e não um simples vigarista. O mais imoral, ou melhor, amoral, dos personagens de Wodehouse é Jeeves, que funciona como um contraste com a relativa altivez de Bertie Wooster e talvez simbolize a crença difundida na Inglaterra de que inteligência e falta de escrúpulos são basicamente a mesma coisa. A proximidade que Wodehouse mantém da moralidade convencional pode ser percebida a partir do fato de que, em nenhum momento de seus livros, há qualquer coisa que poderia ser descrita como uma piada sexual. Isso é um esforço enorme para um escritor farsesco. Não apenas não existem piadas sujas, como raramente há qualquer situação comprometedora: o tema “chifres-na-testa” é quase completamente evitado. A maioria dos livros em versão integral, obviamente, contém um “interesse romântico”, mas sempre ao nível da comédia leve: a relação amorosa, com suas complicações e cenas idílicas, continua indefinidamente, mas, como diz a expressão, “nada acontece”. É sugestivo que Wodehouse, por natureza um escritor de farsas, tenha sido capaz de colaborar mais de uma vez com Ian Hay, um escritor sério-cômico e um expoente (vide Pip, etc.) da tradição “homem de bem inglês” no que ela tem de mais tola.
Em Algo Novo, Wodehouse descobrira as possibilidades cômicas da aristocracia inglesa, seguindo daí uma sucessão de barões, condes e equivalentes ridículos, mas que, salvo em pouquíssimos exemplos, não eram nobres realmente desprezíveis. Isso teve o efeito um tanto curioso de fazer com que Wodehouse fosse considerado, fora da Inglaterra, um satirista penetrante da sociedade Inglesa. Por isso o comentário de Flannery de que Wodehouse “caçoava dos ingleses”, que é a impressão que ele provavelmente causaria em um leitor alemão ou mesmo em um americano. Algum tempo após as transmissões de Berlim, eu as discutia com um nacionalista indiano que defendia Wodehouse calorosamente. Ele simplesmente aceitava que Wodehouse tinha passado para o lado inimigo, o que, de seu ponto de vista, era a coisa certa a ser feita. Mas o que me interessou foi descobrir que ele considerava Wodehouse um escritor antibritânico que fizera o útil trabalho de exibir a aristocracia britânica em suas verdadeiras cores. Esse é um erro que seria muito difícil para um britânico cometer, e é um bom exemplo do modo como livros, especialmente livros bem-humorados, perdem suas nuances mais refinadas quando alcançam uma audiência estrangeira. Pois é suficientemente claro que Wodehouse não é antibritânico e nem hostil à classe alta. Pelo contrário, um inofensivo esnobismo antiquado é perceptível em todo o seu trabalho. Tal como um católico inteligente é capaz de ver que as blasfêmias de Baudelaire ou James Joyce não são seriamente prejudiciais à fé católica, um leitor inglês pode perceber que, ao criar personagens como Hildebrand Spencer Poyns de Burgh John Haneyside Coombe-Crombie, 12º Conde de Dreever, Wodehouse não ataca realmente a hierarquia social. De fato, ninguém que genuinamente desprezasse títulos escreveria tanto sobre eles. A atitude de Wodehouse perante o sistema social inglês é idêntica à sua atitude perante o código moral das escolas públicas — uma leve gozação que mascara uma aceitação acrítica. O Conde de Emsworth é divertido porque um conde deveria ter mais dignidade, e a irremediável dependência que Bertie Wooster tem de Jeeves é divertida em parte porque o empregado não deveria ser superior ao patrão. Um leitor americano pode confundir esses dois casos e outros similares com caricaturas hostis, dado que ele já é inclinado a ser anglofóbico e eles correspondem às suas ideias preconcebidas a respeito de uma aristocracia decadente. Bertie Wooster, com suas polainas e sua bengala, é uma caricatura do inglês tradicional. Mas, como qualquer leitor inglês perceberia, Wodehouse quer que ele seja uma figura simpática, e o pecado real de Wodehouse tem sido o de retratar as classes altas inglesas como pessoas muito melhores do que elas são. Ao longo de seus livros, certos problemas são consistentemente evitados. Quase sem exceções, seus rapazes jovens e endinheirados são modestos, misturam-se facilmente aos outros e não são mesquinhos: seu tom é estabelecido por Psmith, que exteriormente retém seu pertencimento à classe alta, mas estabelece uma ponte sobre o fosso social ao se referir a todos como “camarada”.
Mas há outro ponto importante sobre Bertie Wooster: o fato de estar fora de época. Concebido por volta de 1917, Bertie na verdade pertence a uma época anterior. É o tipo urbano bem de vida e ocioso do período pré–1914, celebrado em canções como “Gilbert the Filbert” ou “Reckless Reggie of the Regent’s Palace”. O estilo de v ida sobre o qual Wodehouse prefere escrever — a vida do homem que frequenta vários clubes e navega de forma desenvolta em espaços de grife, do jovem elegante que passa o tempo em Piccadilly com uma bengala sob o braço e um cravo na lapela — mal sobreviveu aos anos 1920. É sugestivo que Wodehouse pudesse publicar em 1936 um livro chamado Jovens em Polainas, pois quem estava usando polainas nessa altura? Elas já haviam saído de moda há uns bons dez anos. Mas o tradicional tipo urbano bem de vida e ocioso, o “Johnny Piccadilly”, tem de vestir polainas, tal como o chinês das pantomimas tem de usar uma trança tradicional. Um escritor de humor não é obrigado a manter-se atualizado, e, ao acertar em um ou dois bons filões, Wodehouse continuou a explorá-los com uma regularidade que, sem dúvidas, foi muito facilitada pelo fato de ele não ter colocado os pés na Inglaterra durante os dezesseis anos que precederam seu internamento. Sua perspectiva da sociedade inglesa já se formara antes de 1914, e ela era ingênua, tradicional e, nos fundamentos, uma perspectiva de admiração. Ele também jamais se tornou genuinamente americanizado. Como assinalei, americanismos espontâneos ocorrem nos livros do período intermediário, mas Wodehouse permaneceu inglês o suficiente para achar a gíria americana uma novidade divertida e ligeiramente chocante. Ele adora jogar uma gíria ou um fato grosseiro em meio ao inglês da rua Wardour8 (“Com um gemido oco, Ukridge tomou de mim cinco xelins emprestados e saiu para a noite”), e expressões como “legal à beça” ou “bata na cuca dele” se prestam a esse propósito. Mas o truque fora desenvolvido antes de ele ter feito quaisquer contatos americanos, e o uso que ele faz de citações contendo misturas é um recurso comum, que remonta a Fielding, dos escritores ingleses. Como Mr. John Hayward assinalou,9 Wodehouse deve muito a seu conhecimento da literatura inglesa e especialmente de Shakespeare. Seus livros são direcionados, obviamente, não a uma audiência do tipo acadêmica, mas a uma audiência educada segundo linhas tradicionais. Quando, por exemplo, ele descreve alguém emitindo “o tipo de suspiro que Prometeu pode ter emitido ao ver o abutre aparecer para a refeição”, ele assume que seus leitores saberão alguma coisa de mitologia grega. Quando jovem, os escritores que ele admirava eram provavelmente Barry Pain, Jerome K. Jerome, W. W. Jacobs, Kipling e F. Anstey, e ele permaneceu mais próximo deles do que de ágeis quadrinistas americanos como Ring Lardner ou Damon Runyan. Em sua entrevista no rádio com Flannery, Wodehouse especulou se “o tipo de gente e o tipo de Inglaterra sobre os quais escrevo terão vida após a guerra”, sem perceber que essas coisas já eram fantasmas. “Ele ainda vivia no período sobre o qual escrevera”, diz Flannery, provavelmente querendo se referir aos anos 1920. Mas, na verdade, o período era na verdade a era eduardiana, e Bertie Wooster, caso tenha existido, foi morto por volta de 1915.
Se minha análise da mentalidade de Wodehouse for aceita, a ideia de que em 1941 ele contribuiu conscientemente com a propaganda nazista se torna indefensável e até ridícula. Ele pode ter sido induzido a transmitir via rádio pela promessa de ser solto mais cedo (sua soltura estava programada para uns meses depois, por volta de seu sexagésimo aniversário), mas ele não pode ter percebido que o que fez seria prejudicial aos interesses britânicos. Como tentei mostrar, seu panorama moral permaneceu o de um garoto de escola pública e, de acordo com o código de conduta da escola pública, a traição em tempos de guerra é o mais imperdoável dos pecados. Mas como pode Wodehouse não ter percebido que sua atitude seria um grande êxito de propaganda para os alemães e jogaria sobre si uma torrente de reprovação como consequência? Para responder, é preciso ter duas coisas em consideração. Em primeiro lugar, a completa falta — tanto quanto se pode julgar a partir de seus trabalhos publicados — de discernimento político. É absurdo falar em “tendências fascistas” em seus livros. Neles não há, em absoluto, quaisquer tendências pós–1918. Há em todo o seu trabalho uma certa percepção desconfortável a respeito das distinções de classe, e, de maneira esparsa ao longo do tempo, referências ignorantes, mas não totalmente antipáticas, ao socialismo. Em O Coração de um Pateta (1926), há um conto um tanto bobo sobre um romancista russo cuja inspiração parece ter sido a luta entre facções que ocorria na URSS na época. Mas as referências ao sistema soviético são inteiramente superficiais e, considerando a data, não são marcadamente hostis. No que podemos descobrir a partir de seus escritos, esta é praticamente toda a extensão de sua consciência política. Tanto quanto sei, em momento nenhum ele chega a usar as palavras “nazismo” ou “fascismo”. Em círculos de esquerda, e de fato em círculos “instruídos” de qualquer natureza, transmitir na rádio nazista e ter qualquer acordo com nazistas são coisas que pareceriam igualmente chocantes se feitas tanto antes da guerra quanto durante a guerra. Mas esse é um hábito mental desenvolvido durante quase uma década de luta ideológica contra o fascismo. O grosso da população britânica, é preciso lembrar, permaneceu anestesiado a respeito dessa luta até quando já estávamos bem avançados no ano de 1940. Abissínia, Espanha, China, Áustria, Checoslováquia — a longa série de crimes e agressões simplesmente passou despercebida ou foi vagamente encarada como querelas entre estrangeiros e algo que “não é da nossa conta”. Pode-se medir a ignorância geral pelo fato de que o inglês médio pensava no “fascismo” como uma coisa exclusivamente italiana e ficava perplexo quando a mesma palavra era aplicada à Alemanha. E nada há nos escritos de Wodehouse sugerindo que ele era mais bem informado ou mais interessado em política do que a média de seus leitores.
A outra coisa que deve ser lembrada é que Wodehouse calhou de ter sido feito prisioneiro bem no momento em que a guerra atingiu sua fase mais terrível. Nós nos esquecemos agora, mas até aquela época os sentimentos a respeito da guerra haviam sido perceptivelmente mornos. As lutas eram escassas, o governo Chamberlain era impopular, comentaristas importantes como Lloyd George e Bernard Shaw insinuavam que deveríamos fazer um acordo de paz tão rápido quanto possível, alas sindicais e alas do Partido Trabalhista estavam emitindo resoluções antiguerra em todo o país. Mais tarde, obviamente, as coisas mudaram. O exército foi retirado com dificuldade de Dunkirk, a França caiu, a Grã-Bretanha ficou sozinha, as bombas choveram sobre Londres, Goebbels anunciou que a Grã-Bretanha deveria ser “reduzida à degradação e à pobreza”. Em meados de 1941, o povo Britânico se deu conta do que enfrentava e os sentimentos contra o inimigo ficaram bem mais ferozes do que antes. Só que Wodehouse havia passado o ano no qual tudo isso ocorreu no internamento e seus captores parecem tê-lo tratado razoavelmente bem. Ele perdera o ponto de virada da guerra e em 1941 ainda reagia em termos de 1939. Ele não estava sozinho nisso. Em várias ocasiões nessa época, os alemães trouxeram ao microfone soldados britânicos capturados e alguns deles fizeram comentários tão inapropriados quanto os de Wodehouse. Eles, no entanto, não atraíram qualquer atenção. E mesmo um completo colaboracionista como John Amery iria depois despertar muito menos indignação do que Wodehouse despertara.
Mas por quê? Por que alguns comentários um tanto tolos mas inofensivos de um romancista idoso provocaram tal consternação? Deve-se procurar pela provável resposta em meio às condições perversas da propaganda de guerra.
Há um aspecto a respeito das transmissões de Wodehouse que, com quase toda a certeza, é importante — a data. Wodehouse foi solto dois ou três dias antes da invasão da URSS, e naquela altura as fileiras mais importantes do Partido Nazista deviam ter conhecimento de que a invasão era iminente. Manter os Estados Unidos fora da guerra por tanto tempo quanto fosse possível era uma necessidade vital e, de fato, por volta dessa época, a atitude alemã com os Estados Unidos ficou mesmo mais conciliatória do que fora antes. Os alemães certamente não tinham a esperança de vencer a Rússia, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos combinados, mas caso pudessem liquidar a Rússia rapidamente — o que eles presumivelmente esperavam fazer — os Estados Unidos poderiam jamais intervir. A soltura de Wodehouse foi apenas uma jogada menor, mas não foi uma má oferta aos isolacionistas americanos. Ele era bem conhecido nos Estados Unidos e — ou assim os alemães calculavam — era popular entre o público anglofóbico como um caricaturista que caçoava do idiota inglês de classe alta com suas polainas e seu monóculo. Com o microfone, podia-se contar com Wodehouse para causar, de uma maneira ou outra, dano ao prestígio britânico, ao mesmo tempo em que sua soltura demonstraria que os alemães eram boa gente e que sabiam tratar os inimigos com cavalheirismo. Tal era, presumivelmente, o cálculo, embora o fato de Wodehouse ter transmitido apenas por uma semana sugere que ele não tenha correspondido às expectativas.
Porém, do lado britânico, cálculos similares embora opostos estavam sendo feitos. Nos dois anos que se seguiram a Dunkirk, o moral britânico dependeu bastante do sentimento de que essa não era apenas uma guerra pela democracia, mas uma guerra que as pessoas comuns tinham de vencer por meio dos próprios esforços. As classes altas estavam desacreditadas em virtude de sua política de apaziguamento e pelos desastres de 1940. Além disso, um processo de nivelamento social parecia estar ocorrendo. Na mentalidade popular, patriotismo e sentimentos esquerdistas estavam associados, e vários jornalistas capazes trabalhavam para fortalecer ainda mais a associação. As transmissões de Priestley em 1940 e os artigos de “Cassandra” no Daily Mirror eram bons exemplos da propaganda demagógica que florescia naquele tempo. Nessa atmosfera, Wodehouse serviu como um bode expiatório porque o sentimento geral era o de que os ricos eram traiçoeiros e Wodehouse — tal como “Cassandra” assinalou vigorosamente em sua transmissão — era um homem rico. Mas ele era o tipo de homem rico que podia ser atacado com impunidade, sem que se corresse o risco de danificar a estrutura da sociedade. Denunciar Wodehouse não era como denunciar, digamos, Beaverbrook. Um mero romancista, independentemente de quão grandes sejam seus rendimentos, não pertence à classe proprietária. Por mais que seus rendimentos atinjam £50,000 por ano, tem apenas a aparência externa de um milionário. É um outsider de sorte que, por um acaso feliz, chegou à fortuna — em geral, uma fortuna muito passageira —, tal como o apostador que ganha no Derby de Calcutá. Consequentemente, a indiscrição de Wodehouse proporcionou um bom prelúdio para uma peça de propaganda. Foi a chance de “expor” um parasita rico sem chamar a atenção para qualquer um dos parasitas que realmente importavam.
Nas circunstâncias desesperadoras da época, era desculpável ficar com raiva pelo que Wodehouse fizera, mas continuar o denunciando três ou quatro anos depois — e mais, permitir que permanecesse a impressão de que ele agira com deslealdade consciente — não é desculpável. Poucas coisas nesta guerra foram mais repugnantes moralmente do que a caça por traidores e colaboracionistas. Na melhor das hipóteses, é a punição dos culpados pelos culpados. Na França, todos os tipos de pequenos traidores — policiais, jornalistas mercenários, mulheres que dormiram com soldados alemães — são caçados enquanto, quase sem exceção, os grandes escapam. Na Inglaterra, as tiradas mais ferozes contra os colaboracionistas são produzidas por conservadores que, em 1938, praticavam o apaziguamento e por comunistas que defendiam o mesmo em 1940. Esforcei-me para mostrar como o desventurado Wodehouse — só porque o sucesso e a expatriação permitiram que ele permanecesse mentalmente na era eduardiana — tornou-se cobaia em um experimento de propaganda e sugeri que este é o momento de considerar o incidente como resolvido. Se Ezra Pound for capturado e fuzilado pelas autoridades americanas, o efeito será o de estabelecer sua reputação como poeta por centenas de anos; e mesmo no caso de Wodehouse, se, por pressão nossa, ele for embora para os Estados Unidos e renunciar à cidadania britânica, ficaremos, no fim, horrivelmente envergonhados de nós mesmos. Enquanto isso, se realmente quisermos punir as pessoas que enfraqueceram a moral nacional em momentos críticos, há outros culpados mais próximos de casa e cuja busca vale mais a pena.