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Crítica
23 de Março de 2010   Filosofia

Do que se insinua, temos de falar

Bertrand Russell
Tradução de Desidério Murcho
Words and Things
de Ernest Gellner
Londres: Routledge, 2005, 384 pp.
Edição original: 1959, ed. rev. 1979

O livro do Sr. Gellner, Words and Things, merece a gratidão de todos aqueles que não podem aceitar a filosofia linguística agora em voga em Oxford. É difícil adivinhar que efeito imediato será provável que o livro tenha; o poder da moda é grande, e nem os argumentos mais cogentes terão poder persuasivo se não se alinharem com a onda da opinião corrente. Mas, seja qual for a primeira reacção aos argumentos do Sr. Gellner, parece-me muito provável — a mim, pelo menos — que lhe será gradualmente concedido o peso que merece.

A primeira parte do livro consiste numa análise cuidadosa dos argumentos em que se baseiam os filósofos linguísticos. Estabelece o que denomina “Os Quatro Pilares” da teoria da linguagem que forma a base da filosofia em questão. Ao primeiro destes pilares dá a designação de “argumento com base no Caso Paradigmático”. Este consiste em raciocinar partindo do uso efectivo das palavras para concluir respostas aos problemas filosóficos, ou partindo de um conflito nos usos efectivos para concluir que uma dada teoria filosófica é falsa. O Sr. Gellner cita como exemplo deste argumento o que pelo menos alguns dos filósofos linguísticos consideram que é a solução do problema do livre-arbítrio. Quando um homem casa sem compulsão externa, podemos dizer “Casou por seu livre-arbítrio”. Há, consequentemente, um uso linguisticamente correcto das palavras “livre-arbítrio”, e portanto há livre-arbítrio. Ninguém pode negar que isto é uma maneira fácil de resolver problemas seculares. O segundo dos quatro pilares consiste em inferir valores do uso efectivo das palavras. O terceiro, denominado “Teoria Contrastante do significado”, sustenta que um termo só tem significado se há algo que não abrange. O quarto, denominado “Polimorfismo”, sustenta que, dado as palavras terem muitos significados, é impossível fazer afirmações gerais sobre os usos das palavras. Todos estes quatro pilares pressupõem que o discurso comum é sacrossanto, e que é ímpio supor que poderia ser melhorado. Não se considera necessário estabelecer este dogma fundamental.

Ainda que a primeira porção do livro do Sr. Gellner seja admirável e muito necessário para sustentar as suas alegações gerais, considero os capítulos seguintes ainda mais interessantes. Nesses capítulos, examina a motivação dos defensores da nova filosofia e os efeitos que é provável que tenham se continuar dominante. O que tem a dizer nestes capítulos será, receio bem, mal recebido, apesar de, na minha opinião, injustamente. A filosofia linguística, afirma, “tem uma visão invertida que trata o pensamento genuíno como uma doença e o pensamento morto como um paradigma da saúde”. Exclui quase tudo o que é de interesse genuíno, e prescreve ou um misticismo inefável ou uma exegese entediante das subtilezas do uso. É atraente porque renunciou à ciência e ao poder, e porque é adequado para “senhores” numa sociedade que se tornou democrática. Referindo a teoria de Veblen do desperdício conspícuo, acusa-a de “trivialidade conspícua”. Sustenta, afirma, que o melhor tipo de pensamento é pedante e entediante, e que se deve renunciar às ideias por serem em geral produtos de falta de cuidado e de confusão. Esta crítica é resumida num epigrama: “Um clérigo que perde a fé abandona o sacerdócio, um filósofo que perde a sua redefine a disciplina”.

Por detrás de toda a argumentação minuciosa dos filósofos linguísticos, há um tipo curioso de misticismo árido. No Tractatus de Wittgenstein, o misticismo ainda tinha uma certa substancialidade, mas com o tempo tornou-se cada vez mais baço e poeirento. Contudo, é ainda um ingrediente essencial. Wittgenstein sustentava que há coisas de que não se pode falar. Esta perspectiva, que é uma parte essencial de todo o misticismo, é parodiada e rejeitada pelo Sr. Gellner na última frase do livro: “Do que se insinua, temos de falar”.

Pela minha parte, encontro-me em íntima concordância com as doutrinas que o Sr. Gellner apresenta neste livro. O perfil que subjaz à filosofia linguística tem sido recorrente, com alguns intervalos, ao longo da história da filosofia e da teologia. A sua forma mais lógica e completa foi defendida pelos que adoptaram a heresia abecedária. Estes heréticos sustentavam que todo o conhecimento humano é perverso e, dado basear-se no alfabeto, é um erro aprender até mesmo o ABC. Carlstadt, originalmente um aliado de Lutero, depois de adoptar esta heresia, “abandonou todo o estudo da Sagrada Escritura e procurou a verdade divina nas bocas daqueles que qualquer pessoa comum consideraria os mais ignorantes da humanidade” (Dictionary of Sects, Heresies, Ecclesiastical Parties and Schools of Religious Thought, org. Rev. John Henry Blunt, D.D.). Numa forma menos radical, algumas doutrinas similares não têm sido incomuns. O dictum de Pascal, “o coração tem razões que a razão desconhece”, conduz facilmente a estas perspectivas. O mesmo acontece com a adulação de Rousseau do “Bom Selvagem”. A admiração dos camponeses, por parte de Tolstoi, e a sua preferência pela Cabana do Pai Tomás em desfavor de literatura mais sofisticada, pertencem ao mesmo modo de sentir. Os Abecedários de Oxford não rejeitam todo o conhecimento humano, mas apenas o que não for necessário para ter nota máxima nos exames dessa universidade — i.e., tudo o que foi descoberto desde o tempo do Erasmo. Este é, certamente, um limite arbitrário. Não vejo por que não condenar tudo o que foi descoberto desde o tempo de Homero ou de Adão e Eva. Só por meio de uma iluminação mística se revela que a ciência é desnecessária para um filósofo, e seria de supor que a sagaz intelecção assim obtida poderia muito bem ser mais abrangente.

Quando era rapaz, tive um relógio de pêndulo que podia ser transportado. Descobri que o relógio trabalhava muito mais depressa sem o pêndulo. Se o propósito principal de um relógio é trabalhar, o relógio tinha tudo a ganhar em ficar sem pêndulo. É verdade que assim já não podia dar horas, mas isso não importava desde que aprendêssemos a ser indiferentes à passagem do tempo. A filosofia linguística, que só se preocupa com a linguagem, e não com o mundo, é como o rapaz que preferiu o relógio sem o pêndulo porque, apesar de já não dizer as horas, trabalhava melhor do que antes e a um ritmo mais estimulante.

Bertrand Russell

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ISSN 1749-8457