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Crítica
22 de Dezembro de 2011   Filosofia da mente

Mente e materialismo

Bruno Angeli Faez
Psicologia e Neurociência: Uma Avaliação da Perspectiva Materialista no Estudo dos Fenômenos Mentais
de Saulo de Freitas Araújo
Juiz de Fora: UFJF, 2011, 94 pp., 2.a ed.

Os avanços em neurociência e ciência cognitiva das últimas décadas sugeriam inicialmente que em breve resolveríamos (ou dissolveríamos) completamente o antigo problema filosófico das relações entre corpo e mente. No entanto, a “década do cérebro” (1990–1999) encerrou-se sem satisfazer as promessas e as esperanças mais básicas que a animavam. Em particular, um dos pressupostos de boa parte dos programas de pesquisa nessas disciplinas, a saber, que o vocabulário mental da folk psychology seria desnecessário para uma explicação científica adequada dos fenômenos mentais, jamais chegou a ser demonstrado. O foco central do livro de Araújo é a análise crítica das propostas materialistas reducionistas, em especial o eliminativismo materialista de Patricia e Paul Churchland. A seguir resumimos as idéias principais de cada parte do livro e fazemos um breve comentário ao final.

O livro contém cinco capítulos, além de introdução, conclusão e um posfácio acrescentado à segunda edição. O capítulo 1, “Folk psychology e psicologia científica”, argumenta que a ciência cognitiva comete um equívoco ao pretender substituir o vocabulário da folk psychology por uma linguagem estritamente científica para descrever os fenômenos mentais. Discussões ontológicas são técnicas e não têm como ser expressas na terminologia da folk psychology, e assim as eliminações ou depurações que os cientistas pretendem realizar são alternativas não à psicológica popular propriamente dita, mas de alguma reconstrução teórica da psicologia popular. Esta é adequada para a vida cotidiana, e não contém propriamente uma teoria da mente ou uma ontologia. Por exemplo, não pertence à psicologia popular a tese de que os seres humanos são seres intencionais, nem tampouco teses ontológicas como o materialismo ou o dualismo. Ao reconstruir a psicologia popular como já contendo esse tipo de tese, comete-se o que o autor denomina de “equívoco ontológico”.

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O capítulo 2, “Teoria da identidade: a busca de uma ontologia materialista”, expõe a primeira tentativa sistemática de formular uma ontologia materialista para os conceitos psicológicos, a teoria da identidade, no final da década de 1950. No período imediatamente anterior a esse, as discussões ontológicas haviam sido quase totalmente suspendidas em filosofia da mente, e em troca passou-se a favorecer a análise da linguagem dos termos psicológicos. Com U. T. Place, os temas ontológicos voltam, e começa-se a falar de processos internos, definidos como processos cerebrais. Enunciados lingüísticos sobre os domínios mental e cerebral são considerados independentes uns dos outros, posto que são intensionalmente diferentes. Contundo, ontologicamente, são considerados idênticos porque seriam apenas processos cerebrais. A teoria da identidade foi posteriormente avançada por Smart e Armstrong. A pretensão dos teóricos da identidade foi a de encontrar uma taxonomia neurocientífica estritamente correspondente à do senso comum.

O capítulo 3, “Primeiras formulações do materialismo eliminativo”, apresenta as concepções de Rorty e Feyerabend. Segundo este último, a terminologia corrente dos fenômenos mentais é um acidente histórico, não havendo qualquer compatibilidade entre ela e uma linguagem teórica que venha a ser desenvolvida para substituí-la. Em vez de tentar reduzir um vocabulário a outro, o que seria impossível, Feyerabend argumenta que se deveria apenas tentar eliminar o vocabulário mental, ficando-se apenas com o vocabulário puramente fisiológico. O termo “materialismo eliminativo” introduzido por Rorty, refere-se às doutrinas que propõem uma “segunda teoria da identidade”, na qual o vocabulário psicológico arcaico seria futuramente eliminado. A ciência empírica futura, Rorty argumenta, demonstrará a identidade entre estados cerebrais e estados subjetivos, acarretando um novo modo de falar, sem psicologia popular. Rorty recorre à analogia segundo a qual da mesma forma que a ciência descartou os demônios como suposta explicação das “visões” dos feiticeiros por meio do conhecimento biológico, assim também a ciência virá a eliminar as expressões mentalistas da psicologia popular, como “desejo” e “dor”, após compreender totalmente o cérebro. Essa projeção sobre o futuro da ciência, argumenta Araújo, não apenas não se confirmou como carece de apoio empírico: não há indícios empíricos positivos suficientes para sustentar uma teoria sem essas noções.

O capítulo 4, “A radicalização da proposta materialista”, apresenta o programa interdisciplinar eliminativista dos Churchlands, que tem como tese principal a rejeição da folk psychology, caracterizada por eles como uma ontologia falsa e defeituosa, a ser substituída integralmente pela neurociência amadurecida. O realismo científico inerente ao projeto eliminativista afirma que não existem juízos perceptivos sem teorias, e que as disputas ontológicas só podem ser resolvidas satisfatoriamente por meio de teorias empíricas bem-sucedidas. Considerando que a folk psychology contém implicitamente uma ontologia (falsa), o materialismo eliminativo comete o “equívoco ontológico” descrito acima.

O capítulo 5, “Críticas ao eliminativismo dos Churchlands”, é o núcleo argumentativo do livro; elencamos as principais objeções ao eliminativismo:

  1. O eliminativismo “tem levado alguns autores a apresentar uma interpretação de conceitos e generalizações psicológicas como se fossem um retrato preciso da própria folk psychology” (p. 55) ; no caso dos Churchlands, o retrato é o modelo de Fodor. Mas a psicologia popular, o autor argumenta, é muito mais vasta e semanticamente mais rica do que suas reconstruções teóricas sugerem. Essa discrepância impossibilita o empreendimento da redução e eliminação pretendidas pelos materialistas. O que se estaria reduzindo ou eliminando não é a psicologia popular, mas uma reconstrução teórica empobrecida da psicologia popular.
  2. Teorias diferentes, como a neurociência e a psicologia, não precisam ser vistas como incompatíveis, mas podem coevoluir e contribuir frutiferamente uma para a outra.
  3. A proposta reducionista/eliminativista ignora a diferença entre redução nomológica e ontológica. Reduções nomológicas forneceriam nesse caso explicações necessárias para fenômenos empíricos. Por meio dos indícios empíricos disponíveis, podemos apenas afirmar, por exemplo, que “uma sensação é uma função de certos eventos neurais” (p. 57). Mas isso é diferente da afirmação de que as sensações são eventos neurais (redução ontológica).
  4. Há alguns obstáculos metodológicos no programa eliminativista. O primeiro está na adoção de um modelo computacional do cérebro, que pretende mapear integralmente o cérebro. A complexidade neural e suas operações são um grande obstáculo para a criação de software que reproduza na totalidade o funcionamento do cérebro. Além disso, é preciso supor que o conjunto de operações do cérebro se orienta por regras constantes para que esse software possa ser construído. Mas se o cérebro não tem algo como regras constantes, então qualquer modelo computacional será inútil. Restaria a possibilidade modelagens parciais, mas que não sustentariam uma eliminação global. Outro obstáculo está no uso de neuroimagens: as pessoas têm acesso pela introspecção à sua vida mental subjetiva, mas não identificam as neuroimagens dos seus próprios cérebros sem a ajuda de um neurocientista. A descrição dos estados subjetivos, no entanto, permanece presa aos relatos feitos com noções da psicologia popular. No máximo, o que se pode mostrar é a existência de correlações entre estados cerebrais e estados subjetivos, mas isso não basta para uma eliminação.

A conclusão do livro, “O futuro da psicologia como ciência da mente”, descreve a situação atual da filosofia da mente, em que o problema ontológico tradicional das relações entre mente e corpo não foi solucionado. A defesa de posições díspares entre filósofos e cientistas indica que não possuímos uma solução satisfatória dos problemas ligados à descrição do mental. O materialismo eliminativo, em particular, carece de resultados empíricos satisfatórios, pois não há qualquer “esboço de eliminação de um termo da folk psychology em favor de um conceito baseado nas descobertas neurocientíficas” (p. 63); e mesmo que dispuséssemos de tal esboço, este basear-se-ia numa reconstrução da psicologia popular e não nela mesma. Por outras palavras, o projeto eliminativista não passa de uma promessa, a promessa de que o futuro da ciência promoverá uma eliminação que hoje ainda não temos como saber como ocorrerá nem se ocorrerá.

O posfácio, “Lições da história”, amplia o trabalho do livro com referências históricas ao materialismo dos séculos XVIII e XIX. Segundo o autor, ao longo desses séculos houve uma repetição de promessas e esperanças no desenvolvimento da ciência, apresentadas por meio de analogias e metáforas, exatamente como acontece ainda hoje em dia. Para efeito de ilustração, cito uma passagem de um texto do século XIX, mencionada no posfácio:

“Para se ter uma idéia exata das operações que produzem o pensamento, é necessário considerar o cérebro como um órgão especial planejado especificamente para produzi-lo, assim como o estômago e o intestino são planejados para realizar a digestão, o fígado para filtrar a bile e as glândulas parótidas, maxilares e sublinguais para preparar os sucos salivares”. (Cabanis, 1805, p. 152–153, apud Araújo, p. 75).

A comparação aqui entre o pensamento causado pelo cérebro com o que é causado por outros órgãos biológicos é conceitualmente muito semelhante ao que encontramos contemporaneamente no “naturalismo biológico” de Searle (2000), por exemplo, que nos convida a analisar a consciência como um produto biológico da mesma forma que a digestão, o crescimento, etc..

O autor é enfático ao diferenciar a atividade científica, de um lado, e o materialismo, de outro: “Ciência e materialismo são coisas distintas, que só por um deslize conceitual podem ser tratadas como idênticas” (p. 69). Do inquérito que o cientista realiza ao examinar o mundo não se segue logicamente o materialismo. Este é uma tese metafísica especulativa sobre a natureza do mundo e não o produto de uma teoria científica amparada em indícios observacionais.

O livro de Araújo está bem escrito e é acessível ao leitor que não tenha muitos conhecimentos prévios do assunto. A farta referência bibliográfica proporciona aos interessados um panorama sobre a discussão contemporânea em filosofia e ciência sobre a mente. Para graduandos e pós-graduandos, pode servir de modelo para trabalhos acadêmicos. Com olhar de aprendiz, pode-se colher muitos detalhes didáticos nesta obra. O principal trunfo filosófico do livro é a demonstração da carência de apoio teórico e empírico para a tese materialista em filosofia da mente. O caminho que o autor percorre averigua os pressupostos e argumentos intrínsecos ao materialismo, em particular, o de tipo eliminativo, usando uma linguagem sóbria e criteriosa, sem recorrer em momento algum a passagens irônicas, evasivas ou zombeteiras. Com clareza analítica, mostra as contribuições da perspectiva materialista, como a premência de se desenvolver uma linguagem científica para explicar a mente, a importância de programas interdisciplinares de pesquisa científica, etc.. No entanto, e esta é a maior virtude da segunda edição, o livro mostra a enfática diferença entre ciência e materialismo, contrariando uma certa imagem ingênua que se faz da atividade científica, em que se considera que esta está ideologicamente compromissada com um ideal materialista. São poucos os autores e as obras publicadas que se posicionam criticamente em relação ao materialismo; esta é uma obra que vem acrescentar neste ponto. Será muito interessante uma terceira edição ampliando ou pormenorizando as idéias do posfácio, ou outro livro, dando seqüência a este trabalho.

Antes de concluirmos, gostaríamos de destacar um fato bibliográfico bastante notável. O conteúdo dos capítulos 4 e 5 do livro de Araújo é quase idêntico a duas seções do capítulo 5 do livro Mente, Cérebro e Cognição, de João de Fernandes Teixeira. A seção “O materialismo eliminativo dos Churchlands” (pp. 115–119), do livro de Teixeira, parece mesmo que foi plagiada do capítulo 4 de Saulo. Mencionarei duas passagens, uma de cada livro, para demonstrar o que digo:

“Em relação à “subjetividade” do morcego, é de fato possível, segundo Churchland, que nós nunca cheguemos a conhecer alguns de seus estados internos. Mas isso não implica, de modo algum, que os qualia do morcego não sejam estados físicos e que, portanto, o fisicismo deva ser abandonado. Trata-se apenas de uma limitação da capacidade humana, derivada das possíveis diferenças estruturais específicas entre o nosso cérebro e o do morcego”. (Araújo, 2011, p. 53)

“Em relação à “subjetividade” do morcego, afirma Churchland, é de fato possível que nós não tenhamos acesso a alguns de seus estados internos. Mas isso não implica, de modo algum, que os qualia do morcego não sejam estados físicos e que, portanto, o fisicismo seja falso. Trata-se apenas de uma limitação da capacidade humana, derivada das diferenças estruturais específicas entre o nosso cérebro e o do morcego”. (Teixeira, 2008, p. 119)

Outra seção do livro de Teixeira, “O futuro do materialismo eliminativo” (pp. 119–122), tem alguns parágrafos igualmente semelhantes a passagens do capítulo 5 do livro de Araújo.

Em nota de rodapé, Teixeira (p. 115) reconhece Araújo como “colaborador direto” na elaboração daquelas. Araújo (p. 79), por sua vez, referencia-se como autor da seção “O materialismo eliminativo dos Churchlands” do livro Mente, Cérebro e Cognição, sem fazer menção sobre a outra seção. Mas Araújo não aparece como co-autor do livro de Teixeira.

O texto do livro de Araújo foi extraído de sua dissertação de mestrado (entregue em 1999 e defendida no ano seguinte). O livro de Teixeira, vale lembrar, foi publicado em 2000, e ele foi o orientador de mestrado de Araújo na UFSCar. A situação é curiosa e um tanto constrangedora: é estranho que um ajuste nas referências bibliográficas do livro de Teixeira não tenha sido feito na segunda ou terceira edição. Do jeito que está, fica-se com a impressão de que houve plágio por parte de Teixeira.

Bruno Angeli Faez

Referências

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