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Crítica
6 de Março de 2019   Ética

Natureza, contexto e cultura

José Costa Júnior
Comportamento: A Biologia Humana no Nosso Melhor e Pior
de Robert M. Sapolsky
Tradução de Giovane Salimena e Vanessa Bárbara
Lisboa: Temas e Debates, 2018, 864 pp.

As investigações e os debates acerca da compreensão que temos de nós mesmos enquadra-se no âmbito da antropologia. Desenvolvidas tanto em termos filosóficos, com análises e definições conceituais e a priori, quanto em termos científicos, a partir de práticas empíricas e observacionais, as investigações antropológicas buscam compreender o que somos e, consequentemente, o que é possível para seres vivos como nós. Os resultados de tais disputas e pesquisas acerca da concepção de humanidade subjazem uma série de importantes concepções sobre a moralidade, a política, a religião, a economia e outras diversas dimensões que circundam a humanidade.

Ao longo do desenvolvimento de hipóteses antropológicas, diversas tensões e dicotomias surgiram nos debates e tentativas de explicação da natureza e do lugar da humanidade. Descrições ligadas ao nosso potencial de intelecção, nossas características anatômicas e nossa natureza comportamental acabaram por nos colocar em patamares distintos de outras formas de vida. No entanto, tensões e dicotomias também surgiram: até que ponto somos estruturados e determinados pelos processos naturais, como as outras formas de vida parecem ser? Ou cada modo de vida e de ação, que podemos chamar de cultura, promove a organização da vida humana de maneira independente? Há espaço para algum grau de livre agência ou as nossas ações são determinadas por algum tipo de circunstância? A instintividade, que parece regular a existência de outras formas de vida, tem alguma preponderância nas existências humanas?

Nas discussões acerca desses tópicos, os pressupostos e generalizações surgem muitas vezes sem a devida atenção ou sem uma reflexão mais detida. Afirmações como “o ser humano é um animal racional” ou “somos naturalmente egoístas” são pressupostos comuns em muitas construções teóricas, para utilizarmos exemplos comuns. No entanto, existem abordagens que buscam fundamentos mais sólidos para as investidas antropológicas, como mostra a análise acerca das mudanças nas concepções de humanidade no ocidente ao longo do tempo desenvolvida pelo filósofo Francis Wolff, que desenvolveu uma catalogação de alguns modelos teóricos que definem expectativas quanto ao potencial humano em termos epistemológicos e morais:

Necessariamente, o conceito de humanidade transborda em todos os sentidos. Transborda primeiro para a esfera do saber, onde pode servir de caução a conhecimentos diversos: ‘Já que o homem é isso, podemos saber aquilo’. Mas transborda também para a esfera social, onde pode servir a interesses práticos diversos e contribuir para justificar ideologias morais ou políticas: ‘Já que o homem é isso, podemos e devemos fazer aquilo’. (Wolff 2011: 10)

Segundo a sua catalogação, tais modelos partem do “animal racional” de Aristóteles, passando pela “substância pensante estreitamente unida a um corpo”, de René Descartes, e pelo “sujeito que está sujeito” às estruturas históricas, sociais e econômicas, próprio das ciências humanas do século XX, chegando ao “animal como os outros”, revelado pela biologia evolutiva e pelas neurociências, na visão proposta por Charles Darwin, e que encontra cada vez mais desenvolvimentos em meados do século XXI. Esta última concepção ainda gera reações e críticas intensas, seja por alterar consideravelmente compreensões tradicionais da humanidade, seja por trazer implicações antropológicas que envolvem um questionamento das concepções tradicionais da natureza e do lugar do animal humano na realidade. Muitos estudos e análises antropológicos ainda investigam o impacto da hipótese de Darwin e dos seus desenvolvimentos para a concepção que temos de nós mesmos, mesmo um século e meio após a publicação da teoria da evolução por seleção natural (e posteriores desenvolvimentos ao longo dos séculod XX e XXI).

Aqui é necessário fazer uma ressalva. Uma tentativa de exploração antropológica pretensamente desenvolvida com base nas hipóteses experimentais de Darwin levaram a um retrato enganoso da humanidade. Proposto pelos chamados “darwinistas sociais”, essa concepção de humanidade glorificava o papel da “luta” e da “sobrevivência” para explicar o “progresso” e o “avanço” da humanidade. Ao propor classificações arbitrárias e racistas, acabou por dar sustentação a sistemas sociais e políticos brutais, pautados pela afirmação e pela violência. No entanto, tais concepções são um “mau uso das ideias de Darwin”, uma apropriação da teoria do naturalista inglês para explicação de certos aspectos que não correspondem à teoria evolucionista originalmente proposta, conforme terminologia proposta por Donald Symons, principalmente em relação às concepções de progresso, avanço e evolução envolvidas. (Symons 1992: 137).

No entanto, além desse programa limitado em termos metodológicos e conceituais, o desenvolvimento das ideias e hipóteses de Darwin levaram a possibilidades mais proveitosas para a compreensão da humanidade. Podemos identificar esse programa como um projeto descritivo, uma vez que utiliza elementos da biologia evolutiva para tentar explicar e descrever a diversidade das características humanas em termos evolutivos. Áreas de pesquisa e investigação diversificadas como a antropologia evolutiva, a sociobiologia, a genética comportamental, as neurociências e a psicologia evolutiva, entre outras, tentam ampliar a compreensão humana a partir de nossa história evolutiva e estruturas biológicas. Muitas questões ainda estão em aberto em tais tentativas, mas se mantém abertas à discussão e análise crítica, como veremos, tentado assim fazer “um bom uso das ideias de Darwin”.

É a partir de uma concepção antropológica darwinista descritiva, que trouxe e ainda traz dúvidas e questões em aberto, que o professor de Biologia e Neurologia da Universidade de Stanford, Robert Sapolsky, escreveu este ensaio acadêmico (originalmente Behave: The Biology of Humans at our Best and Worst) em 2018, um livro que traz informações e implicações relevantes para a compreensão que temos de nós mesmos e que rondam as investidas da antropologia. Especialista em neuroendocrinologia e primatologia, Sapolsky tem uma sólida e diversificada carreira acadêmica, com publicações e investigações sobre diversos tópicos, como as causas e consequências do estresse em primatas, os impactos da pobreza extrema na formação infantil e a infecção parasitológica no cérebro de animais, para ficarmos em alguns exemplos. O objetivo geral de Sapolsky em Comportamento é oferecer uma explicação com base na literatura mais recente sobre os comportamentos e ações humanas, suas causas diretas e remotas, configurando um enquadramento naturalista para o nosso comportamento.

Muito antes da ação

O livro tem duas partes. Na primeira, o autor parte do que ocorre em nosso cérebro um segundo antes de um determinado comportamento, recuando minutos, horas, dias, meses, anos até ao nosso nascimento, à nossa estrutura genética e à nossa evolução (milênios). O objetivo é desenvolver uma “engenharia reversa” e mostrar como um determinado comportamento torna-se possível e quais são os substratos biológicos envolvidos. Sapolsky recorre à neurologia, à psicologia, à endocrinologia, à genética e à biologia evolucionista, entre outras áreas específicas, para explicar traços comportamentais humanos, em relatos detalhados e informativos sobre cada uma das áreas (o livro também traz três apêndices, com pequenos textos introdutórios sobre neurociência, endocrinologia e genética, para os leitores pouco familiarizados com tais ciências).

Na Introdução, o autor nos explica que o livro “explora a biologia da violência, da agressividade e da competição — os comportamentos e os impulsos por detrás delas, os atos de indivíduos, grupos e estados, e quando são coisas boas e más”. Porém, também trata “das formas pelas quais as pessoas fazem o oposto. O que nos ensina a biologia sobre a cooperação, a afiliação, a reconciliação, empatia e altruísmo?” (pp. 11–12). Além disso, traz esclarecimentos sobre a metodologia adotada no ensaio, principalmente em relação ao entrelaçamento constante entre biologia e cultura que, como veremos, é um dos pressupostos fundamentais do trabalho de Sapolsky. Podemos observar esse cuidado metodológico já no primeiro capítulo, quando o autor explica que enquadrar comportamentos como “bons” ou “maus”, “pró-sociais” ou “anti-sociais” é arriscado, uma vez que muitas vezes é difícil mostrar como um traço está dissociado do outro (a empatia, que contribui para nos aproximar de familiares, nos torna reativos contra estranhos). Por isso, prefere dizer que o “livro trata da biologia dos nossos melhores e piores comportamentos.”

Para abordar o que ocorre “um segundo antes” de um comportamento, Sapolsky recorre à neurobiologia, no segundo capítulo, com o objetivo de explicar o funcionamento do nosso sistema nervoso. Destaca as “três camadas” que compõem o cérebro humano e a sua evolução, juntamente com as distinções entre o sistema límbico (mais antigo) e o córtex (mais recente) e o papel da amígdala na agressividade e no medo (traços comportamentais muitas vezes conectados entre si). Sapolsky mostra a importância do córtex pré-frontal para o comportamento social, ataca a dicotomia razão e emoção, e explica o papel da dopamina e da serotonina em nossas rotinas comportamentais. Porém, destaca que “não é no cérebro que um comportamento começa”. Este é apenas a via final comum na qual convergem outros fatores que criam o comportamento.

No terceiro capítulo, com o objetivo de explicar o que ocorre “segundos a minutos antes” de um determinado comportamento, Sapolsky aborda a psicobiologia, isto é, o estudo das funções e atividades psíquicas e comportamentais em suas relações com processos biológicos. Aqui, destaca o fato de o cérebro receber muitas informações a todo momento, inclusive sobre o estado fisiológico do indivíduo e suas regulações, e até informações subliminares, que ficam abaixo do nosso radar consciente, mas que impactam nossos comportamentos e ações. É importante destacar que todo o texto é bem detalhado e explicativo, farto em referências ao final de cada capítulo, e que muitas vezes exigem muita atenção do leitor não-especialista.

Já para entender o que ocorre “horas e dias antes”, no quarto capítulo, o autor recorre à sua especialidade, que é a neuroendocrinologia, uma investigação sobre os efeitos dos hormônios no cérebro e no comportamento. Começa tratando da “reputação injusta” da testosterona e sua relação com comportamentos violentos, mostrando que existem sutilezas dos efeitos desse hormônio muitas vezes pouco compreendidas, principalmente em relação à autoconfiança e ao otimismo. Trata também da oxitocina, conhecida no senso comum como “hormônio do amor”, mas que tem conexões além da pró-sociabilidade, como no caso das reações aos estranhos. Por fim, aborda o estresse a partir da perspectiva da neuroendocrinologia, mostrando como precisamos da “quantidade certa” das tensões causadas pelo estresse para nos mantermos vivos (porém, em excesso, o estresse pode ser prejudicial no longo prazo).

Ampliando a distância no tempo antes de uma ação para “dias a meses antes”, Sapolsky aborda no quinto capítulo os modos a partir dos quais a plasticidade neural acontece, promovendo mudanças na estrutura de nosso cérebro. Aborda também outros elementos da plasticidade neuronal, como a neurogênese e o papel das experiências em tais mudanças. As análises aqui buscam explicar como a memória e o aprendizado envolvem atividades neurobiológicas que os tornam possíveis, mostrando também que nosso cérebro pode se transformar sempre, alterando também nossos comportamentos, ações e práticas.

O sexto capítulo aborda a adolescência humana (cujo título é irônico: “Onde está o meu córtex frontal?”). Primeiramente, temos um questionamento sobre a realidade da adolescência, isto é, se se trata apenas de uma “construção cultural do ocidente” ou de um período que retrata uma etapa específica do desenvolvimento neurobiológico. Sapolsky dá exemplos práticos do nível de amadurecimento cortical nessa etapa da vida, explicando a existência de mudanças da cognição na adolescência e a inclinação dos adolescentes para o risco. Dessa forma, mesmo que não saibamos exatamente seu início e seu fim, trata-se de um período de alterações relevantes para o amadurecimento cerebral dos humanos. Recorrendo também à psicologia do desenvolvimento, o autor mostra como a aceitação e a exclusão social entre os pares está conectada a essa etapa do desenvolvimento, mostrando também a importância desse período para a finalização do processo de amadurecimento do córtex.

Já a infância e a gestação são temas do sétimo capítulo (“De volta ao berço, de volta ao útero”), no qual Sapolsky descreve o desenvolvimento cerebral e algumas hipóteses sobre os estágios e níveis de amadurecimento. Aborda também como “diferentes tipos de infância produzem diferentes espécies de adultos”, uma vez que diversos acontecimentos impactam a formação e o desenvolvimento dos cérebros (como por exemplo a presença ou não da mãe no início da vida, o acesso à quantidade mínima de nutrientes durante o desenvolvimento e a cultura onde se está inserido). Por fim, Sapolsky explora as possíveis diferenciações entre os cérebros femininos e masculinos e os efeitos da exposição fetal a certos tipos de hormônios, que também acarreta consequências importantes para o desenvolvimento do indivíduo.

A genética é a base para as análises e observações do oitavo capítulo (“De volta a quando éramos apenas um óvulo fertilizado”). Sapolsky desafia as visões genocentristas, que atribuem à genética uma inexistente independência dos mesmos em relação ao ambiente: “Os genes não fazem sentido fora do contexto do ambiente”. Por isso, o estudo das interações entre genética e ambiente (epigenética) é fundamental para compreendermos as relações entre genes e comportamento. O autor também analisa metodologias em genética comportamental, afastando qualquer possibilidade de determinismo ou inevitabilidade: “Não pergunte o que um gene faz. Pergunte o que faz em determinado ambiente, e quando expresso numa determinada rede de outros genes” (p. 327).

Continuando o recuo no tempo antes de determinada ação, Sapolsky chega a “séculos e milênios antes”, abordando no nono capítulo a coevolução entre a biologia e a cultura. Temos aqui um exame dos padrões sistemáticos das variações culturais em relação aos comportamentos humanos, além de uma exploração das formas como diferentes tipos de cérebro produzem culturas diferentes e também de como diferentes tipos de cultura produzem cérebros diferentes. De modo geral, trata-se de uma análise do papel da ecologia na formação das culturas. Sapolsky desenvolve um diálogo com as hipóteses filosóficas de Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau acerca da natureza da sociabilidade humana. Segundo o autor, a nossa evolução foi pautada “por uma mistura dos dois”, variando de acordo com a ecologia em que determinada cultura está inserida.

No último capítulo da regressão proposta por Sapolsky para compreender o comportamento humano, chegamos à “evolução do comportamento”, no décimo capítulo. Sapolsky explica como a evolução moldou traços comportamentais humanos, porém sem o reducionismo tradicional exposto em muitas obras de divulgação científica. O autor explora os ricos debates em filosofia da biologia acerca do nível (genes, grupos, indivíduos, vários níveis?) e do modo (adaptacionismo ou gradualismo?) em que a seleção natural atua, para mostrar como a explicação evolutiva de certos traços comportamentais envolve complexidades muitas vezes pouco consideradas. Mais uma vez, Sapolsky ressalta que utilizar a evolução como categoria isolada ou agente causal bem definido para explicar um traço comportamental humano pode ser pouco proveitoso e uma opção limitada em termos metodológicos. Dessa forma, defende mais uma vez sua visão integradora dos vários elementos biológicos que subjazem à complexidade do nosso comportamento, afastando o reducionismo mais uma vez. Porém, reconhece a dificuldade desse tipo de abordagem: “Ninguém disse que era fácil”.

Já na segunda parte do livro, Sapolsky aborda algumas implicações das explicações do que chama de “biologia do nosso melhor e nosso pior”. Sua análise aprofunda-se em tópicos relativos à moralidade humana, como o tribalismo, as dinâmicas de poder, as tensões entre razão e emoção, a capacidade de empatia e pensamento simbólico, nossas concepções de liberdade e justiça e a possibilidade de progresso moral. O autor reconhece suas limitações em relação aos debates filosóficos envolvidos em tais tópicos; no entanto, argumenta que é necessário entendermos melhor as implicações de sermos “o tipo de animal que somos”, com nossos limites de possibilidades que nos tornam capazes de grande sofisticação e atos valorosos, mas também de produzir sofrimento e violência em escalas inimagináveis. Por fim, apresenta seu questionamento das concepções tradicionais de liberdade, que sustentam nossos sistemas filosóficos, legais e jurídicos.

No décimo primeiro capítulo (“Nós contra eles”), Sapolsky explora a força da demarcação entre diferentes grupos humanos. Uma série de marcadores arbitrários pode fundamentar formas de essencialismo em relações intergrupais, como a cor da pele, o conjunto de crenças ou ideologias, entre outras formas de demarcação. O autor descreve os elementos biológicos envolvidos na aproximação e no distanciamento entre seres humanos, que fazem surgir sentimentos, reações e racionalizações que sustentam processos de desumanização e violência extrema tão presentes na história da espécie. Sugere que um dos principais meios para evitarmos os riscos da demarcação entre “nós e eles” é o raciocínio e a individualização e humanização das circunstâncias, limitando assim os efeitos de segregação do pensamento essencialista.

As relações de poder, hierarquia, obediência e resistência são temas do décimo segundo capítulo. Utilizando paralelos com outros primatas e suas organizações sociais, Sapolsky explora a natureza e as variedades da hierarquia, e a psicologia envolvida nos processos de obediência e conformidade. Retoma e discute os experimentos clássicos da psicologia social desenvolvidos por Salomon Asch, Stanley Milgran e Philip Zimbardo na segunda metade do século XX, abordando também a biologia subjacente a tais investigações, juntamente com algumas objeções. Por fim, mostra como os níveis socioeconômicos também tornaram-se marcadores de diferenças de poder, estatuto e hierarquização social na atualidade, a ponto de causar tensões e estresses nas relações entre os indivíduos.

As discussões sobre a origem e funcionamento da moralidade humana são o tema do décimo terceiro capítulo. Com base nos recentes debates envolvendo filósofos morais, psicólogos e neurocientistas, Sapolsky questiona a primazia do raciocínio na tomada de decisões morais, partindo da hipótese do intuicionismo social defendida por Jonathan Haidt e algumas investigações sobre o nativismo moral. Discute também a distinção de Joshua Greene entre intuição moral e pensamento moral, destacando como a moralização das circunstâncias também pode ser um gatilho para a agressividade e a violência. Porém, levanta algumas objeções a tais hipóteses, principalmente a ausência de reflexões acerca do papel do contexto das reações morais e a tentativa de manter uma separação clara entre processos emocionais e raciocínio.

Na sequência, Sapolsky aborda a natureza da empatia no décimo quarto capítulo (“Sentir, entender e aliviar a dor do outro”), mostrando como elementos parecidos que envolvem pró-sociabilidade também podem ser encontrados em outros primatas e crianças muito pequenas. Com o objetivo de oferecer uma compreensão mais qualificada do fenômeno, o autor faz distinções entre empatia, simpatia, compaixão e termos afins, explicando como componentes cognitivos e afetivos contribuem para estados empáticos, que podem motivar ou não atos compassivos. Muitas vezes, tais processos podem envolver somente quem nos é mais próximo, nos distanciando de outros a ponto de desumanizá-los.

A capacidade para o pensamento simbólico e seus efeitos é o tema do décimo quinto capítulo (“Metáforas pelas quais matamos”). Sapolsky oferece uma série de exemplos de “sacrifícios humanos nos altares das abstrações”, nas palavras do filósofo Isaiah Berlin, para mostrar como o gatilho para a agressividade e violência pode surgir a partir de construções simbólicas. Bandeiras, símbolos religiosos, partidos políticos, entre outros elementos, podem estimular moralizações e reações intensas em seres humanos, dada a nossa natureza. Dois exemplos: o conflito entre tutsis e hutus em Ruanda, onde processos de desumanização e pseudoespeciação serviram de base para o assassinato de milhões de pessoas; a violência oferecida pela Alemanha nazista a judeus e outras minorias, sustentada por categorizações desumanizadoras elevou a capacidade de produção de sofrimento a níveis pouco imaginados até então. Muitas vezes podemos confundir o literal com o metafórico, criando santificações ou aversões, oferecendo segregação, sofrimento e violências sem se dar conta de que lidamos com símbolos.

No capítulo mais estimulante em termos filosóficos, Sapolsky ataca as concepções tradicionais de liberdade e o sistema de justiça criminal (“Biologia, justiça criminal e (ora, por que não) livre-arbítrio”). Primeiramente, mostra que nossas tentativas institucionais de promoção da justiça tem por base uma compreensão limitada daquilo que somos, principalmente em relação às nossas tendências, vieses e limitações de racionalidade. Na sequência, mostra que as concepções tradicionais de livre-arbítrio também são limitadas quando investigamos a fundo a biologia do comportamento, mas reconhece o desafio prático que é nos organizarmos em termos sociais e políticos sem a expectativa de existência de liberdade. No entanto, Sapolsky mantém expectativas de que no futuro possamos considerar as informações e resultados oriundos das investigações científicas sobre os seres humanos nos tribunais, evitando erros e desenvolvendo um sistema mais adequado.

No último capítulo (“Guerra e paz”), Sapolsky pretende mostrar que houve progressos ao longo da história da nossa espécie, uma vez que muitos dos nossos piores comportamentos recuaram, quando os melhores avançaram. Para isso, dialoga com o cientista cognitivo Steven Pinker sobre a diminuição nos níveis de violência nos últimos séculos, oferecendo algumas objeções principalmente em relação ao fato de que muitos ainda vivem em situações bem difíceis na atualidade. Também examina as possibilidades de ampliar essa melhoria, através de práticas, políticas e instituições. Um dos pontos principais para Sapolsky é reconhecer nossas limitações de liberdade e tendências cognitivas, principalmente em relação às dificuldades de nossa racionalidade. Mesmo que presos em nossa natureza, que não pode ser alterada, e imersos em nossas condições, o mundo em que vivemos é a prova de que mudanças podem ocorrer.

Somos apenas o que a biologia faz de nós?

Algumas objeções levantadas recentemente às tentativas de compreensão antropológica darwinista estimulam reflexões acerca do projeto desenvolvido por Sapolsky neste livro. O filósofo Thomas Nagel desenvolveu uma crítica explorando a dificuldade do programa evolucionista para explicar o conhecimento, a consciência e os valores humanos, uma limitação que “tornaria a concepção materialista neodarwinista da natureza provavelmente falsa” (Nagel 2012: 10). Esse ataque defende que as ciências físicas podem apenas nos descrever como partes da ordem espaço-temporal objetiva — nossa estrutura e comportamento no espaço e no tempo –, porém não podem descrever experiências subjetivas, nem como o mundo surge para os seus diferentes pontos de vista particulares. Dessa forma, uma descrição puramente física dos processos neurofisiológicos que dão origem a uma experiência ou a um comportamento deixa de fora a essência subjetiva da experiência, sendo por isso um quadro incompleto da nossa condição.

Já Raymond Tallis critica a tendência contemporânea que denomina como “biologismo”: uma ênfase excessiva dada às características ditas naturais dos seres humanos. Tallis não questiona a origem biológica do Homo sapiens como organismo, uma vez que “a verdade da teoria da evolução está além de qualquer dúvida razoável” (Tallis 2011: 239). Porém, aponta problemas nos excessos das duas subdivisões que identifica na tendência ao biologismo: a “darwinite” e a “neuromania”. Na primeira, o excesso é acreditar que, uma vez que a mente é um órgão que evoluiu de acordo com a hipótese darwinista, o comportamento e o pensamento serão determinados pelo histórico dos processos de seleção natural e pelo que foi adaptado há dezenas de milhares de anos para assegurar a manutenção nos ambientes ancestrais. Tal noção colide com o fato de seres humanos fazerem escolhas, conduzirem suas vidas e as regularem por narrativas compartilhadas e individuais, enquanto os outros animais meramente vivem.

Já no caso da “neuromania”, o excesso está ligado à ideia errônea de que a mente é uma coleção de sinapses predeterminadas, que se ativam de certo modo, e que nossas consciências, identidades, pensamentos e comportamentos são análogos a tais movimentos. Essa identificação exige mais explicações do que a simples correlação de imagens da atividade cerebral e conteúdo dos pensamentos. Além disso, as reproduções dos cenários e situações utilizadas nas investigações neurocientíficas são muito limitadas em relação ao mundo real. As respostas oferecidas pelos indivíduos em tais circunstâncias tem um valor limitado em relação às decisões que seriam tomadas na realidade. Os cenários hipotéticos apresentados são ricos e vivazes, porém implausíveis. Os impasses e dúvidas não são tratados com o mesmo pânico, indecisão, medo e angústia que os dilemas morais genuínos produzem (Tallis 2011: 75). As decisões reais dependem da situação em particular; as escolhas éticas não são como bifurcações, onde há apenas poucas escolhas, estando ao invés conectadas a uma série de possibilidades.

Por fim, numa terceira crítica, o filósofo Roger Scruton também não nega que “os seres humanos são animais, regidos pelas leis da biologia”, mas defende que os seres humanos são também pessoas, “agentes racionais, autoconscientes e livres, obedientes à razão e vinculados pela lei moral” (Scruton 2017: 17). Esse caráter de pessoa não seria algo extra a ser colocado sobrenaturalmente sobre os organismos, mas também não é algo redutível à nossa biologia. Pelo contrário: a nossa natureza animal e a nossa personalidade são dois aspectos distintos e contrastantes de nós. Um ou outro entra em foco, dependendo do tipo de perguntas que fazemos sobre nós mesmos. Assim, a ciência tem muito a dizer acerca do primeiro aspecto, mas não necessariamente acerca do outro.

No entanto, Sapolsky não busca uma explicação total da condição humana, mas sim usar alguma informação sobre o nosso desenvolvimento que nos ajude a compreender as nossas capacidades e limitações — principalmente em relação aos processos cognitivos e afetivos humanos — o que pode informar nossas concepções de nós mesmos, afastando enganos e suposições infundadas. Dessa forma, Sapolsky vai além das explicações tradicionalmente oferecidas por programas de viés darwinista, que são limitadas justamente por tentar explicar os traços comportamentais humanos a partir de um único aspecto (o cérebro, os genes, a evolução, etc.). Reconhece o alcance limitado das descrições e investidas da biologia (principalmente em relação ao contexto em que estamos inseridos), mas um retrato antropológico desprovido de fundamentos biológicos também não faria sentido, inclusive acerca do que pressupõem os críticos: uma capacidade de reconhecimento e valorização do humano, o modo como lidamos com a moralidade e os valores e a capacidade para alterarmos nossas rotinas comportamentais.

Sapolsky mantém ressalvas metodológicas dessa natureza durante todo o livro. Primeiramente, busca esclarecer que é limitado explicar as tendências comportamentais humanas a partir de um único ponto de vista. Manchetes comuns em divulgação científica indicam “a descoberta do gene da infidelidade”, mas tais tipos de análises são apressadas e reducionistas, pois não envolvem a variedade de circunstâncias em que os genes e os cérebros estão envolvidos, nem os seus desenvolvimentos e os diversos modos em que um determinado comportamento pode estar ligado à herança genética do indivíduo ou ao modo como o seu cérebro funciona. Desse modo, sua metodologia de recuo no tempo e no espaço em relação a um determinado comportamento busca evitar a redução apressada que pretensamente explica tendências comportamentais humanas.

Uma segunda ressalva envolve o fato de praticamente todos os fatos científicos relativos ao comportamento humano referem-se à média do que está a ser estudado. Sempre existem variações, muitas vezes mais interessantes que o próprio fato. Um exemplo seriam as explicações genéticas para a existência do altruísmo, que têm dificuldades em explicar como um pai mata um filho ou como um filho agride uma mãe. Tais comportamentos escapam aos comportamentos habituais das pessoas, mas podem acontecer.

Por fim, Sapolsky destaca o papel do ambiente e do contexto para uma compreensão adequada do comportamento humano a partir da biologia. Os genes, por exemplo, têm efeitos diferentes em ambientes distintos. Um hormônio, por outro lado, pode nos fazer ser mais gentis ou grosseiros, dependendo dos valores a que fomos expostos. Dessa forma, não evoluímos para ser “egoístas” ou “altruístas”, mas sim para agir de formas específicas em situações específicas, sempre abertos a diversas possibilidades comportamentais. Em suas palavras, “contexto, contexto, contexto”. Este livro busca explicar como a natureza humana está conectada à condição humana, situação que torna pouco produtivo explicar tais instâncias em separado. Teorias sobre a natureza humana, desenvolvidas a partir da concepção darwinista ou não, precisam estar atentas ao ambiente em que os comportamentos são efetivados. Teorias sobre a condição humana, muitas vezes pautadas pela defesa de um tipo de determinismo ambiental, precisam estar atentas aos substratos biológicos que nos tornaram o tipo de animal que somos.

Este livro é uma leitura fundamental para quem mantém interesses sobre antropologia. Atualizado em termos científicos, crítico de concepções reducionistas e infundadas, filosoficamente provocador e estimulante. Pode-se colocar algumas ressalvas ao nível de complexidade que Sapolsky às vezes atinge (compreender a síntese de proteínas envolvidas na ciência genética é um desafio); porém, mostra o quão complexo se torna oferecer explicações biológicas para as aparentemente diferenciadas ações humanas. Sua crítica ao livre-arbítrio também pode receber críticas de visões filosoficamente mais refinadas, porém é uma tentativa interessante de ampliar o diálogo entre filosofia e ciência. Mesmo se seguirmos a análise de Wolff, de que Darwin nos estimula a compreender o humano como “um animal como os outros”, ao acompanhar o processo de engenharia reversa que nos tornou o que somos, temos a sensação de fazer parte de um grande momento da vida no Universo, um momento até mesmo especial.

José Costa Júnior

Referências

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ISSN 1749-8457