Enfrentemos a questão de saber se o uso da clonagem para produzir uma pessoa é, em princípio, moralmente aceitável ou não. Nesta secção, concentrar-me-ei na questão de saber se a clonagem, usada desse modo, é intrinsecamente errada. Depois, na secção seguinte, procurarei saber se a clonagem para produzir pessoas tem necessariamente consequências que a tornem moralmente errada.
Como pode alguém argumentar que a produção de pessoas por clonagem é intrinsecamente errada? Parece aqui que Dan Brock terá razão quando sugere que há basicamente duas linhas de argumentação que merecem exame.1 Primeiro, há um argumento que invoca o que pode inicialmente ser descrito como o direito da pessoa a ser um indivíduo único, mas que, no final, deve apenas ser caracterizado de facto como o direito das pessoas a ter uma natureza genética única. Segundo, há um argumento que invoca a ideia de que a pessoa tem direito a um futuro que está, num certo sentido, em aberto.
Inúmeras pessoas sentem que ser um ser individual único é importante, e o pressuposto básico desta tentativa para mostrar que a clonagem é intrinsecamente errada envolve a ideia de que a unicidade dos indivíduos seria de algum modo prejudicada pela clonagem. Em resposta, penso que é legítimo questionar se a unicidade é relevante. Se, por exemplo, se vier a descobrir que existe, talvez num planeta distante, um indivíduo qualitativamente idêntico a alguém, até ao mais pequeno detalhe, tanto física como psicologicamente, será que isso tornaria a vida dessa pessoa menos valiosa, menos merecedora de ser vivida?
Ao pensar sobre esta questão, pode ser importante distinguir dois casos diferentes: primeiro, o caso em que as duas vidas são qualitativamente idênticas em função da acção de leis causais determinísticas; segundo, o caso em que se dá a coincidência de ambos os indivíduos viverem sempre situações similares em que livremente decidem agir da mesma forma, têm os mesmos pensamentos e sentimentos, e assim por diante. O segundo cenário, como sugeri, não é problemático. Mas o primeiro pode ser. Mas se for, será por haver uma pessoa que é qualitativamente indistinguível de outra ou por a sua vida estar totalmente determinada?
Daí que eu tenda a pôr em causa a perspectiva amplamente aceite de que a unicidade é uma parte importante do valor da vida de alguém. Felizmente, contudo, não é necessário responder a essa questão neste momento, uma vez que a clonagem não produz, efectivamente, uma pessoa qualitativamente indistinguível do indivíduo clonado, uma vez que, como acontece no caso dos gémeos idênticos, dois indivíduos com o mesmo código genético, mesmo tendo sido criados na mesma família na mesma altura, diferem em aspectos relevantes, devido aos acontecimentos diferentes que compõe as histórias das suas vidas.
Quão profundas são as diferenças? O resultado de um estudo diz o seguinte:
Em média, os nossos questionários mostram que os traços de personalidade de gémeos idênticos apresentam uma correlação de 50%. Os traços de gémeos falsos, pelo contrário, apresentam uma correlação de 25%, irmãos não gémeos uma correlação de 11% e estranhos uma correlação próxima do 0%.2
Consequentemente, os traços de personalidade de um indivíduo e do seu clone devem, em média e presumivelmente, apresentar níveis de correlação provavelmente inferiores, dado que um indivíduo e o seu clone serão educados em momentos diferentes, e em gerações que podem diferir substancialmente quanto às crenças básicas e aos valores fundamentais.
Assim, o presente argumento, para ser bem-sucedido, tem de abandonar a tese de que uma pessoa tem o direito a uma unicidade absoluta e passar a afirmar outra tese, a saber, que uma pessoa tem o direito a uma natureza geneticamente única. Como fica então o argumento depois desta reformulação?
Um aspecto inicial digno de ser sublinhado refere-se ao facto de qualquer defesa do direito a uma natureza geneticamente única levantar uma dificuldade ao teísta: se há tal direito, por que razão terá Deus criado um mundo em que podem nascer gémeos idênticos? Mas há, claro, muitas características do mundo que são deveras surpreendentes, se realmente o nosso mundo foi criado por uma pessoa omnipotente, omnisciente e moralmente perfeita, pelo que o teísta que defende um direito a uma natureza geneticamente única pode simplesmente responder que a presença de gémeos é apenas mais uma faceta do problema geral do mal.
Como abordar a questão de saber se as pessoas têm direito a uma natureza geneticamente única? Penso que para alguns autores é suficiente uma resposta do tipo “ónus da prova”. A ideia aqui seria que, embora possa ser verdadeiro que bastantes pessoas de facto pensem que ser um indivíduo único, no sentido de não ser qualitativamente idêntico a alguém, é uma parte importante do que dá valor a isso de ser uma pessoa, a ideia de que as pessoas têm direito a uma identidade genética única só foi introduzida recentemente e quem a defende tem de apresentar razões para que a aceitemos como verdadeira.
Há, contudo, formas de procurar resolver esta questão que implicam oferecer argumentos contra esta tese. Por exemplo, uma possibilidade é apelar para as nossas intuições ponderadas. Assim, podemos considerar o caso dos gémeos idênticos e perguntar, depois de reflectirmos, se pensamos que seria prima facie errado reproduzir-nos se soubéssemos que, ao fazê-lo, isso resultasse em gémeos idênticos. Creio que seria surpreendente se bastantes pessoas sentissem isso.
Outra forma de responder à questão é apelando para alguma teoria geral plausível dos direitos. Assim, por exemplo, inclino-me a pensar que esses direitos existem quando há interesses próprios reais que devam ser preservados. Se esta perspectiva for correcta, poderemos finalmente enfrentar o problema de saber se as pessoas têm direito a uma natureza geneticamente única perguntando se alguém tem um interesse próprio real que seria eliminado se fosse um clone. Será este um desses casos? A razão inicial para pensar que não é o caso é que a existência de um clone não parece afectar uma pessoa da mesma forma que impedir alguém de realizar uma acção que prejudique outra, ou de ser torturado, ou morto: um clone distante pode não ter qualquer impacto na vida da pessoa clonada.
Em resposta, pode-se argumentar que, apesar de a mera existência de um clone poder não ter qualquer impacto, podendo por isso não afectar de modo algum os interesses próprios de qualquer pessoa, a situação poderá ser bem diferente se essa pessoa vier a saber da existência de um clone seu, já que esse conhecimento poderia, por exemplo, prejudicar o seu sentido de individualidade. Mas por que seria isso assim, dado que os indivíduos podem diferir significativamente, embora partilhando o mesmo código genético? Parece-me que se o conhecimento da existência de um clone pode ser perturbador, isso terá de acontecer devido à presença de alguma crença relevante falsa, como a crença no determinismo genético. Mas, se for isto, surge a questão de saber se tais direitos existem quando os interesses que protegem só serão prejudicados se os sujeitos potenciais do dano tiverem determinadas crenças falsas e presumivelmente irracionais. A minha convicção é que a responsabilidade por tal dano será devidamente atribuída ao indivíduo que adquiriu as crenças irracionais, cuja presença é necessária se acaso houver qualquer dano. Consequentemente, parece-me que as acções dos outros não devem ser limitadas de modo a impedir que algum dano possa ocorrer, pelo que nenhum direito estará a ser violado nesse caso.
Uma terceira forma de pensar sobre esta questão de saber se existe um direito a uma natureza genética única é considerar um cenário em que é de facto bastante comum que os indivíduos tenham o mesmo código genético, e perguntar se tal mundo seria inferior ao efectivo. Por exemplo, imagine o leitor que estamos no ano 4004 a.C. e que Deus está a pensar criar seres humanos. Já pensou na possibilidade de os seres humanos resultarem de um processo evolutivo, mas rejeitou esse plano com base na ideia de que uma solução baseada no acaso, para uma questão tão vital como dar existência a seres humanos, seria bastante inapropriada. Também está a considerar criar um par humano original que seja geneticamente distinto, a partir do qual surgirão seres humanos que serão geneticamente bem diversos. Contudo, depois de alguma reflexão essa ideia também lhe pareceu imperfeita, já que a mistura aleatória dos genes daria origem a indivíduos que poderiam ser fisicamente deficientes, ou com tendências para doenças desagradáveis, como o cancro, o que lhes causaria um enorme sofrimento e provocaria mortes prematuras. Assim, no fim, o Criador decidiu-se por uma constituição genética que tivesse as duas propriedades seguintes: primeiro, não resultaria em sérias deficiências físicas e doenças, o que permitiria que um indivíduo, capaz de fazer escolhas acertadas, crescesse mental e espiritualmente. Segundo, todos os genes conteriam alelos idênticos. Deus criou então uma pessoa com essa caracterização genética — chamou-lhe Eva — e um segundo indivíduo, Adão, cuja única diferença genética estaria no facto de ter um cromossoma X e um cromossoma Y, ao passo que Eva teria dois cromossomas X. O resultado seria que quando Adão e Eva se reproduzissem, tal aconteceria efectivamente, devido ao facto de terem, além de uma diferença, a mesma caracterização genética, com alelos idênticos por cada carácter herdado, pelo que todos os seus descendentes serão geneticamente idênticos a Adão ou a Eva.
Em que medida será esse mundo comparável ao efectivo? Se estivéssemos a escolher por detrás do véu de ignorância de Rawls, seria racional preferir o mundo efectivo ou o mundo alternativo? Talvez esta não seja uma questão fácil. Mas parece claro que há algumas vantagens significativas associadas ao mundo alternativo. Primeiro, ao contrário do mundo efectivo, estaria garantida uma caracterização genética livre de disposições para doenças indesejáveis e que tornam a vida mais curta, ou de outras condições debilitantes como a depressão, a esquizofrenia, e assim por diante. Segundo, os traços herdados seriam distribuídos de uma forma perfeitamente equitativa, e ninguém começaria, como acontece no mundo efectivo, em sérias desvantagens, tendo de enfrentar árduas batalhas. Terceiro, além das diferenças entre homem e mulher, todos seriam fisicamente idênticos, e as pessoas diferenciar-se-iam apenas com respeito às suas “almas”, pelo que teríamos um mundo em que os juízos sobre as pessoas teriam provavelmente uma base bem menos superficial do que acontece frequentemente no mundo efectivo. Portanto, parece haver razões sérias para preferir o mundo alternativo ao mundo efectivo.
A terceira vantagem que acabei de mencionar aponta também, seguramente, para uma óbvia desvantagem prática do mundo alternativo: saber quem é quem seria uma questão bastante mais difícil do que o que acontece no mundo efectivo. Mas pode-se lidar com este problema fazendo variar o cenário anterior. Uma variante, por exemplo, envolveria toda a gente ser geneticamente idêntica excepto no que diz respeito aos genes que determinam a aparência da face e do cabelo. Dessa forma, seria tão fácil identificar os indivíduos no mundo alternativo como o é fazê-lo no efectivo. Claro que esta mudança significaria considerar um mundo alternativo em que existiria uma ampla identidade quanto à caracterização genética. Ainda assim, se este mundo fosse preferível ao mundo efectivo, penso que isso continuaria a fornecer um argumento contra a perspectiva de que os indivíduos têm um direito a uma caracterização genética única. Porque, em primeiro lugar, considerar que o mundo alternativo seria preferível sugeriria fortemente que a diferença genética, ao invés de ser desejável em si, é valiosa apenas na medida em que permite identificar as pessoas com maior facilidade. Em segundo lugar, será plausível defender que, embora a unicidade genética seja crucial, um nível bastante elevado de similitude genética não o é? Mas no mundo alternativo que estamos aqui a considerar, o grau de similitude entre dois indivíduos seria extraordinariamente elevado. Em terceiro lugar, o mundo alternativo é tal que os genes que determinam a estrutura inicial do cérebro individual não são meramente similares, mas absolutamente idênticos em todos os indivíduos. Mas então como se poderá defender de forma plausível que a unicidade genética é moralmente crucial, ao mesmo tempo que se aceita que um mundo em que os indivíduos não difiram quanto aos genes que determinam a natureza inicial dos seus cérebros possa ser melhor do que o mundo efectivo?
Estas considerações, sugiro, dão-nos boas razões para defender que não se pode sustentar de forma plausível que os indivíduos têm direito a uma natureza genética única, sem também defender que o mundo efectivo é preferível ao mundo alternativo que descrevi. O problema da identificação pode, contudo, ser enfrentado sem mudar para um mundo em que as pessoas difiram geneticamente, uma vez que se pode supor que faria parte dos seres humanos um mecanismo diferente para identificar as outras pessoas. Deus poderia, por exemplo, incorporar um circuito especial nos cérebros humanos, que emitiria não apenas o nome, mas também informação individual apropriada para identificar alguém, e que receberia a informação emitida pelos outros seres humanos que estivessem no interior do seu campo perceptivo. A informação seria confrontada com um banco dados que contivesse informação relativa a qualquer pessoa conhecida, e se alguma pessoa conhecida estivesse dentro do campo perceptivo e quiséssemos saber quem seria ela, estaríamos automaticamente na posse de informação relevante para o fazer.
O resultado seria um mundo em que todos os indivíduos teriam exactamente o mesmo código genético, à parte os cromossomas X e Y, e todas as características atraentes do mundo alternativo original estariam presentes, sem que houvesse problemas de identificação. Pode-se então perguntar em que medida este mundo se compara ao mundo efectivo, e se, em particular e após reflexão, o facto de todas as pessoas neste mundo alternativo terem essencialmente a mesma caracterização genética pode realmente ser uma razão para preferir o mundo efectivo.
Dan Brock refere um segundo argumento a favor da perspectiva de que a clonagem com o objectivo produzir pessoas é intrinsecamente má.3 O argumento, que se baseia nas ideias de Joel Feinberg, que defende um direito a um futuro em aberto,4 e de Hans Jonas, que defende um direito à ignorância até certo ponto,5 é mais ou menos o seguinte: a caracterização genética de um indivíduo pode muito bem ser determinada até certo ponto pelas possibilidades que tem aberto, pelo que tal pode limitar o curso da sua vida futura. Se não houver pessoas com a mesma caracterização genética, ou se houver mais alguém com essa caracterização mas o indivíduo não tiver disso conhecimento, ou, finalmente, se houver tal pessoa, mas que seja seu contemporâneo ou alguém mais novo, então o indivíduo não será capaz de observar o curso da vida da pessoa que tem a mesma caracterização genética. Mas e se o indivíduo souber de alguém com uma caracterização genética idêntica cuja vida foi anterior à sua? Então poderia saber que há certas possibilidades que não estão de facto em aberto, o que diminuiria o seu sentimento de ser capaz de escolher o seu curso de vida.
Para ver em que medida este argumento não é sólido, é preciso analisar o raciocínio que pode estar envolvido quando alguém, ao observar a vida anterior de uma pessoa com a mesma caracterização genética, conclui que a sua vida está sujeita a determinadas limitações. Uma possibilidade será que um indivíduo pode ter observado alguém que se esforçou arduamente, durante um longo período de tempo, para alcançar algum objectivo mas que fracassou sempre. Talvez o anterior indivíduo geneticamente idêntico tenha desejado ser a primeira pessoa a correr a maratona em menos de duas horas, e depois de vários anos de treino intenso e bem programado, de atenção à dieta, e assim por diante, nunca conseguiu baixar das duas horas e meia. Alguém estaria, por isso, justificado em considerar que talvez esse objectivo não estivesse realmente em aberto para esse indivíduo. Mas seria esse conhecimento uma coisa má, como parece sugerir Hans Jonas? Eu, pelo contrário, pensaria que esse conhecimento seria valioso, uma vez que facilitaria a selecção dos objectivos a que alguém poderia realisticamente dedicar-se.
Uma possibilidade bem diferente é alguém poder observar o curso de vida de um indivíduo geneticamente idêntico, e concluir daí que nenhuma vida significativamente diferente estaria em aberto. Poderia certamente sentir que a sua vida estaria limitada de uma forma bastante indesejável. Mas ao chegar à conclusão de que a sua vida não poderia ser significativamente diferente da vida do outro indivíduo, poderia estar a concluir algo a favor do qual não há qualquer indício favorável, e relativamente ao qual há um excelente indício em contrário: a vida dos gémeos idênticos demonstra que é efectivamente possível viver vidas diferentes, ainda que se tenha o mesmo material genético.
Em resumo, a ideia de que a informação acerca da vida de um indivíduo geneticamente idêntico a uma pessoa tornaria possível concluir que apenas um conjunto limitado de alternativas lhe estão disponíveis só seria justificável se o determinismo genético, ou algo bastante próximo disso, estivesse correcto. Mas nada há de verdadeiro no determinismo genético. Assim, também o segundo argumento a favor da perspectiva de que a clonagem com o objectivo de produzir pessoas é intrinsecamente má não é sólido.
Saber se é desejável produzir pessoas por clonagem depende do resultado de algo que ainda não está decidido: a questão do envelhecimento. Contudo, pressuporei agora que será possível clonar um indivíduo adulto de tal forma que se acabe com uma célula cujos cromossomas tenham telómeros completos, para que o indivíduo resultante venha a ter uma esperança de vida normal. Dado tal pressuposto, quero argumentar que há um grande número de benefícios importantes que podem resultar da clonagem de seres humanos com o objectivo de produzir pessoas.
Ao apresentar o que considero os benefícios da clonagem, terei em consideração objecções possíveis. Serão discutidas em “Objecções à Clonagem de Humanos”.
Uma tarefa teórica crucial para a psicologia é a construção de uma teoria satisfatória que explique a aquisição dos traços de personalidade, sendo central para o desenvolvimento de tal teoria a informação sobre a quantidade dos diversos traços herdados, ou em alternativa, a dependência de aspectos ambientais que sejam controláveis, ou, finalmente, a dependência de factores, cerebrais ou ambientais, que sejam aleatórios. Mas esse conhecimento não é só teoricamente crucial para a psicologia. O conhecimento do contributo que a caracterização genética, o ambiente e o acaso, terão ou não no desenvolvimento do indivíduo, permitirá desenvolver abordagens à formação de crianças que aumentarão a probabilidade de criar pessoas com traços desejáveis, pessoas que terão melhores hipóteses de realizar o seu potencial, e de viver vidas mais felizes e gratificantes. Portanto, esse conhecimento não tem apenas um enorme interesse teórico: será potencialmente benéfico para a sociedade.
Uma sugestão bem conhecida é que a clonagem de indivíduos que deram contribuições bem significativas para a sociedade pode beneficiar a humanidade. Tendo em conta o modo como esta sugestão é habitualmente apresentada, quando, por exemplo, se afirma que se fosse possível clonar Albert Einstein, o resultado seria um indivíduo que também daria contribuições bem significativas para a sociedade, a sugestão não é boa. Em primeiro lugar, saber se um indivíduo virá a desenvolver um trabalho muitíssimo criativo depende sobretudo de traços cuja aquisição depende do ambiente em que o indivíduo é criado, e não tanto do facto de ser determinado simplesmente pela sua herança genética. Mas não se poderá perguntar antes sobre o que aconteceria se também controlássemos o ambiente, criando um clone de Einstein, por exemplo, num ambiente o mais aproximado possível do tipo de ambiente em que Einstein foi criado? É claro que isso é capaz de ser algo difícil de concretizar. Mas, mesmo que pudesse ser feito, não é evidente que fosse suficiente, porque há o utro aspecto a considerar, a saber, que as grandes descobertas podem depender de coisas que são em grande medida acidentais, cuja ocorrência não fica garantida pela combinação de um certa carácter genético com um tipo geral de meio ambiente. Por exemplo, grandes matemáticos desenvolveram um enorme interesse pelos números numa fase inicial do seu desenvolvimento. Será que, por isso, há boas razões para concluir que se pudéssemos clonar Carl Friedrich Gauss, e educá-lo num ambiente semelhante ao original, essa pessoa teria desenvolvido um interesse similar pelos números, vindo depois a alcançar grandes feitos na matemática? Ou será provável que um clone de Einstein, educado num ambiente semelhante ao original, poderia ter cogitado, como o fez Einstein, sobre como seria o mundo se alguém pudesse viajar à velocidade da luz, e depois reflectisse sobre os assuntos que fascinaram Einstein, levando-o finalmente a desenvolver teorias físicas revolucionárias?
Creio que há problemas sérios com esta sugestão, em particular com a forma como é habitualmente apresentada. Por um lado, não estou convencido de que uma versão um pouco mais modesta desta versão não possa ser defendida. Considere-se, por exemplo, as irmãs Polgar. Temos aqui um caso em que o pai das três irmãs conseguiu criar um ambiente que tornou possível que todas se tornassem grandes jogadoras de xadrez, e uma delas, Judit Polgar, é hoje a maior jogadora de xadrez de todos os tempos. Não será razoável pensar que se forem feitos um grande número de clones da Judit Polgar, e se os criarmos num ambiente bastante similar àquele em que ela viveu com as suas irmãs, o resultado não será termos um grande conjunto de grandes jogadoras de xadrez?
De um modo mais geral, creio que há uma base hereditária forte para a inteligência,6 e também creio que há uma boa razão para pensar que outros traços que podem desempenhar um papel central na criatividade, como a persistência, a determinação e a confiança nas capacidades individuais, podem ser produzidos pela combinação certa entre a hereditariedade e o meio ambiente. Assim, embora a probabilidade de um clone de um indivíduo extraordinariamente criativo vir a realizar grandes conquistas não seja talvez, pelo menos em muitas áreas, especialmente alta, penso que há razões para pensar que, dado o ambiente apropriado, o resultado seria que o indivíduo pudesse vir a alcançar grandes feitos que beneficiariam a sociedade de formas significativas.
Um terceiro benefício da clonagem é o facto de que permitiria aumentar a probabilidade da pessoa a que estamos a dar existência gozar de maior felicidade e saúde. Pois, na medida em que a constituição genética de um indivíduo se relaciona com a sua esperança de vida, ou com as suas doenças, tanto físicas como mentais, ou com os traços de personalidade e temperamento relevantes para a felicidade ou infelicidade, ao clonar uma pessoa que viveu uma vida longa, ou que se manteve intelectualmente desperta, e que não sofreu da doença de Alzheimer, que não sofreu de cancro, artrite, ataques cardíacos, pressão arterial elevada, etc., e que não exibiu tendências para a depressão, ou esquizofrenia, etc., está-se a aumentar as probabilidades de o indivíduo que está a ser produzido gozar de mais saúde e viver uma vida mais feliz.
Bastantes casais prefeririam criar crianças com determinados traços. Em alguns casos, poderiam querer crianças com uma dada aparência física. Noutros casos, poderiam gostar de crianças que tivessem capacidades físicas para que pudessem ser mais bem-sucedidas na realização de actividades físicas mais exigentes. Ou poderiam preferir crianças que tivessem capacidades intelectuais que lhes permitissem valorizar a matemática e a ciência. Ou poderiam preferir crianças que tivessem traços que lhes permitissem envolver-se em diversas actividades cujos objectivos fossem estéticos. Alguns dos traços que as pessoas poderiam desejar para os seus filhos têm presumivelmente uma forte base hereditária; outros há que uma criança, dado um conjunto relevante de genes, e dado o ambiente correcto, provavelmente adquiriria. Na medida em que os traços em questão pertencessem a qualquer outra dessas categorias, a produção de uma criança por clonagem permitiria que mais casais tivessem filhos com traços que eles considerassem desejáveis.
Há uma segunda forma de a clonagem tornar a criação de crianças mais gratificante, e encontramo-la se recuarmos à nossa infância. A maioria das pessoas, quando faz isso, lembra-se de coisas que considera boas e de outras que teriam sido melhores se as circunstâncias fossem diferentes. Claro que em alguns casos a nossa avaliação pode não ser correcta e algumas das coisas que os nossos pais fizeram e outras que deixaram de fazer podem efectivamente ter tido efeitos positivos no nosso desenvolvimento. Todavia, depois de tudo considerar, parece plausível que a maioria das pessoas avalie de forma correcta quais foram os aspectos da sua educação que tiveram efeitos positivos e quais não os tiveram.
Então, a ideia é que um casal que cria um filho que seja um clone de um dos pais, o conhecimento que o pai relevante terá do modo como o deve educar adequa-se melhor à psicologia da criança. Além disso, dada a maior semelhança psicológica que haverá neste caso entre um dos pais e a criança, o pai relevante será mais capaz, a dada altura, de avaliar como se passam as coisas do ponto de vista da criança. Parece, por isso, que há boas probabilidades de esse casal considerar a educação da criança uma experiência mais compensadora — e de a criança ter uma infância mais feliz, já que será melhor compreendida.
Desde o êxito da clonagem de Dolly que pelo menos uma pessoa expressou a intenção de levar por diante a ideia de usar a clonagem para ajudar casais inférteis. A ideia de que a clonagem deve ser usada num futuro próximo parece moralmente problemática. Todavia, em princípio, a ideia geral pode conter um mérito considerável. Por exemplo, como Dan Brock, entre outros, afirmou, uma vantagem é que “a clonagem permitirá às mulheres que não ovulam e aos homens que não produzem espermatozóides produzir uma descendência que lhes seja biologicamente aparentada”.7 Outra vantagem, como também adiantou Brock, é que “os embriões podem ser clonados, tanto por transferência do núcleo como por divisão do embrião, com vista a aumentar o número de embriões para implantação e dessa forma aumentar as probabilidades de uma concepção bem-sucedida”.8
Bastantes pessoas, especialmente nos Estados Unidos, acreditam que a homossexualidade é profundamente errada e que os homossexuais não devem ser autorizados a casar ou a criar filhos. Todavia, creio que estas opiniões seriam rejeitadas pela maioria dos filósofos, que, pelo contrário, passariam a defender que a homossexualidade não é moralmente errada, e que os homossexuais deviam ser autorizados a casar e a ter filhos. Admita-se, para fins desta discussão, que estas perspectivas estão correctas. Então, como Philip Kitcher, entre outros, afirmou, a clonagem parece um método promissor para garantir aos casais homossexuais crianças que possam educar, uma vez que, no caso de um casal homossexual, cada criança poderia ser um clone de uma pessoa; no caso de um casal lésbico, qualquer criança ficaria, neste sentido, biologicamente ligada a ambas as pessoas:
Um casal lésbico deseja uma criança. Uma vez que gostariam que a criança estivesse biologicamente ligada a uma delas, solicitam que uma célula nuclear de uma fosse introduzida no óvulo da outra, e que o embrião fosse implantado no útero da mulher que tivesse doado o óvulo.9
Uma possibilidade final foi sugerida pelo conhecidíssimo caso dos pais de Ayala, na Califórnia, que decidiram ter outro filho com a esperança, depois justificada, de que a criança resultante estaria em condições de doar um pedaço de medula óssea para uma operação de transplante que permitiria salvar a vida da sua filha adolescente, que sofria de leucemia. Se a clonagem fosse possível na altura, os pais teriam à disposição um curso de acção alternativa, em vez de ter um filho pela forma normal, com probabilidade de não ser compatível: se pudessem ter clonado a filha doente, a compatibilidade da medula óssea estaria assegurada.
Certas objecções à clonagem de seres humanos para produzir organismos humanos sem mente, que serviriam como fonte de órgãos para outros, são perfeitamente inteligíveis. Se alguém refuta esta ideia argumentando que estamos a destruir uma pessoa, a preocupação que está aqui a ser expressa é clara e séria. O mesmo acontece se a objecção for, ao contrário, que tal clonagem é um erro muito sério, uma vez que ao impedir um organismo humano de desenvolver um cérebro funcional, priva-se uma alma imaterial associada a esse organismo de poder ter experiência de uma vida neste mundo. Finalmente, o mesmo é verdadeiro se alguém defender que tal clonagem seria errada, por envolver a destruição de uma potencialidade activa para ser pessoa.
O problema com estas objecções não é o facto de serem incoerentes. Nem de serem irrelevantes. O problema é apenas o facto de todas estas objecções não serem, afinal, sólidas, devido às razões que indiquei. Assim, o problema da primeira objecção é haver razões excelentes para defender que os embriões humanos não têm tais capacidades, como a capacidade de pensar ou de consciência de si, que algo deve ter, a dada altura, se vier a ser uma pessoa. O problema da segunda objecção é haver fortes razões para defender que a base ontológica das capacidades envolvidas na consciência, na consciência de si, no pensamento e noutros processos mentais, está no cérebro humano e não numa alma imaterial. Finalmente, o problema da terceira objecção reside no pressuposto de que a destruição de uma potencialidade activa para ser pessoa é moralmente errada, uma vez que essa tese não é, por um lado, suportada por qualquer argumento satisfatório e está, por outro, à mercê de uma objecção decisiva que apresentei antes.
Contudo, parece frequente que pessoas que concordam com a falta de solidez da objecção anterior e que, além disso, não consideram o aborto moralmente problemático, ainda assim mostrem alguma apreensão com a ideia de produzir bancos de órgãos sem mente. Contudo, essa apreensão raramente é articulada, e geralmente assume a forma de uma mera descrição da ideia de um banco de órgãos sem mente como um cenário mórbido. Este tipo de recusa do uso da clonagem para produzir bancos de órgãos é bastante perturbador. O que estamos aqui a considerar é uma forma de salvar vidas, pelo que, se alguém rejeita este uso da clonagem, está a defender um curso de acção que resultará na morte de pessoas inocentes. Fazê-lo com base na ideia de que um banco de órgãos sem mente é um cenário mórbido parece, e, última análise, moralmente irresponsável: se o uso da clonagem deve ser rejeitado, então deve-se apresentar um argumento moral sério.
Algumas pessoas opõem-se à clonagem realizada com o objectivo de produzir uma pessoa, por esta envolver uma violação de um direito da pessoa produzida. As versões mais importantes deste tipo de objecção são as que considerei, nomeadamente que há uma violação do direito de uma pessoa de ser um indivíduo único, ou, de forma mais precisa, a ser um indivíduo geneticamente único, ou em alternativa, o direito de uma pessoa de usufruir de um futuro em aberto que não seja limitado pelo conhecimento do curso da vida do indivíduo com o mesmo código genético. Mas, de acordo com as razões apresentadas, nenhuma destas objecções é sólida.
Ora, há um tipo de objecção que não é habitual encontrar nas discussões académicas, mas que é bastante comum na imprensa popular, e que envolve cenários em que os seres humanos são clonados em larga escala para servir como escravos ou como soldados entusiásticos do exército de um ditador. Todavia, esses cenários não parecem muito plausíveis. Não equivalerá a pensar que, onde a clonagem estiver disponível, a sociedade decidirá afinal que a rejeição da escravatura foi um erro? Ou então que um ditador que não tenha sido capaz de construir um exército satisfatório a partir dos cidadãos existentes seria capaz de induzir as pessoas a levar por diante um programa de clonagem maciça, para que finalmente, cerca de dezoito anos depois, pudesse ter o exército com que sempre sonhou?
Esta objecção está fortemente relacionada com a objecção da violação de direitos, porque a ideia é que, mesmo que a clonagem não viole o direito de uma pessoa de ser um indivíduo único, ou de ter uma caracterização genética única, ou de ter um futuro aberto e não limitado, ainda assim, as pessoas que fossem clones poderiam sentir que a sua unicidade estaria comprometida, ou que o seu futuro estaria limitado, e isso poderia provocar um dano e um sofrimento psicológico substancial.
Há duas razões para rejeitar esta objecção e mostrar que não é sólida. A primeira surge quando se pergunta a alguém sobre as crenças em causa, quer dizer, a crença de que a unicidade de alguém fica comprometida com a existência de um clone, e a crença de que o futuro de alguém ficará limitado se souber da existência de um clone seu. Ambas as crenças são, como vimos, falsas. Mas, além disso, também parece evidente que tais crenças são, em geral, irracionais, uma vez que parece difícil ver que razões haverá para que alguém as aceite, a não ser o determinismo genético, contra o qual, como vimos antes, há indícios conclusivos.
Depois de perceber que os sentimentos que podem dar origem a perturbações psicológicas são irracionais, pode-se apelar para o que defendi anteriormente, quando considerei a questão de saber se o conhecimento da existência de um clone poderia, por exemplo, prejudicar o sentimento de individualidade, ou se, caso fosse assim, tal dano seria suficiente para defender a existência de um direito correspondente que seria violado pela clonagem. O que defendi nessa altura foi que o dano a um indivíduo que resulta de ele ter uma crença irracional tem um estatuto moral diferente do dano que não depende da presença de uma crença irracional, e que, em particular, a possibilidade do primeiro tipo de dano não deve ser entendida como algo que impõe limites morais aos outros. Pelo contrário, a responsabilidade por tal dano deve ser atribuída ao indivíduo que tem a crença irracional, e a única obrigação que recai sobre os outros é a de mostrar à pessoa em questão por que razão a sua crença é irracional.
A segunda razão pela qual a objecção não pode ser sustentada também está relacionada com o facto de os sentimentos envolvidos serem irracionais, uma vez que a irracionalidade dos sentimentos significa que, se a clonagem se viesse a tornar numa ocorrência familiar, provavelmente não persistiriam por muito tempo. Por exemplo, suponha que o João sente que já não é um indivíduo único, ou que o seu futuro está limitado, dado ser um clone de outra pessoa. A Maria também pode ser um clone de alguém, e pode mostrar ao João quão diferente é da pessoa de quem é geneticamente idêntica, e que não se sente limitada com a forma como esta vive a sua vida. Continuará o João a persistir na sua crença irracional? Parece pouco provável. Se sim, nenhuma perturbação produzida persistirá por um longo período de tempo.
Uma quarta objecção dirige-se não à clonagem de pessoas em geral, mas a certos casos, como o dos pais que clonam uma criança que está a sofrer de uma condição que ameaça a sua vida, para produzir uma outra que seja capaz de assegurar a vida da criança ameaçada. A ideia central desta objecção implica a incapacidade de ver os indivíduos como fins em si mesmo. Por isso, Philip Kitcher, ao referir-se a estes casos, diz que “persiste uma preocupação real”, e depois pergunta se tais cenários “podem ser reconciliados com o imperativo kantiano de tratar a humanidade, na tua própria pessoa ou em qualquer outra, nunca somente como mero meio, mas sempre também como fim”.10
O que dizer relativamente a esta objecção? Pode ser importante ser explícito sobre os sacrifícios que a criança que está a ser produzida terá de fazer pelo seu irmão ou irmã. Quando apresentei este tipo de caso em “Clonar para salvar vidas”, defendi que o que estava em causa era um transplante de medula óssea. Kitcher defende, na sua formulação, que será um transplante de rim. Penso que é possível assumir posições diferentes relativamente aos dois casos, dado que, na doação de rim, ao contrário da doação de medula óssea, o dador está a fazer um sacrifício que, no futuro, poderá ter consequências desagradáveis para ele.
Para evitar este facto complexo, concentremo-nos então no caso da medula óssea. Será que haveria nesse caso uma violação do imperativo kantiano? Até pode haver, mas só se os pais abandonassem ou não se preocupassem com a criança depois de esta ter doado medula para salvar a vida do outro filho. Mas, seguramente, esta seria uma ocorrência pouco provável. Afinal, a história da espécie humana é sobretudo a história de filhos não planeados, frequentemente nascidos em situações pouco favoráveis para os pais, e, no entanto, essas crianças têm sido profundamente amadas por eles.
Em resumo, embora este seja um tipo de caso em que, por hipótese, os pais decidem ter um filho com um objectivo que nada tem que ver com o bem-estar dessa criança, isso não é razão para supor que depois tratariam o seu filho como um mero meio, e não como um fim em si. Pelo contrário, há de facto, seguramente, boas razões para pensar que tal criança seria criada com o mesmo amor que a primeira.
A objecção final que vou considerar também foi apresentada por Philip Kitcher, e é a seguinte: “Se a clonagem de seres humanos é realizada com a esperança de gerar um tipo particular de pessoa, então a clonagem é moralmente repugnante. A repugnância surge não porque a clonagem envolve soldadura biológica, mas porque interfere com a autonomia humana”.11
Esta objecção não se aplica a todos os casos que apresentei em “Considerações para defender a clonagem de pessoas”, nem àquelas em que a clonagem de uma pessoa estaria justificada. Todavia, aplica-se a muitos casos. Primeiro, note-se que nos casos em que o objectivo é produzir “um tipo particular de pessoa”, o que se pretende é apenas uma pessoa que tenha certas potencialidades. Os pais podem, por exemplo, querer um filho que seja capaz de valorizar desafios intelectuais. A posse de capacidades relevantes não obriga que a criança gaste a totalidade da sua vida empenhada em desafios intelectuais, pelo que é difícil ver em que medida a clonagem com este fim possa interferir com a autonomia humana.
Segundo, considere-se os casos em que o objectivo não é produzir uma pessoa que venha a ser capaz de realizar bastantes coisas, mas um indivíduo predisposto em certas direcções. Talvez fosse este tipo de casos que Kitcher tinha em mente quando falou em interferir com a autonomia humana. Mas será de facto moralmente problemático tentar criar pessoas predispostas para certas direcções e não outras? Para responder a esta questão, é necessário considerar casos concretos, como aqueles que referi. Por exemplo, é moralmente errado tentar produzir, através da clonagem, indivíduos que venham a ter predisposição, devido à sua caracterização genética, para não sofrer de condições que pudessem causar dor considerável, como artrite ou outras doenças ameaçadoras da vida como o cancro, a pressão arterial elevada e ataques cardíacos? Ou tentar produzir indivíduos que terão um temperamento alegre, ou que não tenham predisposição para a depressão, a ansiedade, a esquizofrenia ou a doença de Alzheimer?
Parece pouco provável que Kitcher, ou outros, queira dizer que a tentativa de produzir indivíduos que estejam constitutivamente predispostos das formas que referi seja um caso de interferência na autonomia humana. Mas quais serão então aqueles traços cuja tentativa de criar uma pessoa com eles seria um exemplo de interferência na autonomia humana? Não será que Kitcher, quando está a falar sobre a criação de um tipo particular de pessoa, esteja afinal a pensar não só nas propriedades que essa pessoa terá, mas, de forma mais restrita, em coisas como traços de personalidade, ou traços de carácter, ou na posse de certos interesses? Mas podemos perguntar, uma vez mais, se há alguma coisa de moralmente problemático na tentativa de criar pessoas com essas propriedades. Alguns traços de personalidade são desejáveis, e os pais habitualmente encorajam os seus filhos a desenvolvê-los. Alguns traços de carácter são virtudes, outros são vícios, e tanto os pais como a sociedade procuram encorajar a aquisição dos primeiros. Finalmente, muitos interesses, tal como a música, a arte, a matemática, a ciência, os jogos, a actividade física, podem acrescentar bastante à vida de uma pessoa, e mais uma vez, os pais habitualmente expõe os seus filhos a actividades relevantes, e ajudam-nos a alcançar níveis de proficiência que lhes permita valorizar essas actividades.
O resultado é que se a clonagem que procura produzir pessoas que mais provavelmente terão diversos traços de personalidade, ou de carácter, ou que mais provavelmente terão certos interesses, será errada por se tratar de casos de interferência na autonomia pessoal, então as práticas educativas de quase todos os pais seriam condenadas precisamente pelas mesmas razões. Mas esta tese é, segura e claramente, contra-intuitiva.
Além disso, contudo, o apelo às nossas intuições pode não ser aqui suficiente. O mesmo acontece com muitas teorias morais abrangentes. Suponha-se, por exemplo, que estamos novamente por detrás do véu de ignorância de Rawls, e que estamos a decidir entre sociedades que diferem acerca do modo certo de educar os filhos. Seria racional escolher uma sociedade em que os pais não tentam encorajar os filhos a desenvolver traços de personalidade que contribuiriam para a sua felicidade? Ou uma sociedade em que os pais não procurem inculcar nos filhos uma disposição para agir de uma forma que seja moralmente correcta? Ou em que os pais não procurem desenvolver diversos interesses nos seus filhos? Defendo que é difícil ver em que medida tal escolha seria racional, dado que estaríamos a optar, parece, por uma sociedade em que teríamos provavelmente uma vida que, em média, mereceria menos ser vivida.
Assim, ao contrário do que Kitcher defendeu, concluo que não é verdade que a maior parte dos cenários de clonagem são moralmente repugnantes, e que, em particular, nada há, em geral, de moralmente problemático em visar criar uma criança com atributos específicos.
Distingui, neste ensaio, entre dois casos bem diferentes que envolvem a clonagem de seres humanos — um que procura produzir organismos humanos sem mente para que sirvam de banco de órgãos para as pessoas clonadas, e outro que procura criar pessoas. Considerado o primeiro, as objecções que se podem apresentar são as mesmas que se podem levantar ao aborto, e, por razões que referi brevemente, essas objecções não são sólidas.
Um conjunto de objecções bem diferente surge no caso da clonagem cujo objectivo é criar pessoas. Tendo em conta o segundo tipo de clonagem, defendi que é importante distinguir se tal clonagem é, em princípio, moralmente aceitável, e se é aceitável hoje. Relativamente à última questão, defendi que o uso actual da clonagem para produzir pessoas seria moralmente problemático. Ao contrário, enfrentar a questão de saber se tal clonagem é em princípio moralmente aceitável, defendi, primeiro, que não é intrinsecamente má; segundo, que há um conjunto de razões que tornam a clonagem de pessoas justificável; e, terceiro, que as objecções levantadas à clonagem não são sustentáveis.
Em síntese, a minha conclusão geral é que a clonagem de seres humanos, tanto para produzir bancos de órgãos sem mente, como para produzir pessoas, é moralmente aceitável e, em princípio, potencialmente benéfica para a sociedade.