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Crítica
7 de Junho de 2020   Ética

Ética de pandemias

A favor de investigações arriscadas
Richard Yetter Chappell e Peter Singer
Tradução de Rosa Costa e José Oliveira

Há muita coisa que não sabemos sobre a COVID–19. Quanto mais tempo demorarmos a descobri-lo, mais vidas se irão perder. Neste artigo, iremos defender um princípio de paridade de risco: se é permissível expor alguns membros da sociedade (por exemplo, trabalhadores da saúde ou os que são economicamente vulneráveis) a um certo nível de risco ex ante, a fim de minimizar os danos gerais do vírus, então é permissível expor voluntários totalmente informados a um nível de risco comparável no contexto de investigações promissoras sobre o vírus. Aplicamos este princípio a três exemplos de investigações arriscadas: omitir testes em animais para tratamentos promissores, testes com risco humano para acelerar o desenvolvimento de vacinas e infecção controlada por doses diminutas ou “variolação”. Concluímos que, se os voluntários, plenamente informados sobre os riscos, estão dispostos a ajudar a combater a pandemia, colaborando com investigações promissoras, existem fortes razões morais para aceitarmos com gratidão a sua ajuda. Ao recusá-la estaríamos implicitamente a sujeitar outras pessoas a riscos ainda maiores.

A pandemia da COVID–19 veio questionar os pressupostos morais comuns. As restrições à liberdade de movimentos e de associação, até a certo ponto seriam impensáveis anteriormente nas democracias liberais, agora são amplamente aceites como necessárias. Esta é uma revisão significativa da ética que norteia a nossa vida quotidiana. Em contraste, poucos foram aqueles que demonstraram tanta predisposição para repensar os pressupostos morais que norteiam a nossa investigação de possíveis soluções para a pandemia. Quando há tanto em jogo, a complacência e a inércia moral custam vidas.

Neste artigo, defenderemos um princípio de paridade de risco: se é permissível expor alguns membros da sociedade (por exemplo, trabalhadores da saúde ou os que são economicamente vulneráveis) a um certo nível de risco ex ante, a fim de minimizar os danos gerais do vírus, então é permissível expor voluntários totalmente informados a um nível de risco comparável no contexto de investigações promissoras sobre o vírus. Em seguida, aplicamos esse princípio a três exemplos de investigações arriscadas: omitir testes em animais para tratamentos promissores, testes de risco humano para acelerar o desenvolvimento de vacinas e infecção controlada por doses diminutas ou “variolação”.

O princípio da paridade de risco

A ética da investigação normalmente proíbe a exposição de participantes humanos em investigações com riscos significativos. O objectivo predominante é impedir a exploração por parte de investigadores cujos interesses possam não coincidir com os interesses individuais de cada paciente ou voluntário. O artigo 8 da Declaração de Helsínquia (Associação Médica Mundial, 2013) diz:

Embora o objectivo principal da investigação médica seja gerar novo conhecimento, essa finalidade nunca deve prevalecer sobre os direitos e interesses individuais dos participantes na investigação.

Concordamos que os direitos dos participantes não devem ser violados, mas sugerimos que os “interesses” dos participantes devem ser compreendidos de uma maneira ampla para incluir qualquer interesse altruísta que estes possam ter em ajudar a sociedade a combater a pandemia.

Numa pandemia, todos enfrentamos riscos elevados. Como resultado, restrições a investigações promissoras (para lá da condição básica de consentimento informado, confirmado através da aprovação de uma comissão de ética) podem facilmente ser contraproducentes. O objectivo predominante deve ser evitar danos potencialmente catastróficos.

Quando os riscos graves são generalizados, é necessário o cuidado para garantir que, ao proteger-se os indivíduos contra o risco de serem explorados pelos investigadores, não condenemos implicitamente todos – incluindo aqueles que estamos a proteger – aos riscos muito maiores que resultariam da continuação da propagação da pandemia, sem o escrutínio do conhecimento que poderíamos ter obtido com investigações que usassem voluntários informados.

Não estamos a sugerir um enfraquecimento do requisito básico que os investigadores médicos devem ser escrupulosos em obter, ou seja, o consentimento informado dos participantes da investigação. Exigir o consentimento informado ajuda bastante a prevenir ou a mitigar os maiores riscos de investigações antiéticas e abusivas. Exigir o consentimento informado seria o suficiente para evitar as grandes atrocidades da investigação médica do século XX, incluindo as que foram realizadas por investigadores nazis e japoneses em prisioneiros, o estudo da sífilis de Tuskegee nos Estados Unidos e a “Unfortunate Experiment” [“Experiência Lamentável”] na Nova Zelândia (Paul e Brooks, 2015). O escrutínio de uma comissão de ética da investigação pode fornecer uma supervisão complementar. Mas essas comissões devem ter em mente o imenso risco para pessoas inocentes caso impeçam investigações pandémicas promissoras, em contraste com os benefícios morais rapidamente decrescentes de outras formalidades de mitigação de riscos para além do consentimento informado. Numa pandemia, apenas as razões morais mais fortes podem justificar a prevenção ou o atraso da investigação que promete ajudar a sociedade a mitigar os danos catastróficos.

Muitos indivíduos altruístas e com espírito cívico querem desempenhar o seu papel na superação da pandemia ou, pelo menos, na redução dos enormes danos que está a causar na nossa sociedade. Isso também ficou evidente durante a crise do Ébola. Alguns minutos a seguir ao anúncio de um centro de saúde canadiano, “os telefones começaram a tocar e começaram a chegar e-mails de pessoas que queriam… ser injectadas com uma vacina experimental que poderia causar dores e febre – mas que poderia proteger contra o vírus do Ébola” (Tangwa et al., 2018). O altruísmo e o espírito cívico eram particularmente evidentes, pois não havia risco de se contrair o vírus no Canadá.

Para desempenhar o seu papel na luta contra a COVID–19, alguns prestam serviço como profissionais de saúde ou outros como trabalhadores essenciais, resultando num alto risco de exposição ao vírus. Outros ficam em casa, sofrendo custos sociais e económicos para diminuir a propagação da pandemia. Ao considerar esses vários riscos e custos, também é importante observar que nem todos são escolhidos livremente. Muitas pessoas que pagam esses custos fazem-no contra a sua vontade, coagidas pelo seu empregador ou pelo Estado, de modo a constituir a totalidade do custo moral da situação.

Compare-se isto com a situação em que voluntários totalmente informados ajudam a combater a pandemia, participando em investigações promissoras (mas arriscadas). Muitas vezes, essa investigação é impedida com o argumento de que “levanta questões éticas”. É claro que isso levanta questões éticas. Mas o mesmo acontece com a desaceleração das investigações promissoras, que estende a todos os custos morais esperados da pandemia. Quanto mais tempo for necessário para encontrar um meio eficaz de impedir o vírus de matar pessoas ou de as tornar gravemente doentes, mais mortes haverá, mais pessoas haverá que serão forçadas à pobreza extrema e mais indivíduos coagidos irão sofrer custos, que estes nunca consentiram. Em vez disso, será que deveríamos permitir que os participantes da investigação assumam voluntariamente um nível comparável de risco ex ante,1 a fim de ajudar a aliviar os problemas de um grande número de outras pessoas? Mesmo quem não é utilitarista deve responder afirmativamente a esta pergunta.

O princípio (neutro em teoria) da paridade de risco diz-nos que os riscos em que se incorre no curso da investigação médica não são intrinsecamente mais problemáticos moralmente do que os riscos que surgem noutros contextos. Não há base racional para permitir que os profissionais de saúde e outros sejam expostos a altos riscos e depois se recuse a permitir que os participantes da investigação assumam voluntariamente níveis comparáveis ​​de risco (para benefício comparável ou maior). A cogência de se defender os riscos de investigação comparando-os com actividades não relacionadas com a investigação também é sugerida por Miller e Joffe (2009) e London (2006).

Dados os imensos e contínuos danos globais causados pela pandemia, acelerar as investigações promissoras tem imenso valor esperado. E como os custos suportados pelos voluntários informados são consensuais, em contraste com muitos dos custos impostos a outros na sociedade, importantes valores não utilitaristas, como o respeito pela autonomia (Macklin, 2003), também são mais bem servidos ao permitir (e de facto, ao encorajar) esse tipo de investigação.

Grande parte do discurso público em torno da ética da investigação pandémica revela uma falha implícita na compreensão desse princípio de paridade de risco. Por exemplo, Paul Duprex, Director do Centro de Investigação de Vacinas da Universidade de Pittsburgh, alertou contra investigações arriscadas no contexto actual, insistindo que devemos “estar absolutamente certos de que não faremos algo para o bem maior que seja altamente prejudicial para este indivíduo [participante voluntário da investigação]” (Morning Ireland, 2020, aos 32 minutos e 15 segundos). O comentário foi feito numa entrevista à Rádio Nacional Irlandesa. Lamentavelmente, o entrevistador não o pressionou sobre a razão pela qual não nos devemos preocupar igualmente com outras pessoas, para quem a investigação adiada no contexto da pandemia se mostraria ainda mais prejudicial.

Quando milhares de pessoas morrem todos os dias e milhões estão a sofrer danos sociais e económicos contínuos, qualquer atraso em investigações promissoras é claramente desastroso. Esperemos que os defensores da ética da investigação convencional estejam à altura de enfrentar este desafio. Para reiterar, não se trata de sacrificar premeditadamente alguns indivíduos para o bem maior de muitos. Não é uma concessão utilitarista grosseira que negligencia ou viola os direitos de qualquer pessoa. Trata-se de permitir que adultos competentes escolham agir de maneira altruísta no contexto da investigação médica para lidar com a pandemia, assim como permitimos (ou pior: exigimos) que outros ajam de maneira altruísta em contextos que não são de investigação enquanto a pandemia está a decorrer.

Um argumento interessante que Duprex apresenta (Morning Ireland, 2020, aos 31 minutos e 47 segundos) envolve uma espécie de cepticismo relativamente à possibilidade do consentimento informado, dado o pouco que sabemos sobre a COVID–19: “Será que os [participantes da investigação] estão totalmente informados, quando realmente apenas temos uma pequena quantidade da informação?” O pressuposto implícito, ao que parece, é que não podemos dar um consentimento informado para assumir um risco, sem saber exactamente qual é o risco (idealmente, talvez, ao conhecer as hipóteses objectivas de cada resultado possível). Mas esse pressuposto é exagerado. O que plausivelmente mais importa para o consentimento informado é que os participantes entendam e aceitem quaisquer riscos conhecidos e desconhecidos que se apliquem à luz da nossa situação epistémica actual.2 Quando os próprios investigadores estão altamente inseguros acerca do resultado de um procedimento e que vulnerabilidades ocultas podem resultar se um participante aparentemente saudável sofrer danos inesperados, precisam comunicar claramente essa incerteza. A maioria dos candidatos, ao enfrentar riscos tão incertos, escolheria razoavelmente abster-se de participar do teste, e essa decisão certamente deve ser respeitada. Mas outros podem razoavelmente optar por seguir em frente, aceitando os riscos (conhecidos e desconhecidos), a fim de ajudar a combater a pandemia. Essa escolha também deve ser respeitada.

Aplicação do princípio da paridade de risco à investigação COVID–19 – três exemplos

Embora, em última análise, seja da responsabilidade dos investigadores médicos identificar as linhas de investigação mais promissoras, podemos indicar aqui três domínios alargados nos quais uma tolerância maior face a investigações arriscadas (de acordo com o princípio da paridade de risco) plausivelmente poderia salvar vidas durante a pandemia.

  1. Os padrões convencionais exigem que os novos medicamentos sejam testados em animais antes de serem permitidos ensaios clínicos em seres humanos. Para a COVID–19, sugerimos que tratamentos suficientemente promissores (e candidatas a vacinas) devam saltar para a fase de ensaios clínicos em seres humanos o mais rápido que for razoavelmente possível, ignorando o longo período habitual de testes em animais. Essa medida já foi tomada num teste de vacina em Seattle, que atraiu consideráveis ​​críticas de especialistas em ética da investigação.
    Um ensaio clínico para uma vacina experimental contra o coronavírus começou a recrutar participantes em Seattle, mas os investigadores não mostraram primeiro que a vacina tivesse desencadeado uma resposta imune em animais, como normalmente se exige. (Lanese, 2020)

Existe um precedente para uma iniciativa deste género. Em 1986, quando a azidotimidina (AZT) mostrou os primeiros resultados promissores no tratamento da SIDA, os pacientes exigiram que o medicamento fosse disponibilizado sem passar por testes em animais (Park, 2017). A Food and Drug Administration licenciou-o, o que salvou muitas vidas. A SIDA teve uma taxa de mortalidade muito maior do que a da COVID–19, mas, mesmo assim, se informarmos totalmente os pacientes da COVID–19 sobre os riscos de participar num estudo experimental de tratamento, estes podem optar razoavelmente por correr esse risco. Quando consideramos os benefícios humanitários mais amplos de confirmar a eficácia de um tratamento (ou vacina) muito mais cedo do que seria possível, sem mencionar a redução do sofrimento animal envolvido, há um forte argumento moral para permitir que os voluntários façam essa escolha.

  1. Argumentos semelhantes fundamentam a possibilidade de testes com risco humano acelerarem o desenvolvimento de uma vacina (Eyal et al., 2020). De acordo com a Organização Mundial de Saúde (Organização Mundial de Saúde, 2016):

    Ensaios com risco humano são aqueles em que os participantes são colocados em risco intencionalmente (independentemente de terem sido vacinados) com um organismo de doença infecciosa. Este organismo de risco pode estar próximo do tipo selvagem e patogénico, adaptado e/ou atenuado do tipo selvagem com menos ou nenhuma patogenicidade, ou modificado geneticamente de alguma maneira.

Normalmente, testar uma vacina candidata significa esperar meses para ver se os participantes da investigação injectados são menos propensos à infecção. A exposição deliberada de voluntários vacinados ao vírus pode produzir resultados muito mais rapidamente. Surpreendentemente, não faltam voluntários dispostos a passar por esse tipo de teste. Mais de 14 000 voluntários de mais de 100 países já se inscreveram para participar (Ramgopal, 2020).

  1. Finalmente, considere a investigação sobre a infecção voluntária controlada em baixa dose, ou "variolação", amplamente usada para inocular contra a varíola antes da descoberta da vacinação (Boylston, 2012). Os investigadores da Universidade de Princeton, Joshua Rabinowitz e Caroline Bartman (2020), enfatizaram a importância da dose viral: as pessoas que recebem uma dose baixa de um vírus têm maior probabilidade de recuperar do que aquelas que recebem uma dose alta, e isso também vale para os coronavírus. Robin Hanson (2020) observa que, historicamente, a variolação reduziu a mortalidade por infecções por factores que variam de 3 a 30. Tudo isto parece sugerir um forte caso prima facie para investigações exploratórias sobre a variolação SARS-CoV-2 como um possível substituto da vacina.

Poder-se-á objectar que seria antiético expor deliberadamente voluntários a um vírus potencialmente letal. Mas será que essa suposição realmente faz sentido no nosso contexto actual? A seriedade da pandemia do coronavírus funciona nos dois sentidos: maior risco da infecção inicial em baixas doses, mas maiores benefícios se isso proteger os voluntários. Por exemplo, se pudermos obter provas sólidas de que receber uma dose baixa do vírus (variolação) leva a um caso leve de COVID–19 e que esses casos leves depois trazem imunidade a maior exposição ao vírus, teríamos encontrado um meio de salvar um número considerável de vidas – e milhões de meios de subsistência – na ausência de uma vacina. Mesmo os cientistas mais optimistas assumem que o desenvolvimento da vacina COVID–19 levará pelo menos 12 meses (Deutsch, 2020) e não há garantia de que esse optimismo seja justificado. Parece, portanto, prudente e ético investigar alternativas, convidando jovens adultos saudáveis para que se voluntariem para receber uma dose baixa do vírus, seguida de quarentena e observação médica.

De facto, alguns indivíduos já procuraram deliberadamente infectar-se por meio de “festas de coronavírus” não controladas, apesar dos especialistas médicos insistirem para que não o façam (Bauer, 2020). Em vez disso, seria melhor para todos se estes indivíduos tivessem a oportunidade de se voluntariar para receber uma dose baixa do vírus como parte de um estudo cuidadosamente supervisionado. Isso seria mais seguro para os participantes do que uma infecção não controlada, e o conhecimento que iríamos obter com esse teste poderia levar-nos ao fim da pandemia mais cedo.

Há muita coisa que não sabemos sobre a COVID–19. Quanto mais tempo demorarmos para descobrir, mais vidas se irão perder. Se os voluntários, plenamente informados sobre os riscos, estão dispostos a ajudar a combater a pandemia, colaborando com investigações promissoras, existem fortes razões morais para aceitarmos com gratidão a sua ajuda. Ao recusá-la estaríamos implicitamente a sujeitar outras pessoas a riscos ainda maiores.

Richard Yetter Chappell e Peter Singer
Research Ethics, DOI: 10.1177/1747016120931920, Junho de 2020.

Agradecimentos

Agradecimentos especiais à Professora Doris Schroeder pela contribuição extensa e muito útil. Agradecemos também a outro revisor. Algumas passagens deste ensaio apareceram anteriormente em Chappell e Singer (2020). Agradecemos a Luke Chappell, Nathan Chappell, Kenneth Goodman, David Killoren e Helen Yetter-Chappell pelos úteis comentários aos rascunhos desse trabalho anterior.

Referências

Notas

  1. Com base em previsões e não em resultados reais.↩︎
  2. Também é importante notar que as taxas de mortalidade por COVID–19 variam aproximadamente entre “0,2% na Alemanha e 7,7% na Itália” (Roser et al., 2020). Portanto, pode-se argumentar que os riscos assumidos pelos voluntários de serem infectados pelo vírus são pelo menos aproximadamente especificados.↩︎
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