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Crítica
25 de Dezembro de 2010   Estética

Uma reformulação da pergunta “É possível definir o conceito de arte?”

Pedro Merlussi

Confesso que a pergunta “É possível definir arte?” deixa-me perplexo.1 Porém, o motivo pelo qual fico perplexo é provavelmente diferente do motivo pelo qual os “especialistas” em filosofia da arte também o ficam. Isto porque a resposta a esta pergunta soa-me óbvia. Claro que é possível definir arte. Podemos definir arte ostensivamente. Eu poderia apontar para alguns objetos, como alguns quadros de Leonardo da Vinci, e dizer “Olhe, esses quadros são obras de arte”. Dificilmente alguém colocaria em disputa que a Mona Lisa seja uma obra de arte. E esta é uma definição correta do conceito de arte, trata-se de uma definição implícita ostensiva deste conceito. Não há algo de errado em oferecer este tipo de definição. Aliás, cotidianamente oferecemos muitas definições implícitas ostensivas e estas são importantes. Ensina-se o conceito de cor às crianças, por exemplo, apontando para algumas cores, como o azul ou o amarelo, e muitas outras. Se não há algo de errado em definir o conceito de cor deste modo (e muitos outros conceitos), então não há algo de errado em definir o conceito de arte do mesmo modo. Como não há algo de errado em definir o conceito de cor ostensivamente, segue-se que não há algo de errado em definir o conceito de arte ostensivamente. Portanto, eu defini o conceito de arte por meio de uma definição implícita ostensiva e isto foi muito fácil.

No entanto, poderiam dizer que quando perguntamos se é possível definir arte, na verdade perguntamos se é possível oferecer uma definição explícita do conceito arte, ou seja, uma definição por meio de condições necessárias e suficientes, como parece sugerir Noeli Ramme2 em seu artigo “É Possível Definir “Arte”?” (p. 199). Eu diria que, mesmo assim, a resposta à pergunta “É possível definir arte explicitamente?” também é muito fácil de ser respondida. Sim, é possível definir arte explicitamente. Eis uma definição: algo é uma obra de arte se, e somente se, é uma latinha com meleca. Esta é uma definição explícita do conceito arte. Poderiam objetar que minha definição é falsa, pois há muitas obras de arte que não são uma latinha com meleca, e é presumível que uma latinha com meleca não seja uma obra de arte. Eu realmente concordo com a objeção, mas mesmo assim diria que defini arte explicitamente. Claro, é uma definição explícita falsa, mas, apesar de tudo, é uma definição explícita. O verbo “definir” não é factivo. Muitas definições explícitas de arte são falsas, mas apesar disso são definições. Portanto, eu defini arte explicitamente e isto novamente foi muito fácil.3

Provavelmente, alguém diria que a pergunta interessante a se fazer é se é possível oferecer uma definição explícita verdadeira do conceito arte, o que parece uma pergunta muito mais difícil de ser respondida. Parece, mas não é. Curiosamente eu diria que é possível oferecer uma definição explícita verdadeira do conceito arte. E há algo mais a dizer: é possível oferecer uma definição analítica (o tipo mais forte das definições explícitas) do conceito de arte. Eis a definição: algo é uma obra de arte se, e somente se, é uma obra de arte. Esta é uma definição explícita verdadeira do conceito arte, e, de fato, necessariamente verdadeira. Entretanto, há algo de errado com esta definição. E de fato há, pois é gratuita: trata-se de uma definição malsucedida. Esta definição é malsucedida porque uma de nossas motivações ao definir arte é descobrir uma propriedade não trivial que apenas as obras de arte instanciam. Como se pode observar, a propriedade expressa pelo predicado “...é uma obra de arte” é trivial. Esta definição gratuita não apresenta a seguinte característica:

Adequação motivacional: uma definição é motivacionalmente adequada quando satisfaz os interesses subjacentes a uma prática bem estabelecida em definir um conceito. Por exemplo, “algo é uma obra de arte se, e só se, é uma obra de arte” não satisfaz pelo menos um dos interesses em definir arte: não esclarece a propriedade não trivial que só as obras de arte instanciam (cf. Kingsbury e McKeown 2010).

Portanto, temos agora uma formulação mais precisa do problema de definir arte. A pergunta correta a ser feita é a seguinte: É possível oferecer uma definição explícita bem-sucedida do conceito arte? A partir da década de cinqüenta do último século, sobretudo com a publicação do artigo “O Papel da Teoria na Estética”, de Morris Weitz, a idéia de que o conceito arte não pode ser definido explicitamente de forma bem-sucedida desempenhou um papel importante nas discussões em filosofia da arte. Weitz formulou um importante argumento, intitulado “argumento do conceito aberto”, a fim de nos persuadir a favor da idéia de que qualquer definição explícita do conceito arte não será bem-sucedida. Neste ensaio sustento que não há boas razões para pensar que arte é um conceito que não pode ser definido explicitamente e de maneira bem-sucedida. Começarei por mostrar que o argumento do conceito aberto de Weitz não é cogente.

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Dúvidas?

O argumento do conceito aberto

Gostaria antes de apresentar mais uma característica que as definições explícitas bem-sucedidas têm de ter: a adequação extensional.

Adequação extensional: uma definição é extensionalmente adequada quando a extensão do conceito a ser definido (defiendum) é equivalente à extensão daquilo que define este conceito (definiens).

A extensão de um conceito é as coisas às quais o conceito se aplica. Por exemplo, a extensão de solteiro é os homens solteiros, a extensão de vermelho é as coisas vermelhas. Um conceito é extensionalmente equivalente a outro quando ambos têm a mesma extensão: solteiro e homem não casado são conceitos que têm a mesma extensão, pois as coisas às quais o primeiro conceito se aplica são as mesmas às quais o segundo se aplica. Weitz procurou mostrar que nenhuma definição explícita do conceito de arte será bem-sucedida porque é impossível oferecer um conceito que seja extensionalmente equivalente ao conceito arte. A idéia de Weitz é que os artistas podem sempre criar novas obras e que, portanto, arte é um conceito tal que tem de ser aberto à permanente possibilidade de mudança radical, expansão e inovação: ou seja, arte é um conceito aberto. Eis um exemplo da idéia de Weitz: quando definimos arte como imitação da realidade, temos a pretensão de que o conceito arte seja extensionalmente equivalente ao conceito imitação da realidade. No entanto, dado o caráter aberto do conceito arte, os artistas podem criar uma obra que não imite a realidade, de modo que caberá a nós decidir se esta obra pertencerá à extensão do conceito. Se decidirmos que esta obra consiste numa obra artística, tornaremos a definição “algo é arte se, e só se, imita a realidade” extensionalmente inadequada, falhando como definição explícita bem-sucedida.

Poder-se-ia objetar o seguinte: mesmo admitindo que arte seja um conceito aberto, não se pode inferir que não seja possível defini-lo explicitamente e de maneira bem-sucedida. Isto porque podemos insistir, por exemplo, que aquilo que não imita a realidade não é uma obra de arte. Neste sentido, podemos fazer o que Weitz chama de fechar o conceito, ao mesmo tempo que admitimos que até agora o conceito era aberto. Por exemplo, na definição “algo é arte se, e só se, imita a realidade” podemos desconsiderar qualquer obra que não imite a realidade como artística, pois algo é de fato uma obra de arte se imita a realidade. Ou seja, podemos definir arte como imitação da realidade e excluir qualquer obra que não imite a realidade como artística.

Porém, Weitz tem uma resposta a esta objeção que parece engenhosa. Consiste em mostrar que, se supusermos que podemos rejeitar certos objetos como artísticos, fechando o conceito, incorreremos num absurdo. O filósofo sustenta que esta manobra não será bem-sucedida pelo fato de limitar a criatividade nas artes. A arte pode se expandir, e portanto pode ser aberta à permanente possibilidade de mudança radical, expansão e inovação. Se definirmos o conceito de arte explicitamente (por meio de condições necessárias e suficientes), limitaremos a possibilidade de inovação na própria arte, o que seria desaconselhável. Deste modo, arte é um conceito aberto e, como tal, não pode ser definido explicitamente de maneira bem-sucedida.

Porém, é difícil conceder que este seja um argumento cogente. Penso que o problema esteja na seguinte condicional: se definirmos o conceito de arte explicitamente, então limitaremos a possibilidade de inovação na própria arte. Para início de conversa, é conceitualmente possível definir arte sem limitar a permanente possibilidade de mudança, expansão e inovação. Não precisamos mostrar que a condicional é falsa (ou seja, mostrar que há uma definição explícita de arte que não limite a criatividade dos artistas na arte) para negá-la; precisamos apenas mostrar que é conceitualmente possível existir uma definição explícita do conceito de arte que não limite a criatividade. Por exemplo, para negar a condicional “Se Deus não existe, então tudo é permitido”, não precisamos provar que Deus não existe e que algumas coisas não são permitidas, mas apenas que é conceitualmente possível Deus não existir apesar de algumas coisas não serem permitidas. Ocorre o mesmo com a condicional do argumento de Weitz: podemos negá-la porque é conceitualmente possível existir uma definição explícita bem-sucedida que não limite a criatividade dos artistas. Portanto, o argumento não funciona, em primeiro lugar, porque pelo menos em princípio é conceitualmente possível oferecer uma definição explícita que não limite a criatividade dos artistas na própria arte (mesmo que seja difícil oferecer tal definição).

Em segundo lugar, há razões para pensar que a condicional de Weitz seja falsa. Existem definições que conseguem explicar por que obras como A Fonte de Duchamp ou a Caixa de Brillo de Warhol são obras de arte. Por exemplo, a teoria institucional da arte faz este trabalho.4 Obras como as mencionadas são indiscerníveis de suas contrapartes do mundo real. Uma definição que consegue acomodar estas obras permite que qualquer coisa possa ser uma obra de arte, o que não excluirá a criatividade na arte. Portanto, a teoria institucional da arte oferece uma definição explícita de arte que não limita a criatividade dos artistas na arte. Não quero dizer com isto que a teoria institucional está correta, mas apenas mostrar um caso em que uma definição de arte não impede a criatividade dos artistas na própria arte. Deste modo, temos um bom contra-exemplo para mostrar que não há razões para pensarmos que uma definição explícita limita a criatividade dos artistas na arte, e, portanto, o argumento do conceito aberto não é cogente. Infelizmente, Weitz não viveu o suficiente para conhecer a definição da teoria institucional da arte, e assim não pôde ver que alguém teve a capacidade de imaginar algo que ele julgava impossível.

No entanto, um defensor do argumento de Weitz poderia objetar que o argumento do conceito aberto não precisa da premissa segundo a qual uma definição explícita bem-sucedida limitará a criatividade na arte. Ele poderia dizer que um conceito aberto, por definição, é um conceito que não pode ser definido de maneira bem-sucedida. Como arte é um conceito aberto, segue-se que não pode ser definido de maneira bem-sucedida. Portanto, está demonstrado que arte é um conceito que não pode ser definido explicitamente e de maneira bem-sucedida.

O problema deste argumento é óbvio: afirma que um conceito aberto, por definição, é um conceito que não pode ser definido explicitamente e de maneira bem-sucedida. Mas esta noção de conceito aberto simplesmente pressupõe aquilo que quer provar: que o conceito arte não pode ser definido de maneira bem-sucedida. Neste sentido, não temos razões para pensar que arte seja um conceito aberto, pois poderíamos colocar o problema da seguinte maneira: seria arte um conceito aberto? O máximo que o defensor deste argumento poderia dizer seria “sim”, e ao interrogarmos o porquê, ele justificaria dizendo “porque sim”. Portanto, esta reformulação torna o argumento ainda pior.

O argumento do conceito aberto reconsiderado

Apresentarei agora uma formulação do argumento do conceito aberto que não depende da premissa de que uma definição explícita de arte limita a criatividade dos artistas na arte, pois, como procurei mostrar, esta premissa é demasiado implausível. A idéia central desta nova formulação do argumento do conceito aberto é mostrar que não se pode oferecer uma definição explícita bem-sucedida de arte porque nenhuma definição de arte será motivacionalmente adequada: não há propriedade não trivial que só as obras de arte instanciam. Para isto, precisamos de uma nova definição de conceito aberto. Eis uma sugestão: um conceito aberto é um conceito cuja extensão pode mudar arbitrária e significativamente, pois o que conta ou não como arte depende de nossa decisão. O conceito de arte é tal que permite que qualquer coisa possa ser arte. Isto não significa que tudo seja arte, mas que qualquer coisa pode ser uma obra de arte, dependendo de nossa decisão. Se considerarmos um conceito como água, veremos que sua extensão não muda significativamente porque não depende de nossa decisão; afinal, a extensão de água constitui uma categoria natural. Se considerarmos um conceito da matemática ou da lógica, veremos que sua extensão não muda. É por isso que podemos definir de maneira bem-sucedida conceitos como água e adição, mas não podemos definir conceitos como arte e jogo, porque a extensão destes dois conceitos não constitui uma categoria natural e porque muda significativamente.

A idéia de que o conceito arte muda significativamente pode ser ilustrada com o seguinte exemplo. Há pelo menos dois séculos, obras de arte que não tinham propriedades estéticas não eram consideradas artísticas; nenhum urinol era considerado uma obra de arte. Entretanto, hoje consideramos artísticas certas obras que presumivelmente não têm propriedades estéticas, como, por exemplo, a Caixa de Brillo de Warhol ou o urinol de Duchamp. Portanto, houve uma mudança significativa na extensão do conceito arte, pois até então nenhuma obra sem propriedades estéticas era considerada artística, o que não ocorre hoje em dia. É possível defender que estas obras não são artísticas. No entanto, é preciso apresentar argumentos para defender esta idéia. Pelo menos à primeira vista, obras como as mencionadas são obras de arte. Uma teoria que rejeite estas obras como artísticas tem de apresentar boas razões para rejeitar o seu caráter artístico. Não estou comprometido aqui com qualquer teoria acerca do que é arte e pressuporei deste modo que estas obras são obras de arte, o que parece tornar plausível a idéia de que a extensão do conceito arte pode mudar significativamente.

Vejamos então a primeira parte do argumento do conceito aberto reconsiderado.

1. Arte é um conceito aberto.
2. Se um conceito é aberto, então as coisas às quais esse conceito se aplica não constituem uma categoria natural e mudam significativamente.
3. Se as coisas que às quais um conceito se aplica instanciam uma propriedade não trivial que só elas instanciam, então a extensão deste conceito ou constitui uma categoria natural ou não muda significativamente.
Logo,
4. As obras de arte não instanciam uma propriedade não trivial que só elas instanciam.

A formulação que faço do argumento é que ele consiste numa reductio ad absurdum da tese de que é possível oferecer uma definição explícita bem-sucedida de arte. Suponhamos então que esta tese seja verdadeira:

5. É possível oferecer uma definição bem-sucedida de arte.

Afirmei anteriormente que uma definição explícita bem-sucedida tem de ser motivacionalmente adequada. E uma definição motivacionalmente adequada do conceito arte parece ter de esclarecer a propriedade não trivial que apenas as obras de arte instanciam. Temos então mais uma premissa para o argumento:

6. Se é possível oferecer uma definição bem-sucedida de arte, então as obras de arte instanciam uma propriedade não trivial que só elas instanciam.
Logo,
7. As obras de arte instanciam uma propriedade não trivial que só elas instanciam.

Mas 4 e 7 formam a seguinte contradição:

8. As obras de arte instanciam uma propriedade não trivial que só elas instanciam e as obras de arte não instanciam uma propriedade não trivial que só elas instanciam

Temos então de negar a suposição que nos levou à contradição, portanto:

9. Não é possível oferecer uma definição bem-sucedida de arte.

Analisemos a primeira parte do argumento. Um conceito aberto, por definição, é um conceito cuja extensão não constitui uma categoria natural e que muda significativamente. Portanto, a premissa 2 é verdadeira. Como a extensão de arte não constitui uma categoria natural, e como ela muda significativamente, arte é um conceito aberto, o que torna a premissa 1 verdadeira. A premissa 4 se segue de 1, 2 e 3, por modus tollens. 5 é uma suposição. A premissa 6 é plausível, pois uma definição bem-sucedida de arte tem de ser motivacionalmente adequada e, portanto, no caso do conceito arte, tem de apresentar a propriedade comum não trivial que apenas as obras de arte instanciam. 7 se segue de 5 e de 6 por modus ponens. Derivamos 8 com base em 4 e 7. Mas como 8 é uma contradição, temos de negar a suposição que a acarretou. Portanto, negamos 5, ou seja, negamos que arte seja um conceito que pode ser definido explicitamente de maneira bem-sucedida. Como este argumento é válido, temos de encontrar seu problema em alguma das premissas.

Uma possível resposta, com base em Paula Akemy (2010), consiste em mostrar que o argumento do conceito aberto faz uma confusão entre a aplicação do conceito arte (o modo como usamos este conceito) e a extensão do conceito arte. Segundo Akemy, do fato de aplicarmos o conceito arte a várias coisas, como um tubarão e um urinol, não podemos inferir que o conceito arte realmente se aplique a essas coisas. Esta manobra consistiria em extrair uma conclusão metafísica com base em um indício lingüístico. Deste modo, pode-se dizer que não há razões para pensar que o conceito arte mude significativamente e que, portanto, não temos razões para pensar que arte é um conceito aberto.

No entanto, penso que esta possível resposta não refuta o argumento tal como formulado. Em primeiro lugar, é uma verdade empírica que a extensão do conceito arte mudou significativamente. Há pelo menos dois séculos, não havia objetos artísticos que não instanciavam propriedades estéticas. No entanto, hoje em dia, objetos como o urinol de Duchamp e as caixas de Brillo de Warhol são prima facie artísticos, apesar de presumivelmente não instanciarem propriedades estéticas. Sem dúvida podemos estar enganados em considerar que estas obras sejam artísticas; contudo, para as desconsiderarmos como artísticas temos de apresentar argumentos. À primeira vista, o urinol de Duchamp e as caixas de Brillo de Warhol são verdadeiras obras de arte. Portanto, se obras como as mencionadas são artísticas (como parecem ser), houve uma mudança significativa na extensão do conceito de arte.

O segundo problema é que uma resposta com base na objeção de Akemy ao argumento de Weitz não convenceria um defensor da teoria de que o significado de um conceito está no seu uso. Isto porque a extensão é uma componente do significado. Portanto, se o significado de um conceito está no seu uso, então a extensão do conceito muda de acordo com o uso. Deste modo, filósofos como Weitz e Wittgenstein, que defendem que o significado de um conceito está no seu uso, não aceitariam esta resposta.

O problema da terceira premissa

Acredito que o problema do argumento consista na premissa 3, pois esta afirma que apenas as categorias naturais e os conceitos cuja extensão não muda significativamente instanciam propriedades individuadoras não triviais. A premissa 3 nega que a extensão de conceitos como jogo, arte, cadeira, etc., possam instanciar propriedades individuadoras não triviais, tal como água instancia a propriedade individuadora de ser H2O. À primeira vista, a premissa 3 não parece plausível, pois é conceitualmente possível que as coisas que se aplicam a conceitos como jogo, arte, etc., instanciem uma propriedade não trivial que só elas instanciam. Se a terceira premissa não for plausível, então o argumento não será cogente. Vejamos se há alguma razão para aceitar a premissa 3.

O exemplo clássico de um conceito cuja extensão não constitui uma categoria natural e que muda significativamente é o conceito jogo. Wittgenstein defendeu que os objetos que se aplicam ao conceito jogo não instanciam uma propriedade não trivial que só eles instanciam porque simplesmente não há tal propriedade. Quando olhamos para aquilo que chamamos “jogo”, afirma Wittgenstein, não encontramos uma propriedade não trivial que apenas os jogos instanciam. Se os jogos (e só eles) instanciam uma propriedade não trivial, então conseguimos encontrar esta propriedade. Mas não conseguimos encontrar a propriedade não trivial que só os jogos instanciam. Portanto, as coisas que se aplicam ao conceito jogo não instanciam uma propriedade não trivial que só elas instanciam.

A resposta óbvia ao argumento de Wittgenstein é que do fato de não conseguirmos encontrar uma propriedade não trivial que só os jogos instanciam não se segue que não haja tal propriedade. É conceitualmente possível existir uma propriedade não trivial que só os jogos instanciam e que, apesar disso, não a encontremos. Por exemplo, em virtude de nossa limitação cognitiva, talvez não se descubra uma propriedade não trivial que os jogos (e só eles) instanciam; mas disso não se segue que não exista. Os jogos podem instanciar tal propriedade apesar de ser impossível que a descubramos. A resposta ao argumento é que não há conexão conceitual entre a antecedente e a conseqüente da condicional e, portanto, o argumento não é cogente.

Além disso, Wittgenstein parece desconsiderar que artefatos (ou seja, objetos que não constituem categorias naturais) podem ter tipicamente condições de identidade funcionais. Isto quer dizer que atividades como jogos podem ser definidas em termos das suas funções. Se você não ficou convencido de que o argumento de Wittgenstein não é cogente, considere a seguinte definição de jogo em termos das suas funções, apresentada por Bernard Suits: algo é um jogo se, e só se, é uma tentativa voluntária de superar obstáculos desnecessários. Esta definição parece-me bem-sucedida. Revela a propriedade não trivial que os jogos (e só eles) instanciam, a saber, a propriedade funcional de ser uma tentativa voluntária de superar obstáculos desnecessários. O conceito de escrivaninha, por exemplo, é definido em termos das suas funções: algo é uma escrivaninha se, e só se, é um móvel utilizado para escrever ou estudar ou guardar objetos. Portanto, podemos definir o conceito de arte tal como definimos o conceito de escrivaninha ou de jogo.

Vejamos então uma refutação direta da nova versão do argumento do conceito aberto. Eis a terceira premissa: Se as coisas às quais um conceito se aplica instanciam uma propriedade não trivial que só elas instanciam, então a extensão deste conceito ou constitui uma categoria natural ou não muda significativamente.

Em primeiro lugar, vimos que não há razões para pensar que esta premissa é verdadeira. O argumento apresentado por Wittgenstein não é cogente e, portanto, não nos compele a aceitar a premissa 3. Como a premissa 3 não é plausível, segue-se que a nova versão do argumento do conceito aberto também não é cogente. Isto porque é conceitualmente possível os objetos que se aplicam a um conceito (e só eles) instanciarem uma propriedade não trivial, apesar de a extensão do conceito não constituir uma categoria natural e também mudar significativamente. Portanto, não temos de aceitar a conclusão de que arte é um conceito que não pode ser definido explicitamente e de maneira bem-sucedida. Em segundo lugar, temos um argumento para mostrar que a premissa 3 é falsa. As coisas que se aplicam ao conceito jogo, por exemplo, instanciam uma propriedade não trivial que só os jogos instanciam, a saber, a propriedade de ser uma tentativa voluntária de superar obstáculos desnecessários. Apesar disso, a extensão do conceito jogo muda significativamente e não constitui uma categoria natural. Portanto, mostramos um caso em que a antecedente é verdadeira e a conseqüente é falsa. Como há melhores razões para pensar que a premissa 3 é falsa, não temos de aceitá-la, de modo que mesmo a nova versão do argumento do conceito aberto não é cogente.

O argumento do ônus da prova

Embora o argumento do conceito aberto não funcione na primeira versão nem na nova, pode-se argumentar que o ônus da prova é de quem pensa que arte é um conceito que pode ser definido explicitamente e de modo bem-sucedido. A idéia deste argumento consiste em considerar o fato de que sabemos que o fenômeno artístico é demasiado amplo e complexo. A arte, como havíamos visto, tem de estar aberta à permanente possibilidade de mudança radical, expansão e inovação. Isto pode tornar plausível a idéia de que é impossível, afinal de contas, oferecer uma definição bem-sucedida de arte. Poderíamos assim explicar por que as principais tentativas de definir arte explicitamente não foram bem-sucedidas. À partida, poder-se-ia dizer, parece que não podemos oferecer uma definição explícita bem-sucedida de arte. Portanto, à primeira vista, não se pode oferecer tal definição do conceito arte, de modo que o ônus da prova é de quem pensa o contrário.

É comum pensar que, pelo fato de a arte estar aberta à permanente possibilidade de mudança radical, expansão e inovação, isto torna plausível a idéia de que não se pode definir arte de maneira bem-sucedida. Mas não torna. Em primeiro lugar, esta caracterização da arte faz uma confusão entre a prática da arte e a obra de arte. Sem dúvida que a prática da arte tem de estar aberta à permanente possibilidade de mudança radical, expansão e inovação. Entretanto, não faz sentido dizer que uma obra de arte particular tem de estar aberta à permanente possibilidade de mudança radical, expansão e inovação. É um erro elementar dizer que a Mona Lisa, uma obra acabada, tem de estar aberta à permanente possibilidade de mudança radical, expansão e inovação. Do mesmo modo, o urinol de Duchamp e as caixas de Brillo de Warhol são obras de arte, e seria um erro elementar dizer que estão abertas à mudança radical. Se uma definição de arte consegue acomodar obras como as supracitadas, parece que o caráter inovador da prática da arte não apresenta problema algum para uma tentativa de definir arte explicitamente. Portanto, o ônus da prova não é ao que parece de quem defende que o conceito de arte pode ser definido de maneira bem-sucedida.

Mas acredito que o ônus da prova seja do cético quanto à possibilidade de definir arte explicitamente e de maneira bem-sucedida. Pensar que arte é um conceito que não pode ser definido explicitamente e de maneira bem-sucedida consiste num obstáculo à pesquisa e ao interesse cognitivo. Isto porque ao definirmos de maneira bem-sucedida conceitos que desempenham papéis importantes, como é aparentemente o caso de conceitos como verdade, bem, conhecimento e arte, tornamos o nosso discurso muito mais claro, compreendemos melhor a natureza das coisas e, portanto, compreendemos melhor a realidade. A tentativa de fornecer definições explícitas bem-sucedidas é uma tarefa importante da filosofia e, portanto, o ônus da prova é de quem pensa que certos conceitos não podem ser definidos de maneira bem-sucedida, e não o contrário.

Poder-se-ia objetar o seguinte: embora tenhamos interesse em definir, em termos de condições necessárias e suficientes, conceitos como verdade, arte, bem, etc., e embora isto consista numa atividade cognitiva importante, tal tentativa só fará sentido se as ciências cognitivas tornarem plausível pensar que os seres humanos categorizam as coisas em termos de condições necessárias e suficientes. No entanto, poder-se-ia dizer, as ciências cognitivas apóiam a idéia de que os seres humanos em geral não categorizam as coisas em termos de condições necessárias e suficientes. Portanto, a tentativa de definir explicitamente certos conceitos é equivocada, de modo que há melhores razões para pensar que conceitos como arte não podem ser definidos de maneira bem-sucedida, e que não é uma atividade tão importante assim definir conceitos explicitamente.

Uma resposta a esta objeção consiste simplesmente em mostrar que as ciências cognitivas podem oferecer a melhor abordagem de como as pessoas em geral de fato classificam as coisas, mas não dizem qual é a classificação correta das coisas. Do hipotético fato de as pessoas tipicamente não classificarem as coisas em termos de condições necessárias e suficientes não se segue que não possamos ou devamos classificá-las desse modo. Além disso, não mostra que razões há para pensar que as classificações em termos de condições necessárias e suficientes não são corretas. Poderia ser um motivo para pensar que definir arte explicitamente e de maneira bem-sucedida é difícil; isto, contudo, é algo trivial que sabíamos desde o início.

Ser capaz de definir arte explicitamente e de maneira bem-sucedida parece de fato um desafio dos mais intrincados da filosofia. Mas não há novidade nisto. Definir de maneira bem-sucedida seja o que for de interessante é difícil mesmo. Não é de estranhar que não seja fácil definir sorvete de casquinha, por exemplo. Se nossas primeiras tentativas de definir arte explicitamente não foram bem-sucedidas, mostra pelo menos que ganhamos alguma coisa: sabemos que muitas definições são malsucedidas, o que só por si já é um grande progresso. O que nos resta é simplesmente continuar tentando definir arte.

Pedro Merlussi
Trabalho realizado no âmbito da disciplina Estética Geral ministrada no segundo semestre de 2010 na UFOP por Desidério Murcho

Notas

  1. Estou usando arte, em itálico, para falar do conceito de arte.
  2. Cf. Analytica, vol. 13 n.º 1, 2009, pp. 197-212.
  3. É importante notar que as definições explícitas (presumivelmente à excepção das estipulativas) são verdadeiras ou falsas, apesar de as definições implícitas presumivelmente não o serem. As definições explícitas são apresentadas por meio de proposições. Por exemplo, as definições “Algo é arte se, e só se, imita a realidade” e “A arte é aquilo que imita a realidade” exprimem proposições e, portanto, são verdadeiras ou falsas. Uma definição implícita ostensiva, por outro lado, não é uma proposição, de modo que não pode ser verdadeira ou falsa, embora sua expressão proposicional o seja.
  4. Cf. G. Dickie (1973) quanto à teoria institucional da arte.

Bibliografia

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ISSN 1749-8457