Descartes começa com dúvidas moderadas que outros argumentos cépticos tinham tornado familiares. E observa: “os meus sentidos por vezes enganam-me, e é prudente nunca confiar completamente naqueles que nos enganam uma vez que seja”. A seguir põe-se a pensar se não estará a sonhar de maneira que as crenças “de que abro os meus olhos, movo a minha cabeça, estendo as minhas mãos, e todas as coisas deste género, não passam de ilusões, e talvez as minhas mãos e na verdade todo o meu corpo, não sejam como me parecem”.
Não é difícil imaginar muitas variações da ideia de que a tua experiência possa ser um sonho. Há a possibilidade de que estejas numa realidade virtual de maneira que quando moves os teus membros não interages com o mundo real à tua volta mas com um programa de computador que envia inputs para sensores ligados aos teus olhos em resposta ao que fazes.
Há a possibilidade de que toda a gente à tua volta conspire para te contar uma falsa história acerca do mundo em que vives. E existe a favorita dos filósofos, a possibilidade de que sejas um “cérebro numa cuba”: um cérebro humano desligado do teu corpo e mantido vivo numa cuba de nutrientes químicos, mas ligado a um computador através de nervos que recebem dados de entrada (inputs) e de nervos que produzem dados de saída (outputs) de tal modo que tens a experiência que terias se estivesses em interacção com o mundo externo. Mas é claro que não há nenhum mundo à volta do teu cérebro e de modo algum um mundo igual ao da experiência fornecida pelo computador.
Algumas destas dúvidas têm um alcance profundo. Se o que elas sugerem fosse verdadeiro, muitas das tuas crenças seriam falsas. Mas Descartes chama a atenção para o facto de que algumas crenças resistiriam mesmo a estas dúvidas. “Esteja eu acordado ou a dormir, dois mais três serão sempre cinco, e um quadrado terá sempre quatro lados”. Mas supõe que existe um espírito poderoso, uma espécie de génio maligno, que pode fornecer à tua mente não apenas experiências ilusórias, como se estivesses ter alucinações, mas também levar a tua mente a raciocinar mal. Nesse caso 2 + 3 = 5 poderia ser uma ilusão, desde que o espírito te fizesse cometer erros em aritmética. Se existir tal espírito, Descartes não poderá estar seguro de praticamente nenhuma das suas crenças (e já agora tu também não).
Há muitas variações da ideia de um espírito enganador. Há a possibilidade de que estejas tão profundamente alienado que não podes sequer raciocinar. Há a possibilidade de que a mente humana seja tão inerentemente imperfeita que mesmo os pensamentos mais simples não correspondem a nada de real. Chamemos possibilidades cépticas a cada uma destas possibilidades. Uma possibilidade céptica é uma situação possível que, se estiver neste momento a acontecer, uma grande quantidade das tuas crenças habituais não será conhecimento.
Uma possibilidade céptica “corrói” crenças habituais. Por exemplo, se estiveres neste momento a sonhar, então a tua crença de que tens uma perna esquerda é demolida: podes ter perdido a tua perna mas sonhar que continuas a ter uma perna (há sonhos que valem a pena). E se és um cérebro numa cuba, então a crença de que tens um corpo além do teu cérebro é demolida. Algumas possibilidades cépticas são mais profundas que outras porque corroem mais crenças. A possibilidade cartesiana de um espírito que pode levar-te a errar em aritmética é muito, mesmo muito, profunda.
Há possibilidades cépticas, tais como a possibilidade de que possas estar a sonhar, de que possas estar a ser enganado por um génio maligno, ou de que o teu cérebro possa estar ligado a um computador que introduz nele informação completamente ilusória. Para cada uma destas possibilidades há muitas crenças que lhes correspondem, as crenças-vítima. E para a maior parte das tuas crenças podes pensar em possibilidades cépticas que lançam a dúvida sobre elas. Logo, podes duvidar da maior parte das tuas crenças.
Parte do conteúdo deste argumento pode ser abreviado da forma que se segue:
Se as possibilidades cépticas são verdadeiras, então deixas de saber que as crenças que elas corroem são verdadeiras.
Logo, até poderes mostrar que as possibilidades cépticas não são verdadeiras, não podes dizer que sabes que as crenças-vítima que elas corroem são verdadeiras.
Vejamos algumas fantasias que já tiveste em algum momento da tua infância (não te preocupes, não és o único). Em muitos aspectos, são possibilidades cépticas na medida em que, se qualquer uma for verdadeira, então deixas de saber muita coisa que julgavas saber. Mas diferem das possibilidades cépticas ao partirem de ideias megalómanas de que se é uma pessoa muito especial ou da ideia paranóica de que as atitudes das outras pessoas não são o que parecem.
Imagina que és uma criança educada por dois pais humanos que vive uma vida “normal”. Avalia os efeitos das fantasias referidas. Depois tem em conta as crenças que a seguir serão enumeradas. Que fantasias corroem que crenças? (Todas as crenças são coisas que pensas que sabes, mas se algumas fantasias forem verdadeiras, essas crenças podem ser falsas; e nesse caso não saberias realmente como são as coisas.) Algumas destas crenças podem não ser corroídas por nenhuma destas fantasias.
Que fantasias corroem mais crenças? E quais o fazem menos? Que crenças são mais facilmente corroídas? E quais são menos?
Por vezes, quando duvidas de uma coisa tornas outra mais susceptível de crença. Por exemplo, se duvidas que estás a pé, acreditas mais facilmente que estás na cama. Se duvidas que as doenças são causadas por vírus e microorganismos, então torna-se para ti mais provável acreditar que são causadas por feitiços. (A ideia é que duvidar de uma coisa não te faz acreditar efectivamente numa outra, apenas estás mais perto de acreditar noutra coisa, que se torna mais plausível.)
Para cada uma das crenças que se seguem encontra outra possibilidade que se tornaria mais plausível caso as submetas à dúvida.
Respostas possíveis: Se duvidas que a terra é redonda, podes achar mais plausível que a terra é plana. Se duvidas que a vida evoluiu da matéria inorgânica, podes achar mais susceptível de crença que a vida foi criada por Deus. Se duvidas que as outras pessoas têm mentes como a tua, podes achar mais plausível que as outras pessoas sejam robôs.
Em primeiro lugar, este exercício é relevante para o argumento céptico simples. Presume que podes encontrar em relação a qualquer coisa em que acredites uma razão para duvidar. Daqui não se segue que encontrarás sempre razões para duvidar de tudo simultaneamente, porque as razões para duvidar de uma coisa podem tornar outra menos susceptível de dúvida.
Mas há também uma conexão com o argumento céptico cartesiano. As possibilidades cépticas corroem um grande número de crenças habituais. Mas também aumentam a possibilidade de acreditar em algumas crenças. Se suspeitas que estás a dormir, então é mais provável acreditares estar na cama. Se suspeitas que és um cérebro numa cuba, então é mais provável acreditares que todos os teus pensamentos dependem de um órgão físico, o cérebro.
A possibilidade céptica de Descartes, o génio maligno, não foi concebida com esta característica. Mas deste modo trata-se de uma possibilidade bastante vaga; quando descreves possibilidades cépticas mais concretas, tanto diminuis como aumentas a plausibilidade de algumas crenças habituais.