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Crítica
13 de Janeiro de 2004   Ética

O erro da eutanásia

J. Gay-Williams
Tradução de Vítor João Oliveira

Tenho impressão que a eutanásia — a ideia, senão a prática — está lentamente a ganhar aceitação na nossa sociedade. Os cínicos podem atribuir esse facto a uma tendência crescente de desvalorização da vida humana, mas não creio que esta seja a razão central. Bem publicitadas, histórias como a de Karen Quinlan, provocam em nós profundos sentimentos de compaixão. Pensamos para nós próprios, “Ela e a sua família ficariam melhor se ela morresse”. É uma consequência simples desta resposta humana verificar que se for melhor para uma pessoa (ou pessoas) que esteja morta, então deve ser correcto matá-la[1]. Ainda que respeite a compaixão que conduz a esta conclusão, acredito que é errada. Pretendo mostrar que a eutanásia é errada. É intrinsecamente errada, mas também o é considerada a partir do interesse próprio e dos efeitos práticos.

Antes de apresentar os meus argumentos a favor desta posição, devo definir “eutanásia”. Um aspecto essencial da eutanásia é implicar tirar uma vida humana, a própria ou a de outrem. Também a pessoa a quem é tirada a vida deve ser alguém que acredita estar a sofrer de alguma doença ou mal do qual se suspeita não ser razoavelmente possível esperar recuperação. Finalmente, a acção deve ser deliberada e intencional. Assim, eutanásia significa tirar intencionalmente a vida a alguém presumivelmente sem qualquer esperança de recuperação. Independentemente de se tratar da própria vida ou não, tirá-la significa igualmente eutanásia.

É importante ser claro acerca do carácter intencional ou deliberado do matar. Se, por engano, é dada uma injecção com uma droga errada a uma pessoa sem esperança e provoca a sua morte, será matar alguém por engano mas não será eutanásia. A morte não pode ser o resultado de um acidente. Além do mais, se é dada uma injecção com uma droga a uma pessoa, mas que se crê ser necessária para tratar a sua doença ou melhorar a sua condição e se morre, então não é nem morte por engano nem eutanásia. A intenção era melhorar a saúde da pessoa, não matá-la. Do mesmo modo, quando a condição de um doente é tal que não é razoável esperar que procedimentos médicos e tratamentos o possam salvar, uma falha na implantação destes procedimentos ou tratamentos não é eutanásia. Se uma pessoa morre, será como resultado dos seus males ou doença e não porque falhou o tratamento.

O acto de interromper o tratamento de uma pessoa depois de compreender que esta tem poucas possibilidades de beneficiar dele, tem sido caracterizado por alguns como “eutanásia passiva”. Esta afirmação é enganadora e errada[2]. Nestes casos, a pessoa envolvida não é morta (primeiro aspecto essencial da eutanásia), nem a sua morte resulta da recusa de um tratamento adicional (terceiro aspecto essencial da eutanásia). O objectivo pode ser o de poupar a pessoa a um sofrimento adicional e injustificável, salvá-la de manipulações indignas, e evitar aumento o fardo financeiro e emocional à família. Quando compro um lápis é para o usar a escrever, não para aumentar o produto interno bruto (PIB). Esta pode ser uma consequência inesperada da minha acção, mas não é o seu objectivo. O mesmo se passa com a interrupção do tratamento de um doente terminal. Quis a sua morte tanto quanto quis reduzir a despesa pública ao não usar os medicamentos. Trata-se de morte não intencional, pelo que a chamada “eutanásia passiva” não é de todo eutanásia.

1. O argumento da natureza

Todo o ser humano tem uma inclinação natural para continuar a viver. Os nossos reflexos e respostas habilitam-nos para lutar contra atacantes, afugentar animais selvagens e afastar-nos do trajecto dos camiões. No nosso dia-a-dia exercitamos a cautela e o cuidado necessários para nos protegermos. Os nossos corpos estão similarmente estruturados para sobreviver até ao nível molecular. Quanto nos cortamos, os nossos vasos capilares fecham-se, o nosso sangue coagula, e produz-se plasma para iniciar o processo de cura da ferida. Quando somos invadidos por bactérias, produzem-se anticorpos para combater os organismos invasores, e os seus restos são expulsos por células especializadas em trabalho de limpeza.

A eutanásia violenta o objectivo natural da sobrevivência. Significa literalmente agir contra a natureza, porque todos os seus processos estão inclinados para a sobrevivência. A eutanásia derrota estes mecanismos subtis de uma forma que, num caso particular, a doença ou os ferimentos não o fazem.

É possível, embora não seja necessário, apelar à religião revelada para sustentar esta conexão[3]. O ser humano enquanto tutor do seu corpo age contra Deus, que é o seu real proprietário, quando termina com a sua vida. Também viola os mandamentos divinos que declaram a santidade da vida e impedem que dela possamos dispor sem uma razão verdadeiramente irresistível. Mas porque este apelo persuade apenas aqueles que estão preparados para aceitar que a religião tenha acesso a verdades reveladas, não seguirei esta linha argumentativa.

É suficiente, acredito, reconhecer que a organização do corpo humano e os padrões das nossas respostas comportamentais mostram que a manutenção da vida é um objectivo natural. Podemos, por isso, e com base apenas na razão, reconhecer que a eutanásia nos coloca contra a nossa própria natureza[4]. Além de que, ao fazê-lo, a prática da eutanásia violenta a nossa dignidade, já que esta decorre da procura dos nossos fins. Considerando que um dos nossos objectivos é a sobrevivência, e que, no entanto, agimos para o eliminar, então é a nossa própria dignidade que sofre. Ao contrário dos animais, temos consciência através da razão da nossa natureza e dos nossos fins. A eutanásia implica agir como se esta dupla natureza — inclinação para a sobrevivência e consciência dela como um fim — não existisse. Logo, nega a nossa natureza humana básica e requer que nos olhemos a nós e aos outros como algo menos do que totalmente humanos.

2. O argumento do interesse próprio

Os argumentos supra referidos são, acredito, suficientes para mostrar que a eutanásia é intrinsecamente errada. Mas há razões para a considerar errada quando avaliada de acordo com parâmetros que não os da razão. Uma vez que a morte é final e irreversível, a eutanásia implica que as nossas acções ocorram contra os nossos interesses se a praticarmos ou permitirmos que outros a pratiquem em nós.

A medicina actual possui elevados padrões de excelência e um recorde provado de sucesso, mas não possui um conhecimento perfeito e completo. É possível um diagnóstico errado, do mesmo modo que é possível um prognóstico errado. Como consequência, pode dar-se o caso de acreditarmos que estamos a morrer de uma doença, quando na realidade e de facto, podemos não estar. Podemos pensar não haver hipóteses possíveis de recuperação, quando na realidade e de facto, até podem ser bastante boas. Nestas circunstâncias, se a eutanásia fosse permitida, morreríamos desnecessariamente. A morte é final e a hipótese de erro é demasiado grande para aprovar a prática da eutanásia.

De igual modo, é sempre possível que um procedimento experimental ainda não testado permita a recuperação. Devemos manter esta opção em aberto, o que a eutanásia impede. Além de que acontecem em muitos casos remissões espontâneas. Sem razão aparente, um doente simplesmente recupera quando todos à sua volta, incluindo os seus médicos, esperavam que morresse. A eutanásia apenas garantiria as suas expectativas não deixando lugar para recuperações “miraculosas” que acontecem frequentemente.

Finalmente, sabendo que podemos dispor da nossa vida em qualquer altura (ou pedir a outros que o façam) pode levar-nos facilmente a desistir. A vontade de viver é forte em todos nós, mas pode ser enfraquecida pela dor, pelo sofrimento e por sentimentos de impotência. Se permitirmos que sejamos mortos num período difícil, não teremos mais hipóteses de reconsiderar. Recuperar de uma doença grave implica que a possamos combater, e tudo o que possa enfraquecer a nossa determinação sugerindo que não há saídas fáceis é, em última análise, contrário aos nossos interesses. Podemos ainda estar inclinados a aceitar a eutanásia por causa das nossas preocupações com os outros. Se encaramos a nossa doença e o nosso sofrimento como um fardo financeiro e emocional para a nossa família, podemos sentir que morrer tornará as suas vidas melhores[5]. A simples presença desta possibilidade pode impedir-nos de sobreviver quando tal é possível.

3. O argumento dos efeitos práticos

Os médicos e as enfermeiras estão, na sua grande maioria, empenhados em salvar vidas. Uma vida perdida é, para eles, quase um fracasso pessoal, um insulto às suas capacidades e ao seu conhecimento. A eutanásia como prática pode alterar isto e exercer uma influência corruptora sobre os médicos e as enfermeiras, de tal forma que pode levar a que não se empenhem o suficiente. Podem decidir que o doente “estaria melhor morto” e desencadear o processo necessário para que tal acontecesse. Esta atitude pode conduzir a uma triagem de tal forma que tratariam apenas os casos menos graves. O resultado seria um decréscimo global da qualidade dos cuidados médicos prestados.

Finalmente, a eutanásia enquanto política seria como um declive ardiloso. Um doente aparentemente sem esperança poderia ser autorizado a terminar com a sua própria vida. Depois seria permitido a outros que o fizessem se não fosse capaz. O juízo dos outros passaria a ser o factor dominante. Nesta altura, a eutanásia já não seria pessoal e voluntária, uma vez que outros estariam a agir “em nome” do doente de uma forma que considerassem adequada. Este facto poderia conduzir a que se achassem no direito de agir em nome de outros doentes sem a sua permissão. Como se vê, então, um pequeno passo separa a eutanásia voluntária (auto-inflingida ou autorizada), da eutanásia administrada a um doente que não deu o seu consentimento, e da eutanásia involuntária conduzida como parte de uma política social[6]. Ainda recentemente psiquiatras e sociólogos defenderam que definimos como “doença mental” aquelas formas de comportamento que desaprovamos[7]. Isto permite que fechemos todos aqueles que exibam este tipo de comportamentos. A categoria do “doente sem esperança” fornece-nos a possibilidade de um abuso ainda maior. Justificado por uma política social, daria à sociedade e aos seus representantes, a autoridade necessária para eliminar todos aqueles que pudessem ser considerados demasiado “doentes” para funcionar normalmente. Os perigos da eutanásia são demasiado grandes para que possamos correr o risco de a aprovar sob qualquer forma. O primeiro passo escorregadio poderia conduzir a uma queda séria e aparentemente inofensiva.

Espero que tenha sido bem-sucedido na tentativa de mostrar que a benevolência que nos inclina a aprovar a eutanásia é despropositada. A eutanásia é intrinsecamente errada porque viola a natureza e a dignidade dos seres humanos. Mas mesmo aqueles que estão convencidos disto podem ser persuadidos de que os perigos pessoais e sociais potenciais e inerentes à eutanásia são suficientes para proibir a sua aprovação seja como prática individual, seja como política social.

O sofrimento é sem dúvida algo terrível e temos um dever claro de confortar aqueles que precisam e atenuar o seu sofrimento tanto quanto nos for possível. Mas o sofrimento é um aspecto natural da vida humana que não deve ser ignorado. Podemos procurar para nós e para os outros uma morte mais fácil, como defende Arthur Dyck[8]. Mas a eutanásia não é, contudo, apenas uma morte fácil. É uma morte errada. A eutanásia não é apenas morrer. É assassínio.

J. Gay-Williams
Taking Sides: Classing Views on Controversial Moral Issues, ed. por Stephen Satris (Connecticut: McGraw Hill, 2000, 7.a edição), pp. 294-97.

Notas

  1. Para uma defesa sofisticada desta posição, ver P. Foot, “Euthanasia”, Philosophy & Public Affairs, vol. 6 (1977), pp. 85–112. Foot não subscreve a conclusão radical que a eutanásia voluntária e involuntária, é sempre correcta.
  2. J. Rachels rejeita esta distinção entre eutanásia activa e passiva como moralmente irrelevante. Ver “Active e Passive Euthanasia”, New England Journal of Medicine, Vol. 292, pp. 78-80. Ver crítica de Foot, pp. 100–103.
  3. Para uma defesa desta posição ver J. V. Sullivan, “The Immorality of Euthanasia”, in Marvin Kohl, ed., Beneficent Euthanasia (Buffalo, New York, Prometheus Books, 1975), pp. 34-5.
  4. Esta ideia é defendida por R. V. MacIntyre, “Voluntary Euthanasia: The ultimate perversion”, Medical Counterpoint, Vol. 2, pp. 26-29.
  5. Ver MacIntyre, p. 28.
  6. Ver Sullivan, “The Immorality of Euthanasia”, pp. 34-44 para uma defesa mais extensa desta posição.
  7. Ver, por exemplo, Thomas S. Szasc, The myth of mental illness, rev. ed. (New York: Harper and Rove, 1974).
  8. A. Dyck, “Beneficent Euthanasia and Benemortasia”, Kohl, op. cit., pp. 117-29.
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ISSN 1749-8457