Apresentação
Neste ensaio, a Professora de Filosofia de Griffin, Philippa Foot, tem o cuidado de estabelecer a distinção entre eutanásia activa e passiva quando utiliza a noção de “direito à vida”. Discorda de Rachels, que defende que essa distinção é moralmente irrelevante e desumana na prática. Foot contrapõe este ponto de vista dando evidência à importância desta distinção.
Foot considera, todavia, essencial a questão sobre as circunstâncias em que temos a legitimidade moral para matar pessoas alegando o seu próprio bem. Ao responder a esta questão, Foot analisa o conceito de “vida humana comum” e explora a ideia de quando podemos tomar a vida de outrem como indigna de continuar. Não defende que temos legitimidade para decidir isso pelos outros. Na sua perspectiva, todos temos o direito à vida; o que importa é o que cada um de nós quer para si. Assim, se pensarmos que morrer seria melhor para uma pessoa, mas se essa pessoa deseja viver, então não temos o direito de a matar. Concluindo esta ideia, Foot não defende a eutanásia activa involuntária. Do mesmo modo, se uma a pessoa quer viver e tem direito a tratamento médico, também não é aplicável a eutanásia passiva involuntária.
Mas então o que dizer sobre casos que envolvem aqueles cujos desejos desconhecemos, de pacientes em estado de coma por exemplo? Foot é de opinião que tirar a vida a tais pessoas seria infringir os seus direitos. Daí rejeitar a aplicação da eutanásia activa involuntária nestes casos. Porém não admite que existam casos em que o paciente em coma, caso tivesse meios, pudesse ter determinado não desejar que a sua vida continuasse a ser sustentada por meios artificiais. Isto leva-a a concluir que a eutanásia passiva involuntária pode ser por vezes moralmente aceite.
Embora Foot admita ambas as formas de eutanásia (activa e passiva) como moralmente legitimas, não promove a ideia de que temos o dever de matar pessoas que decidiram que as suas vidas deixaram de ser dignas. Na sua opinião, o consentimento explícito destas pessoas apenas nos dá a garantia de que, ao seguirmos os seus desejos, não estaríamos a violar o seu direito à vida.
Jeffrey Olen e Vincent E. Barry
O sobejamente conhecido Shorter Oxford English Dictionary apresenta três significados para a palavra “eutanásia”: o primeiro, “uma morte doce e fácil”; o segundo, “os meios para a conseguir”; e o terceiro, “a acção de aplicar uma morte doce e fácil”. É curioso que nenhum dos três ofereça uma definição adequada da palavra tal como ela é geralmente entendida. Pois “eutanásia” significa muito mais do que isso tudo. A definição do dicionário especifica apenas o modo como a morte ocorre, e se esse fosse o caso, ao drogar a sua vítima um assassino poderia alegar ser o seu acto um caso de eutanásia. Pensamos que isto está fora de questão, pois defendemos que na eutanásia é a morte em si que deve ser suave e doce para com aquele que morre e não o modo como ela acontece.
Para compreendermos porque é que a eutanásia não pode der entendida nos termos em que o dicionário a apresenta, temos apenas que recordar que o programa de “eutanásia” de Hitler tirava vantagens desta ambiguidade. Na sequência deste programa, projectado antes da guerra mas concretizado por decreto a 1 de Setembro de 1939, cerca de 275.000 pessoas foram gaseadas em centros, cuja estrutura, mais tarde, viria a servir de modelo a outros onde os Judeus seriam exterminados. Quem quer que estivesse internado em instituições hospitalares do estado poderia ser enviado para as câmaras de gás, se se considerasse que essa pessoa não estaria em condições de ser “reabilitado” para a realização de trabalho útil. Tal como o Dr. Leo Alexander refere, baseado em testemunhos de neuropatologistas que receberam 500 cérebros de um dos centros da morte,
“O extermínio humano na Alemanha incluía os mentalmente incapazes, os psicóticos (especialmente os esquizofrénicos), epilépticos e pacientes com problemas resultantes da velhice e de várias perturbações orgânicas e neurológicas, tais como paralisia infantil, doença de Parkinson, esclerose múltipla e tumores cerebrais... No fundo, eram mortos todos os que eram incapazes de trabalhar e considerados não-reabilitáveis”.1
Estas pessoas eram mortas por serem consideradas “inúteis” e “um peso para a sociedade”; apenas o modo como morriam podia ser tomado como relativamente doce e fácil.
Insistamos, pois, que quando falamos de eutanásia falamos de uma morte como um acontecimento bom ou feliz para quem morre. Esta estipulação é conforme à etimologia, mas não está em si inteiramente de acordo com o uso corrente, que seria captado pela condição de que a morte não deve ser um mal e não de que deve ser um bem. Para mostrar que é este o conceito comum entre as pessoas, há o caso de Karen Ann Quinlan e de outras pessoas em estados de coma permanente, muitas vezes discutidos sobre a égide da eutanásia. Talvez não seja tarde de mais para nos começarmos a opor ao uso que se faz da palavra neste sentido. Além do corte com as origens gregas da palavra, existem outras conotações infelizes que lhe são atribuídas. Se entendemos que a morte deve constituir um bem para o sujeito, também podemos acrescentar que é para o seu próprio bem que um acto de eutanásia é levado a cabo. Se apenas dizemos que a morte não constituirá dano para si, não poderemos determinar que a razão que tornará a eutanásia legítima será o seu benefício. Dada a pertinência da questão, estamos a agir para o bem de quem? Seria bom se definíssemos eutanásia de uma forma que incluísse apenas os casos de escolha pela morte para o bem daquele que morre. Talvez o mais importante seja dizer ou que a eutanásia deve ser aplicada para o bem do sujeito ou, pelo menos, que a morte não seja um dano ou um mal para ele, recusando-nos a usar a linguagem de Hitler. Porém, é condição primordial deste texto que se entenda o acto de eutanásia como a acção de causar ou de outro modo de optar pela morte para o bem daquele que está para morrer.
Precisamos de esclarecer um conjunto de aspectos menos significativos. Em primeiro lugar, cabe-nos dizer que a palavra “acto” não deve excluir a ideia de omissão; falaremos de um acto de eutanásia quando, para o seu próprio bem, alguém é levado deliberadamente à morte, e não apenas quando são efectivamente tomadas medidas nesse sentido. Queremos veicular a ideia de que há opção por um acto ou não-acto relativo à morte de outra pessoa e que é consequentemente efectiva, no sentido em que, conjugada com circunstâncias reais, constitui condição suficiente para a morte. Não será necessário abordar complicações como, por exemplo, a sobredeterminação.
Um segundo aspecto claramente de menor importância, mas que diz respeito à definição de eutanásia liga-se com a relação facto-crença. Já foi aqui sugerido que aquele que provoca a eutanásia pensa que a morte será piedosa para o sujeito e é com base nesta ideia que acontece. Mas será ela suficiente, e têm as circunstâncias de ser de facto tal como o sujeito pensa que elas são? Se uma pessoa mata outra ou permite que a outra morra, presumindo que esta se encontra numa fase terminal de uma doença terrível, apesar de efectivamente não haver cura, estamos ou não perante um acto de eutanásia? Nada mais acresce dizer sobre a nossa decisão nesta matéria. O mesmo princípio deve ser tido em linha de conta na definição desta ideia quer como um elemento factual, quer como um elemento subjacente à crença do agente. E seja como for que definamos eutanásia, a culpabilidade ou razoabilidade do acto será a mesma: se alguém age por ignorância, esta condição permitirá ou não imputar-lhe culpa.2
Estas são questões que se resolvem com relativa facilidade, porém há uma bastante delicada e assustadora que tem sido deixada de lado nesta análise e precisa de ser enfrentada. Será fácil dizer, uma vez que não levanta questões de grande monta, que a eutanásia é por definição uma acção que visa a promoção do bem da pessoa cuja morte está em causa, e que é para o seu próprio benefício que se deseja a sua morte. Mas como se explica isto? Provavelmente pensamos que a morte é uma forma de a libertarmos de um mal que nela existe ou que sobre ela pode cair se continuar a viver. Porém esta ideia não é suficiente. A maior parte das vidas das pessoas contém males como a dor e o sofrimento, mas não partimos do princípio de que a morte seria uma bênção nestes casos. Pelo contrário, a vida é considerada uma dádiva mesmo para aqueles que são afectados por uma grande infelicidade ou frustração. Então como podemos desejar a morte em nome do bem-estar de quem está a morrer? Esta questão difícil é central na discussão sobre a eutanásia, e não saberemos literalmente do que estamos a falar se perguntarmos se os actos de eutanásia, tal como os definimos, são moralmente aceitáveis sem primeiro aprofundarmos a razão pela qual dizemos que a vida é uma dádiva, e enfrentarmos a possibilidade de que nem sempre é assim.
Se alguém salvasse a minha vida, essa pessoa seria o meu benfeitor. Em circunstâncias normais este pressuposto é claramente verdadeiro; mas será que estamos sempre a beneficiar alguém quando lhe salvamos a vida? Parece que nem sempre é assim. Suponhamos, por exemplo, que alguém estaria a ser torturado até à morte e lhe tivesse sido administrada uma droga que prolongasse o seu sofrimento; neste caso não seria um benefício, mas o contrário. Ou então que num ghetto na Alemanha Nazi um médico salvava a vida de alguém que estava ameaçado pela doença, mas que, logo que recuperado, fosse transportado para um campo de extermínio; o médico poderia ter desejado que este paciente tivesse morrido da doença. Nem sempre o prolongamento da vida constitui um benefício para aquele que o recebe. Ao comparar os campos de extermínio de Hitler com os de Estaline, Dmitri Panin constata que, nos últimos, o método de extermínio era agravado pelo prolongamento da agonia dos prisioneiros durante meses.
“A morte resultante de ferimento de bala teria sido o paraíso comparado com o sofrimento que milhões tiveram de suportar enquanto morriam de fome. O tipo de morte ao qual eram condenados não tem comparação ao nível do sadismo e crueldade”.3
Estes exemplos dão evidência ao facto de que nem sempre quando salvamos ou prolongamos a vida a alguém, estamos a fazer-lhe bem: poderia ser melhor para essa pessoa se morresse mais cedo. Embora possamos concordar que a vida é uma dádiva para aquele que a detém, nem sempre assim acontece.
É muito fácil fazer juízos de valor sobre se a vida é ou não um bem para alguém, todavia o seu fundamento é difícil de encontrar. Com que fundamento definimos a vida como um bem ou uma dádiva?
Esta dificuldade deixará de ter importância se partirmos do princípio que o problema deriva do facto de que aquele que está morto não possui coisa alguma, sendo que o bem que constitui a condição de estarmos vivos não pode ser comparado com o que teríamos em circunstâncias opostas. E para que servirá esta comparação em particular? Certamente que serviria o seu propósito se pudéssemos prever até que ponto alguém cuja vida foi prolongada, teria experiência de mais bem ou mal nesse período de tempo. Embora tais estimativas nem sempre sejam possíveis, são-no com frequência; por vezes dizemos “Ele foi muito feliz nos últimos anos”, ou, “Naquela altura já não tinha mais nada senão infortúnios”. Se ao ponderarmos o bem e o mal pudéssemos determinar se a vida tinha sido boa para alguém, poderíamos encontrar uma correlação entre os juízos de valor. Mas é óbvio que não é possível encontrá-la. Primeiro, alguém que não duvida que a sua existência constitui um bem para si pode não fazer ideia do equilíbrio que existe na sua vida entre momentos de felicidade e infelicidade, ou de quaisquer outros factores positivos ou negativos que possam ser sugeridos. Deste modo, os critérios que se supunham existir nem sempre estão subjacentes quando o juízo de valor ocorre. E em segundo lugar, a aplicação dos critérios conduz-nos frequentemente a resultados errados. A maioria das pessoas tem mais infortúnios na vida do que momentos agradáveis, mas não será por isso que podemos afirmar que lhes estamos a prestar um serviço ao salvá-las da morte.
Thomas Nagel procura contornar esta dificuldade sugerindo que a experiência é ela própria um bem que deve ser tido em consideração.
“[...] a vida merece ser vivida mesmo quando abundam experiências negativas e as boas são tão escassas que não conseguem compensar por si só as primeiras. O reforço positivo acrescido deve surgir da experiência em si e não do seu conteúdo, seja ele qual for”. 4
Esta ideia não parece plausível, pois se a experiência por si só constitui um bem, é-o também quando é absolutamente má, tal como quando se é torturado até à morte. Como decidir sobre o valor a atribuir a esta experiência; e porquê considerá-la de todo?
Outros tentaram resolver o problema argumentando que é precisamente o desejo das pessoas pela vida que a torna um bem: se alguém deseja viver, então aquele que o ajuda a prolongar-lhe a vida, está a fazer-lhe bem. Todavia, poderia dar-se também o caso de alguém que estivesse agarrado ao desejo de viver em circunstâncias sobre as quais poderíamos afirmar com toda a convicção que seria melhor para ele que morresse, e em que o próprio também o admitisse. Referindo-se a essas mesmas condições nas quais uma bala seria mais piedosa, Panin escreve,
“Gostaria de perpetuar as minhas observações respeitantes à ausência de suicídios no contexto de condições de sobrevivência extremas e rigorosas dos nossos campos de concentração. Quanto mais desesperante a vida se tornava, mais o prisioneiro parecia determinado a lutar por ela”.[5]
Poderemos avançar uma explicação para isto, alegando que a esperança constitui a base para este desejo de prolongamento da sobrevivência durante os dias e meses de vida no campo. No entanto, não existe nada de ininteligível na ideia de uma pessoa se agarrar à esperança de vida apesar de conhecer o seu destino inevitável, o qual levaria qualquer um de bom coração a preferir a sua morte ao seu sofrimento.
O problema persiste e é difícil saber onde procurar a solução. Haverá uma ligação conceptual entre vida e bem? Porque a vida nem sempre é um bem, achamo-nos no direito de rejeitar esta ideia e de pensar que o facto de a vida ser geralmente um bem é uma contingência, tal como o é o facto de os legados serem geralmente um benefício, se é que o são. Porém não parece uma contingência a ideia de que salvar a vida a uma pessoa é usualmente um benefício para ela. O problema consiste em determinar onde reside essa ligação conceptual.
Talvez seja boa ideia esquecermos por momentos que estamos a discutir o problema da eutanásia e analisar até que ponto a vida e o bem estão ligados no caso de seres vivos que não são seres humanos. Até as plantas necessitam de cuidados ou estão sujeitas a agentes prejudiciais e o que lhes é favorável pode de certa forma estar relacionado com o facto de viverem ou morrerem. Consideremos pois as plantas e os animais, e depois voltemos ao caso dos seres humanos. Pelo menos assim afastar-nos-emos da tentação de julgar que a ligação entre a vida e o bem dever ser, em qualquer contexto, uma questão de felicidade ou infelicidade, de prazer ou sofrimento; sendo que esta ideia seria absurda no caso dos animais e impossível de ser formulada no caso das plantas.
Aos que julgam que o conceito do que é benéfico é apenas aplicável às plantas de forma secundária ou analógica, lembramos que de forma muito simples dizemos que uma certa quantidade de luz solar é benéfica para a maioria das plantas. O que está aqui em causa é o ambiente onde determinadas plantas se desenvolvem, mas também nos podemos referir, de um modo ligeiramente diferente, ao que lhes é benéfico, sugerindo melhoria ou remédio. De que forma está o benefício relacionado com a sustentabilidade da vida? É tentador responder “totalmente”, se pensarmos que uma condição salutar é aquela que está apta a garantir a sobrevivência. Efectivamente, o que é benéfico para uma planta pode estar relacionado com a sua reprodução e não tanto com a sobrevivência de um único exemplar daquela espécie. Todavia há uma simples ligação entre o benefício e a sustentabilidade da vida, mesmo para o espécime individual; se dentro da sua espécie algo o torna mais apto para sobreviver em condições normais, então por isso mesmo esse facto constitui um bem acrescido. Não necessitamos, e não podemos adiantarmo-nos mais a explicar a razão pela qual determinado ambiente ou tratamento é bom para uma planta. Mais importante é mostrar como esse facto ajuda a planta a sobreviver.6
A relação entre a sustentabilidade da vida e o benefício é pouco problemática, e nada existe de zoomórfico ou de presunçoso ao falarmos de beneficiar ou fazer bem às plantas. A ligação da planta à sua sobrevivência pode ser-lhe benéfica. Não quer isto dizer que consideramos a vida como um bem para as plantas. Podemos preservar-lhes a vida fornecendo-lhes o que lhes é benéfico, não as beneficiamos salvando-lhes a vida.
Somos confrontados com um conceito mais alargado de benefício quando falamos da vida animal. Podemos afirmar coisas novas, tais como: um animal encontra-se melhor ou pior na sequência de algo que tenha acontecido, ou que foi bom ou mau para ele que isso tivesse acontecido. Neste contexto novos dados são considerados benefícios. Em primeiro lugar, há a ideia de conforto, a qual está frequentemente, embora não tenha necessariamente que estar, relacionada com a saúde. Ao alargarmos a coleira a um cão, podemos dizer “Será melhor para ele”. Deste modo verificamos que a expressão “será melhor para ele” tem dois sentidos diferentes que assinalaremos sempre que necessário indicando a diferença através da ênfase. Assim “melhor para ele” implicará a noção de saúde ou bem-estar. Em segundo lugar, ao salvar a vida a um animal podemos estar a beneficiá-lo. Deste modo à pergunta “Pudeste fazer algo pelo animal?” podemos responder “Sim, consegui salvar-lhe a vida”. Podemos entender este raciocínio tal como o entenderíamos no caso de uma planta, tratando-se de uma doença. Mas também podemos fazer algo por um animal quando afastamos um presumível predador. Isto torna-se num benefício para ele, a não ser que logo depois encontre um fim mais desagradável por outros meios. De forma semelhante, o animal em causa também pode ficar pior na sequência da nossa intervenção, não porque sofra, mas simplesmente porque é morto.
Cabe agora analisar o problema que mais nos incomoda quando pensamos na eutanásia. Pois se podemos fazer algo pelos animais, se lhes podemos fazer bem, aliviando-lhes o sofrimento e salvando-lhes a vida, de onde deriva o bem maior quando apenas a morte pode acabar com o sofrimento? Parece que a vida é um bem por direito próprio; todavia o sofrimento parece um mal com estatuto igual e pode fazer a vida não ser encarada com um bem. Será que apenas a vida sem dor é uma bênção quando diz respeito aos animais? Esta não é de todo uma sugestão despropositada quando falamos de animais, uma vez que, ao contrário dos seres humanos, não tomam o sofrimento como parte da rotina das suas vidas. Todavia, será talvez a ideia de vida natural que importa retratar aqui. Não diríamos que não fizemos nada por um animal quando simplesmente o mantivemos vivo, quer num estado inconsciente, quer em condições em que, embora consciente, esse animal não pudesse mover-se de modo natural; o que acontece de facto é que animais sujeitos a sofrimento severo de forma continuada não têm comportamentos normais. No fundo ao salvarmos a vida a um animal, e embora resgatando-o de uma vida repleta de sofrimento, não estamos a optar por lhe fazer bem. Obviamente que existem casos distintos, mas esse não é o problema. Não tentamos tornar possíveis novos juízos de valor, antes tentamos encontrar fundamentos para aqueles que fazemos.
Quando abordamos a questão da vida humana, a situação apresenta-se ainda mais problemática. Pois neste caso temos que tomar em consideração novos dados, tais como a visão que o próprio sujeito tem da sua vida. É discutível o facto de este dado colocar limitações extra quando tentamos encontrar uma solução: não deveríamos assumir como condição necessária para tomarmos o facto de a vida ser um bem para as pessoas, que elas a vejam como tal? Não é difícil observar a ideia de que podemos bem-fazer a alguém prolongando-lhe ou salvando-lhe a vida, apesar de esse alguém desejar a morte? Obviamente que esta pessoa pode possuir uma ideia bastante errada das suas expectativas, mas não nos detenhamos neste ponto e pensemos apenas nos casos em que é a vida, tal como este sujeito a conhece, que está em causa. Poderemos ter a pretensão de pensar que lhe estamos a fazer um bem apesar de ele desejar que a sua vida termine em vez de continuar? Parece não ser possível determiná-lo. O facto de não existir uma incompatibilidade simples entre vida enquanto bem e o desejo pela morte está patente na possibilidade de alguém poder desejar a sua própria morte, não para o seu próprio bem, mas para o bem de outrem. E se tentarmos corrigir esta tese dizendo que a vida não pode ser um bem para aqueles que desejam morrer para o seu próprio bem, desviamo-nos do conceito crucial. Tal como Bishop Butler referiu há uns anos, nem todos os fins são benevolentes ou promovem o interesse do próprio. Estará uma pessoa a desejar a morte para o seu próprio bem no sentido relevante do termo, por exemplo, se desejar vingar-se de outra usando a sua própria morte? Ou e se essa pessoa é orgulhosa e se recusa a suportar a dependência ou incapacidade apesar de ainda ter muitas coisas boas pela sua frente? A verdade é que, por vezes, o desejo pela morte é compatível com o facto de a vida constituir uma bênção e outras vezes não, o que é possível, pois a expressão “desejar a morte” engloba estados de espírito diversos que variam entre vontade de suicídio, depressões patológicas, até ao estado daqueles que surpreendentemente encontram alívio na ideia de um acidente fatal. Por um lado, uma pessoa pode ver a sua vida como um fardo, mas prosseguir com ela de forma mais ou menos natural; por outro lado, o desejo da morte pode assumir a forma de rejeição de tudo o que existe na vida, tal como acontece nos casos de depressão profunda. Parece correcto dizer que a vida não é uma bênção para aqueles que se encontram permanentemente na última situação. A esta questão voltaremos mais tarde.
Quando devemos dizer que a vida é um bem ou um benefício para alguém? Este é o dilema com que nos deparamos. Se dizemos que a vida enquanto tal é um bem, deitamos por terra os exemplos apresentados no início desta discussão. Estamos assim inclinados para pensar que a vida constitui um bem uma vez que implica coisas boas. Mas se assim é por que não é a vida igualmente má quando nos aporta momentos maus? E como pode ser um bem mesmo quando nos traz coisas más?
Devemos frisar a ideia de que a questão foi aqui abordada atendendo à dualidade do bem e do mal, e não na perspectiva da felicidade ou infelicidade, e que não se resolve através da negação (que faz sentido) de que a infelicidade constitui o mal e a felicidade o único bem. Neste ensaio não foi dada outra perspectiva sobre a natureza dos bens ou dádivas além dos da própria vida. A questão é que em qualquer perspectiva sobre os bens e os males da vida, parece que, por mais males que a vida tenha, ela é sempre vista como um bem.
Será talvez prudente rever os juízos de valor com os quais a nossa teoria deve acertar. Pensamos que a vida é um bem para aquele que sofre bastante? Claro que o fazemos. E sê-lo-á também para os deficientes profundos? Também o poderá ser, pois se uma pessoa se encontra completamente paralisada, talvez ajudada por respirador artificial, talvez capaz de mover objectos através de um tubo que sai da boca, não o vamos privar do direito à vida, se ele afirma que alguém lhe salvou a vida. O mesmo se aplica aos deficientes mentais. Existem muitos casos, nomeadamente aqueles que sofrem da síndrome de Down (mongolismo), para os quais uma vida simples repleta de carinho é possível. E o que dizer da senilidade? Quebrará esta a ligação natural entre o bem e a vida? Precisamos de distinguir entre diferentes formas de senilidade. Algumas deixam traços de vida que nos permitem admitir que a continuidade da mesma é um benefício, outras não. Algumas destas pessoas que são afectadas por este problema vagueiam por enfermarias praticamente inconscientes, apesar de conseguirem empreender alguns movimentos e engolir a comida que lhes é posta na boca. Prolongar este tipo de condição quer nos idosos, quer em deficientes mentais profundos não constitui um benefício ou a prestação de um serviço. Obviamente que só no caso de haver sofrimento poderíamos desejar que morresse para o seu próprio bem.
Temos a impressão, no entanto, que só o facto de estarem vivos nestas circunstâncias, mesmo sem sofrimento, não é um bem, e que devemos fazer uma distinção semelhante àquela que fizemos quando abordámos a questão dos animais. Onde, porém, traçar o limite no caso humano? O que devemos ponderar no caso da vida humana comum? Se privássemos do direito à vida apenas os muito doentes ou muito senis, seria correcto descrevê-lo em termos de operacionabilidade. Todavia é difícil encontrar o sentido desta palavra tal como Panin o utilizou quando escreveu que aqueles homens já não estavam operacionais, e atendendo a que se tinham arrastado até aos postos de trabalho na floresta. O que há de especial nas vidas daqueles prisioneiros que nos faz colocá-los do outro lado da linha separadora e que os distingue daqueles que se encontram gravemente doentes ou sofrem de deficiências mentais ou físicas? Não é o facto de se encontrarem privados da liberdade, pois a vida em cativeiro pode ser boa. Nem tão-pouco a natureza pouco comum das suas vidas. De certa forma a vida que os prisioneiros tinham assemelhava-se mais à de outros homens do que a dos pacientes enfiados no respirador artificial.
A solução apresentada para o problema é a de que existe uma ligação conceptual entre vida e bem no caso dos seres humanos, tal como no caso dos animais e até mesmo das plantas. Em todo o caso, porém, não é a simples condição de estar vivo que determina, ou vale por si só para determinar o bem, mas antes a ideia de a vida poder atingir um nível de normalidade. Foram apresentados argumentos no sentido de que é enquanto partes integrantes da vida comum que os momentos bons podem ser considerados relevantes na questão de avaliarmos se a hipótese de salvarmos a vida a alguém é ou não benéfica. As vidas comuns, mesmo as mais difíceis, possuem um mínimo de bens essenciais, mas quando estes estão ausentes, a ideia de vida deixa de estar associada à de bem. E uma vez que é desta forma que os elementos benéficos que formam a vida de uma pessoa são relevantes para determinar se preservar-lhe a vida constitui uma vantagem, não existe razão alguma para ter em linha de conta o equilíbrio entre o bem e o mal. Devemos acrescentar que, de uma certa maneira, os males são relevantes quando eliminam a possibilidade de obtermos as coisas boas comuns, mas por outro lado, também o são quando invadem uma vida da qual, por qualquer razão, o bem está ausente. Assim, por exemplo o elo entre o bem e a vida pode ser quebrado uma vez que a percepção que fazemos dele foi reduzida a um nível muito inferior, como nos casos de senilidade agravada ou de dano cerebral. Neste tipo de contexto, não há noção de boa ou má vida, mas uma vez instalado o sofrimento, temos a tendência para esperar um fim rápido.
Precisamos pois de criar uma ideia de vida em que o ser humano comum possa usufruir de um mínimo de condições favoráveis. O normal nas vidas humanas, mesmo nas mais difíceis, é que as pessoas não sejam forçadas a trabalhar além das suas capacidades; que tenham o apoio de uma família ou comunidade; que possam saciar as necessidades de alimento; que tenham esperança no futuro; e que possam descansar ao fim do dia. Tais condições foram negadas aos homens e mulheres do campo de concentração de Vyatlag descritos por Panin; nem mesmo o descanso nocturno era permitido, quando eram importunados por parasitas na cama, por barulho, fedor, e quando os seus corpos eram revistados e submetidos a banhos comuns, os quais decorriam durante a noite para não interferirem com as regras de trabalho diurno. Também a doença pode privar a condição humana de bem-estar. Quando um doente está profundamente afectado pela dor ou náusea, não tem prazer em alimentar-se, isto se conseguir fazê-lo, e se encontra fora de um ambiente afectivo, deixa de usufruir de uma condição humana normal, tal como a temos vindo a descrever. E retomando agora o fio da análise feita anteriormente, podemos observar que qualquer depressão crónica pode tão eficazmente destruir no sujeito qualquer capacidade de apreciar os aspectos bons da vida como os factores externos o fazem.
Esta discussão, que admitimos ser inadequada, no sentido em a vida é normalmente boa, e as razões pelas quais o pode não ser em determinados casos, completa a fundamentação sobre os moldes em que entendemos a eutanásia. Um acto de eutanásia é atribuído a uma agente que opta pela morte de outro uma vez que, nestas circunstâncias, a vida parece constituir mais um mal do que um bem. A questão a ser levantada é se os actos de eutanásia são justificáveis. Existem duas questões nesta matéria e não apenas uma. Uma coisa será dizermos que alguns actos de eutanásia, considerados em si e pelos seus resultados, são moralmente aceitáveis, outra será dizermos que seria aceitável legalizá-los. Talvez a prática legal da eutanásia levasse a muitos abusos e talvez conduzisse a muitos erros. Além disso, esta prática poderia ser acrescida de efeitos secundários importantes altamente indesejáveis, uma vez que seria muito difícil alterar os nossos princípios sobre o tratamento dos idosos e doentes sem alterarmos também as nossas atitudes emocionais fundamentais e as nossas relações sociais. Estas questões devem, pois, ser analisadas separadamente. Na próxima fase desta análise não haverá referência a consequências sociais ou possíveis abusos decorrentes da prática da eutanásia, apenas a actos de eutanásia em si.
O que pretendemos averiguar é se actos de eutanásia, nos termos em que os temos vindo a abordar, podem, alguma vez, ser moralmente aceitáveis. Para sermos mais precisos, queremos saber se a morte entendida como mais um bem do que um mal é razão suficiente e válida para a escolha da prática da eutanásia.
Será impossível ter uma perspectiva clara sobre a dimensão exacta deste assunto sem antes definirmos as bases nas quais reside a objecção, face ao acto de alguém optar pela morte de outro. Existem duas virtudes diferentes, cujos requisitos, em geral, são contrários a tais actos. Um acto de morte injustificado, ou a conivência face à morte, são contrários à ideia de justiça ou caridade ou a ambas, e as consequências morais são distintas. A justiça está relacionada com o que cada um de nós está obrigado perante o outro numa perspectiva de não-interferência e de prestação de serviço ou ajuda. Quando usado neste sentido mais abrangente, que tem raízes na doutrina das virtudes cardinais, a justiça não está particularmente ligada às leis ou aos tribunais, por exemplo, mas a uma área mais abrangente de direitos e deveres correspondentes. Deste modo, o assassinato é, em primeiro lugar, uma forma de injustiça, depois, constitui uma desonestidade e, por fim, uma incapacidade de assegurar os contratos sociais; a arte do engodo num tribunal ou o acto de destituir alguém do seu direito a uma herança, são outras formas de injustiça. A justiça enquanto tal não está directamente ligada à promoção do bem do outro, e pode exigir que algo lhe seja devolvido, mesmo quando isso implica causar-lhe mal, tal como Hume salientou quando observa que uma dívida deve ser paga mesmo a um debochado devasso, que “merece mais sofrer do que beneficiar de largas somas”.7 Por outro lado, a caridade é a virtude que nos liga ao bem dos outros. Estamos perante um acto de caridade quando algo não é exigido pela justiça. Por outro lado, estamos perante falta de caridade e justiça quando é negado a alguém algo de que necessita ou a que tem direito; tanto a caridade como a justiça exigem que viúvas e órfãos não sejam defraudados, pelo que a pessoa que deles abusa não é nem caridosa nem justa.
É fácil verificar que os dois fundamentos da objecção à morte induzida são distintos. Um assassínio é um acto de injustiça. A falha culposa em auxiliar ou socorrer aquele cuja vida está em perigo é normalmente contrária à ideia não de justiça, mas de caridade. Todavia, sempre que alguém estivesse obrigado a socorrer alguém nestas circunstâncias, de forma explícita ou implícita, estaria a cometer um acto de injustiça. Assim, a injustiça pode ser observada quer no acto em si quer na sua omissão, e o mesmo se aplica no caso da caridade; esta pode exigir que alguém seja auxiliado, mas também que palavras duras sejam pronunciadas.
A distinção entre caridade e justiça será de importância primordial quando mais tarde tentarmos delimitar eutanásia voluntária e involuntária. Isto resulta da ligação entre justiça e direitos, e cabe-nos dizer algo sobre isso agora. Sempre que alguém comete um acto de injustiça está a infringir um direito, uma vez que a justiça está relacionada com tudo o que é devido às pessoas, e tudo isso constitui um direito. Devemos, no entanto, dizer algo sobre os diferentes tipos de direitos. Faz-se geralmente uma distinção entre ter um direito, no sentido de ter uma liberdade inalienável, e “reivindicar um direito” ou “recebê-lo”.8 A melhor maneira de entender tal distinção parece residir no exemplo seguinte. Dizer que uma pessoa tem um direito no sentido de liberdade significa que ninguém pode exigir que essa pessoa não faça aquilo a que tem direito. O facto de ter esse direito resulta do facto de não existir qualquer tipo objecção a que o exerça. Assim qualquer pessoa tem direito de andar numa rua pública ou de estacionar o carro num espaço público para o efeito. Isto não implica que alguém não tente evitar que essa pessoa o faça. Se por alguma razão não quero que alguém estacione o carro em determinado local, tenho o direito de estacionar aí ou levar os meus amigos a fazê-lo, evitando assim que outra pessoa exerça o seu direito (no sentido de liberdade). Bem diferente é o caso de direito por reivindicação. Este é o tipo de direito que vai além da minha liberdade, quando, por exemplo, tenho um lugar de estacionamento privado; neste caso, os outros têm o dever da não-interferência, bem como no caso de serviços ou bens que me foram prometidos. Por vezes, a posse destes direitos confere às outras pessoas o dever de assegurarem que eles me sejam garantidos, porém, outras vezes o seu dever cinge-se simplesmente ao acto de não-interferência. Se uma queda de neve bloqueia o meu lugar de estacionamento privado, ninguém está geralmente obrigado a limpá-lo por mim. A reivindicação de um direito implica deveres; por vezes, esses deveres são deveres de não-interferência; outras vezes são deveres de serviços. Se o direito de alguém me atribui o dever de não-interferência, então eu “não tenho o direito” de o fazer; do mesmo modo, se o direito de alguém me atribuir o dever de lhe fornecer algo, “não tenho o direito” de me recusar a fazê-lo. Falta-me um direito que é o da liberdade; “não tenho liberdade” para impedir ou recusar a prestação de determinado serviço.
Onde se enquadra o direito à vida neste cenário? Sem dúvida que as pessoas têm o direito de viver no sentido de liberdade, mas o que é fundamental é o conjunto de direitos por reivindicação que o direito à vida acarreta. O principal de entre estes é, obviamente, o direito de ter uma vida livre de interferências que a possam ameaçar. Se alguém nos aponta uma arma ou tenta envenenar-nos com uma bebida, podemos, simplesmente, exigir que essa pessoa desista da sua intenção. E depois também podemos exigir a prestação de serviços por parte de médicos, departamentos de saúde, guarda-costas ou bombeiros; ou seja exigimos direitos resultantes do estabelecimento de contratos ou acordos com entidades públicas. Talvez não seja necessário especificar aqui que os deveres dessas pessoas ou entidades para connosco se enquadram no nosso direito à vida; da mesma forma como poderíamos dizer que os serviços que nos são devidos por parte de alfaiates e costureiros resultam do nosso direito de estarmos elegantes. Todavia, os contratos resultantes da relação médico-paciente assumem um papel de extrema importância quando discutimos o certo e errado sobre a questão da eutanásia, e por isso mesmo são aqui foco de análise.
Terão as pessoas direito àquilo que necessitam para que a sua sobrevivência seja garantida, além dos direitos que lhes são conferidos através de contratos especiais nos quais se encontra garantida a participação de outras pessoas no sentido de assegurarem essas necessidades? Terão as pessoas dos países subdesenvolvidos, em que a fome é um fenómeno generalizado, direito à alimentação que tão claramente necessitam? Ao discutir esta questão, Joel Feinberg sugere que estas pessoas deveriam poder fazer uma “reivindicação”, distinguindo-a de uma “reivindicação válida”, da qual decorre a reivindicação por direito.
“Penso que os escritores de manifesto, que parecem associar necessidades básicas ao que descrevem como “direitos humanos”, deveriam ser descritos como aqueles que exercem pressão moral sobre a comunidade mundial para que todas as necessidades básicas humanas sejam consideradas como reivindicação (no sentido comum de prima facie) hoje em dia assumidos como merecedores de séria consideração, embora, em muitos casos, não possam ser analisadas como reivindicações válidas plausíveis, isto é, como fundamento para qualquer outro dever das pessoas. Esta maneira de ver as coisas evita a anomalia, hoje tal como acontecia nas sociedades pré-industriais, de se atribuírem a todos os seres humanos “direitos sociais e económicos sob forma de férias periódicas remuneradas”.9
Esta ideia parece razoável, embora nos apercebamos de que existem determinados direitos que não se encontram enquadrados em contratos, tais como os direitos que as crianças têm a apoio dos pais e estes ao apoio dos filhos quando atingem a velhice. Todavia, ambos os casos dependem de acordos sociais existentes.
Debrucemo-nos agora sobre o modo como o direito à vida afecta a questão da moralidade dos actos de eutanásia. Serão tais actos sempre ou só às vezes determinados pelo direito à vida? É certamente uma possibilidade; pois embora um acto de eutanásia seja, por definição, uma maneira de optar pela morte para o bem daquele que está para morrer, não há, como referimos anteriormente, uma ligação direita entre aquilo a que uma pessoa tem direito e aquilo que é feito para o seu próprio bem. Sem dúvida que as pessoas têm direito apenas àquilo que é, em geral, bom: não pensamos que as pessoas têm direito à poluição ou ao lixo. No entanto, uma pessoa pode ter direito a algo sem o qual ela própria estaria bem melhor; sempre que os direitos existem, o que conta é a vontade de cada um e não a avaliação que ela própria ou outra pessoa faz dos prejuízos ou benefícios. Deste modo os direitos resultantes do direito à vida (o dever comum de não-interferência e o dever imputado a certas pessoas para a prestação de um serviço) não são afectados pelo nível da qualidade ou esperança de vida de alguém. Apesar de ser verdade que determinada pessoa, como habitualmente dizemos, “esteja melhor morta”, desde que essa pessoa deseje viver não existe justificação para a matarmos ou permitirmos deliberadamente que morra. Todos nós temos o dever de não-interferência, e alguns de nós têm o dever de preservar a vida dos outros. Suponhamos, por exemplo, que um exército em retirada é forçado a deixar para trás soldados feridos ou esgotados, num local árido repleto de destroços e isolado pela neve, e onde a única perspectiva é a morte cruel à fome ou às mãos do inimigo. Nesta situação, a prática comum é a da bala piedosa. Pensemos, no entanto, que um destes soldados quer que o deixem vivo. Parece claro que os seus camaradas não têm o direito de o matar, embora fosse um caso completamente diferente analisar a possibilidade de lhe administrarem uma droga que prolongasse a vida. O direito à vida pode, por vezes, implicar o dever de serviço benéfico, mas não é esse aqui o caso. O que nos dá é o direito de sermos deixados em paz.
Curiosamente, chegámos à distinção habitualmente feita entre eutanásia “activa” e “passiva” através da consideração do direito à vida, geralmente tida como irrelevante para a questão moral.10 Uma vez que admitimos que o direito à vida constitui um fundamento distinto para objectar a alguns actos de eutanásia, e que este direito cria um dever de não-interferência mais abrangente do que os deveres de prestação de cuidados, não existe qualquer dúvida sobre a importância de distinguirmos entre eutanásia activa e passiva. Nos casos em que qualquer pessoa possa ter o dever de deixar uma outra em paz, podemos dizer que ninguém tem o dever de manter a sua vida, ou que só algumas pessoas o possuem.
Onde se encontram as fronteiras entre o conceito de eutanásia “activa” e “passiva”? De alguma forma as próprias palavras podem induzir-nos em erro, uma vez que sugerem a diferença entre acto e omissão, o que não é correcto. É claro que o acto de atingirmos alguém com uma arma se enquadra no que temos vindo a dizer sobre “interferência”, e o acto de não administrarmos uma droga pode ser incluído nos casos de recusa de tratamento ou auxílio. Todavia, o acto de desligarmos um respirador auxiliar devia ser considerado como semelhante ao de não o ligarmos; se os médicos tivessem decidido que a morte deveria ser permitida a um paciente, qualquer dos dois actos deveria seguir-se, e ambos deveriam ser considerados como eutanásia passiva e não activa, no caso de ela ser posta em questão. A ideia, ao que parece, é que a interferência durante o processo de tratamento não é a mesma quando se dá a incursão no curso da vida de uma pessoa, especialmente se as pessoas que têm o dever de assegurar a preservação e continuidade da vida são as mesmas que determinam a sua interrupção. Em casos como este, poderíamos falar do desligar da máquina como causa da morte da pessoa ou do hospital como responsável pela autorização dessa morte. Atendendo a todas estas considerações, é o acto de morte que é determinado sob a égide da não-interferência, mas não em todos os casos.
De forma geral, os médicos reconhecem esta distinção, e os fundamentos segundo os quais alguns filósofos a negaram são insustentáveis. Por exemplo, James Rachels acredita que a diferença entre activa e passiva é relevante em qualquer contexto, e deveria sê-lo sempre, e referiu um exemplo no qual não parece haver qualquer diferença entre as duas. Se alguém visse uma criança a afogar-se numa banheira seria igualmente errado deixá-la afogar-se ou empurrar a sua cabeça para debaixo de água.11 Se “não há diferença” significa que qualquer dos actos seria injusto, então é verdade. Não significa que matar é pior do que permitir a morte, mas que ambos são contrários a virtudes distintas, o que nos dá a possibilidade de em algumas circunstâncias um acto não ser permitido e o outro sê-lo. No contexto criado por Rachels, ambos são maus: forçar uma criança a afogar-se é contrário à ideia de justiça — algo que não temos o direito de fazer. Deixá-la afogar-se não é contrário à ideia de justiça, mas é um exemplo particularmente claro de falta de caridade. Neste caso não faz diferença alguma, pois as exigências da justiça e da caridade são coincidentes; porém no caso do exército em retirada já não coincidem: a caridade exigia naquele caso que o soldado ferido fosse morto, não fosse a justiça exigir que a sua vida fosse poupada.12 Em casos como este faz toda a diferença saber se uma pessoa opta pela morte de outra assumindo uma acção positiva ou se permite que a outra morra. Se fizermos uma analogia com a questão da propriedade tornar-se-á mais claro. Se uma pessoa possui algo, ela tem direito a isso mesmo que daí resulte algum prejuízo, e não temos o direito de a privar das suas posses. Todavia, se essa coisa desaparecer ou for destruída, talvez nada nos exija que a recuperemos; não podemos privar uma pessoa do que é seu, mas podemos permitir que essa coisa desapareça ou seja destruída. Não queremos com isto dizer que quando nos recusamos a fazer a vontade de alguém estejamos a incorrer num acto pouco amigável ou baseado num juízo de valor arrogante. Apesar de tudo, estaríamos dentro dos nossos direitos, e poderia acontecer que nenhuma objecção moral fosse levantada à nossa recusa.
Importa realçar que os direitos de uma pessoa podem estar entre nós e a acção que desejamos levar a cabo para o bem dessa mesma pessoa. Podem ainda impedir a acção que gostaríamos de empreender para o bem dos outros, tal como quando estamos tentados a matar uma pessoa para o bem de muitas. É todavia interessante que os limites da interferência permitida, embora incertos, sejam mais rigorosos no primeiro caso do que no segundo. Talvez não existam casos em que seria correcto matar alguém contra a sua vontade, para o seu próprio bem, a não ser que esses casos pudessem também ser considerados como situações em que se permite que a pessoa morra, tal como no exemplo do respirador. Todavia, há circunstâncias, embora raras, em que se justificaria matar um homem para o bem de outros, e o acto de “matar” seria apenas a descrição do que estaria a ser feito. Vejamos: um veículo fora de controlo poderia ser afastado de um caminho onde poderia matar mais do que uma pessoa para um outro onde apenas uma pessoa morreria.13 Porém não seria permitido desviar o veículo em direcção a alguém com a intenção de o matar, contra a sua vontade, para o seu próprio bem. A analogia com o direito de propriedade esclarece este ponto. Não podemos destruir a propriedade de alguém contra a sua vontade alegando que essa pessoa estaria melhor sem esse bem; no entanto, há circunstâncias em que essa propriedade poderia ser destruída para o bem dos outros. Se a casa de uma pessoa está a ruir e pode matá-la, é da sua responsabilidade; pode, porém, ser destruída sem cometermos um acto de injustiça no caso de propagação de fogo.
Podemos ver então que a distinção entre activo e passivo tem uma importância primordial no campo da eutanásia. Também parece estar claro por que é que o outro argumento de James Rachels, de que é frequentemente “mais humano” matar do que deixar morrer, não mostra que a distinção entre eutanásia activa e passiva é moralmente irrelevante. Neste sentido, pode ser “mais humano” privar alguém da propriedade que lhe causa dano, ou recusar pagar o que é devido ao debochado devasso de Hume; mas se afirmamos isto, temos que admitir que um acto que é “mais humano” do que a sua alternativa pode ser censurável porque infringe determinados direitos.
Até agora dissemos muito pouco sobre o direito a serviços enquanto oposto ao direito de não-interferência, embora não tenha sido definido que ambos devessem estar sob a égide do “direito à vida”. E o que dizer sobre o direito de proteger a vida a determinados tipos de pessoas como guarda-costas, bombeiros, ou médicos? Ao contrário das pessoas em geral, estes não se enquadrarão dentro dos seus direitos se simplesmente se recusarem a interferir e a não preservarem as vidas humanas. A reivindicação de direitos do sujeito é dupla no caso destas pessoas, e a eutanásia passiva bem como activa, não se aplica aqui se for contra a sua vontade. Isto não quer dizer que este indivíduo tenha direito a todo e qualquer serviço necessário para lhe prolongar a vida; os direitos das outras pessoas determinam limites sobre o que pode ser exigido, quer porque têm o direito de não ter interferências nas suas vidas quer porque possuem o mesmo direito na reclamação desses serviços. Além disso, é necessário averiguar em cada caso, quais os termos da relação ou acordo implícito. Os bombeiros e os guarda-costas têm presumivelmente o dever simples de preservar a vida, dentro dos limites de justiça em relação aos outros e de razoabilidade em relação a si próprios. No que respeita aos médicos, pode ser diferente, uma vez que o seu dever está ligado não só a preservação da vida, mas também ao alívio do sofrimento. Não está claro quais são exactamente os deveres de um médico para com os seus pacientes, se a vida pode ser prolongada às custas de sofrimento e se este só pode ser aliviado através de métodos que encurtam a vida. George Fletcher defende que aquilo a que um médico está obrigado, depende efectivamente do que é feito, pois é isto que qualquer paciente espera razoavelmente que aconteça.14 Se determinados procedimentos fazem parte da prática médica regular, parece lógico que os pacientes os possam exigir, apesar de, ao fazê-lo, isso possa ir contra os seus interesses. Mais uma vez, não se trata do que é “mais humano”. É inegável que o direito de um paciente à vida, estabelece limites a actos permissíveis de eutanásia. Se essa pessoa não quer morrer, ninguém tem o direito de praticar eutanásia activa com ela, e a eutanásia passiva pode também estar fora de questão, uma vez que tem direito a serviços médicos ou outros.
Talvez muito poucos neguem o que até aqui foi dito sobre a inaceitabilidade dos actos de eutanásia simplesmente porque, até aqui, só falámos de casos de pessoas que desejam viver, e sobre os seus direitos, enquanto que aqueles que defendem a eutanásia geralmente pensam ou em casos de pessoas cujo desejo expresso é morrer ou sobre aqueles cujos desejos não podem ser reconhecidos ou porque não se pode propriamente dizer que tenham desejos ou porque, por uma ou outra razão, não nos é possível determinar quais são efectivamente os seus desejos. A questão que nos cabe aqui levantar agora é se neste último caso a eutanásia é diferente daquela que discutimos até aqui. Teríamos o direito de matar alguém para o seu próprio bem se não tivéssemos qualquer ideia segura de que essa pessoa desejava viver? E o que dizer dos deveres dos médicos em prolongarem a vida em circunstâncias semelhantes? Este é um problema difícil. Por um lado, parece ridículo supor que o direito de uma pessoa à vida é algo que pressupõe deveres apenas quando deu a indicação que deseja viver; tal como alguém que pede alguma coisa emprestada, tem efectivamente o dever de a restituir somente se a pessoa que a emprestou indicar que a quer de volta. Por outro lado, podemos argumentar que há algo de ilógico no que respeita a ideia de que um direito foi violado se alguém é incapaz de dizer o quer ou não for privado de algo que lhe faz mais mal do que bem. Todavia, comparado com o contexto da propriedade diríamos que um direito teria sido violado. Apenas quando alguém anteriormente nos tivesse dito que em tais circunstâncias não desejaria reaver o objecto, poderíamos assumir que o seu direito tinha sido renunciado. Talvez se fossemos capazes de fazer juízos seguros sobre o que qualquer um pode aspirar nestas circunstâncias, ou sobre o que desejaria à partida caso tivesse ponderado sobre o assunto, poderíamos considerar o direito à vida como “latente”, a necessitar ser asseverado caso os deveres comuns permanecessem. Porém não podemos realizar esta presunção; simplesmente não sabemos o que a maioria das pessoas desejaria que fizéssemos, ou teria desejado, a não ser que no-lo digam. Este é certamente o caso no que diz respeito às medidas activas para pôr termo à vida. Possivelmente é diferente, ou tornar-se-á diferente, no que respeita à preservação da vida, tal é o sentimento geral contra o uso de procedimentos sofisticados em pacientes terminais, e tão receado por pessoas idosas ou doentes terminais. Mais uma vez a distinção entre eutanásia activa e passiva assume protagonismo, mas desta feita porque a reacção das pessoas a ambas é tão diferente. Na ausência de provas concretas, é apenas possível presumir que, além de certas circunstâncias, alguém possa não desejar ser mantido vivo; não é certamente possível assumir que essa pessoa deseja ser morta.
No último parágrafo iniciámos a discussão sobre a eutanásia voluntária, que agora temos que continuar. Sobre os casos de pessoas em que não há dúvida que desejam morrer há que dizer que ou, nesta situação, essa pessoa já nos tinha informado sobre esse desejo com antecedência, e não há indícios de alteração da sua vontade, ou nos diz no momento, estando em posse das suas faculdades mentais sem pressão. Poderíamos, neste caso, dizer que as objecções avançadas anteriormente contra actos de eutanásia, os quais relembramos, e que eram fundadas na questão dos direitos, tinham desaparecido. Não parece que estejamos a atentar contra o direito à vida de alguém ao matá-lo com a sua permissão e efectivamente na sequência do seu pedido. Por que não poderia alguém renunciar ao seu direito à vida, ou como seria mais provável que acontecesse, anular alguns dos deveres de não-interferência vinculados ao seu direito? (É bem mais provável que indique como, quando quem deseja que lhe tire a vida, do que apenas refira que qualquer pessoa o possa fazer quando e como queira.) Da mesma forma, uma pessoa pode autorizar e pedir a destruição da sua propriedade. O que importa é que dê a permissão crucial, sendo que isto é suficiente para anular o dever que geralmente lhe vem associado. Se alguém nos autoriza a destruir-lhe a propriedade, deixa de ser válida a premissa de que não temos o direito de o fazer, e não vejo por que terá que ser diferente quando se trata da vida de uma pessoa. Poderia ser feita uma objecção no sentido de que apenas Deus tem o direito de tirar a vida, mas, neste ensaio, os argumentos religiosos, enquanto opostos aos morais, serão deixados de lado. Religião aparte, se a morte é permitida a alguém que deseja morrer ou esse alguém é morto, parece não haver espaço para a questão da violação de direitos. Porém, não é o mesmo que dizer que não existe qualquer objecção moral. Mesmo no caso da propriedade, que é no fundo um contexto de menor importância, poderemos estar errados ao destruir aquilo a que temos direito. Pois, além do valor que essa propriedade possa ter para outras pessoas, é também valiosa para aquele que a quer ver destruída, e, neste caso, a caridade pode exigir que actuemos onde a justiça não actuou.
Revejamos agora as conclusões desta parte do argumento sobre a eutanásia e o direito à vida. Foi aqui exposto que a este respeito surgem algumas restrições à prática de eutanásia moralmente aceitável. A eutanásia involuntária activa é regulada pela parte do direito à vida que implica o dever de não-interferência, apesar da eutanásia involuntária passiva não ser regulada, excepto em situações em que o direito à preservação da vida tenha sido criado por algum acordo especial entre o médico e o seu paciente, e as implicações desse contrato nem sempre estão claras. A eutanásia voluntária é outro assunto distinto: tal como foi sugerido no parágrafo anterior, nenhum direito é violado se a morte for permitida a alguém na sequência de um pedido expresso.
Cabe-nos agora dizer algo de bem diferente acerca da outra objecção geralmente feita contra o causar a morte de alguém, sendo que é contra o princípio da caridade ou benevolência. A caridade é a virtude que nos liga ao bem dos outros, e porque a vida constitui geralmente um bem, a caridade exige, por norma, que a vida seja salva ou prolongada. Uma vez que definimos a eutanásia como um acto que promove a morte de outra pessoa para o seu próprio bem, a caridade ser-lhe-á favorável neste caso. Isto não quer dizer que a caridade permite um acto que a justiça recrimina, mas se um acto de eutanásia não for contrário à ideia de justiça, ou seja, se não violar direitos, a caridade estará potencialmente mais inclinada para a aceitar.
Uma vez mais a distinção entre eutanásia voluntária e involuntária deve ser discutida. Estaríamos no caminho da caridade ao procurarmos a morte de alguém, apesar deste querer viver, ou pelo menos, se não nos tivesse informado que desejaria morrer? Tem sido defendido que em tais circunstâncias a eutanásia activa violaria o direito à vida, mas não no caso da eutanásia passiva, a não ser que o sujeito possuísse algum direito especial relativo aos serviços de preservação da vida conferidos por aquele que o autoriza a morrer. O que determinaria a caridade nestas circunstâncias? Obviamente que quando alguém quer viver, presumimos que será beneficiado se a sua vida for prolongada, e se assim é, a questão da eutanásia não se coloca. Mas também é possível que essa pessoa desejasse viver mesmo em circunstâncias onde a sua morte fosse bem melhor para ela: talvez não tenha consciência da terrível situação em que se encontra, ou talvez tenha medo de morrer. Deste modo, apesar da nossa natural resistência em aceitarmos a vontade de alguém em matéria de vida ou morte, poderíamos de forma legítima recusarmo-nos a prolongar a vida, mesmo de alguém que nos tenha pedido que a prolongássemos, do mesmo modo que recusaríamos dar uma droga a um soldado ferido, à partida condenado. E, neste caso, torna-se ainda mais evidente que a caridade nem sempre determina que a vida de alguém seja prolongada, quando os desejos de alguém são conhecidos, seja de forma real ou hipotética.
Nada mais nos resta acrescentar sobre a relação da caridade com a eutanásia involuntária passiva, que não é regulada pelo direito à vida, tal como o é a eutanásia involuntária activa. O que pode, no entanto, esclarecer a caridade sobre a eutanásia voluntária passiva e activa? Quando analisámos a questão da justiça, sugerimos que alguém, se na posse plena das suas faculdades mentais, poderia exprimir de forma serena o seu desejo no sentido de outras pessoas lhe permitirem tirar a própria vida ou o ajudassem morrer, sendo que caso contrário essa ideia estaria fora de questão. Foi, no entanto, referido que este facto não determinaria a questão da aceitabilidade moral, o que devemos agora analisar. Será que a caridade não pode defender princípios divergentes da justiça? De facto, pode. O facto de alguém desejar morrer parece sugerir que a sua vida é miserável, e apesar da sua recusa em viver o poder privar das coisas que poderia ter usufruído, o seu desejo de morrer pode, nestas circunstâncias, ser oposto ao seu próprio bem, tal como o seria se se tratasse de suicídio. Talvez possamos ter esperança que o seu estado de espírito melhore. Talvez esteja errado ao pensar que a sua doença é incurável. Talvez queira morrer pelo bem de alguém para quem julga ser um fardo, e nós não estamos preparados para aceitar o seu sacrifício, seja por nós próprios ou por outros. Em casos como este, e provavelmente há muitos, não seria em prol do seu próprio bem que desejamos ou permitimos que morra, e, consequentemente, a eutanásia, tal como aqui é definida, não seria uma opção. Com isto não pretendemos negar que existam casos de eutanásia voluntária activa e passiva, contra as quais nem a caridade ou a justiça poderiam opor-se.
Acabámos de considerar a legitimidade moral da eutanásia voluntária, involuntária, activa e passiva. E chegámos à conclusão que a eutanásia involuntária activa (em termos gerais, matar alguém contra o seu desejo ou sem o seu consentimento) nunca é justificada; isto é, a morte de uma pessoa para o seu próprio bem nunca justifica o acto a não ser que o seu consentimento tenha sido expresso. Os direitos de uma pessoa serão violados com tal acto, e, por isso, é contrário à ideia de justiça. Todavia, todas as outras possibilidades, eutanásia involuntária passiva, eutanásia voluntária activa e eutanásia voluntária activa, são por vezes compatíveis com a ideia de justiça e caridade. Porém, não nos podemos esquecer das condições de peso que acompanharam a definição de eutanásia proposta neste ensaio; entendemos um acto de eutanásia como aquele que é empreendido para o bem daquele que vai morrer.
Vejamos como a nossa tese se aplica às práticas correntes. São estas boas ou más? E que mudanças devem ser operadas, pensando agora não só na questão da moralidade de determinados actos de eutanásia, mas também nas consequências indirectas em se adoptarem práticas diversas, nos abusos que daí podem decorrer e nas mudanças que podem resultar caso a eutanásia seja reconhecida como parte das práticas sociais.
A primeira ideia que nos surge é que é errado interrogarmo-nos se deveríamos introduzir a prática da eutanásia, como se fosse algo que não existe de facto. Por exemplo, sempre que o diagnóstico médico é mau, especialmente em casos onde o processo de degeneração desenrola uma série de emergências médicas, é comum que os médicos recomendem o não prolongamento da vida. Se estes médicos não estão seguramente a agir dentro dos seus direitos legais, isto é algo que pode surgir como uma surpresa não só para eles como para o público em geral. Também é óbvio que a eutanásia é sobretudo aplicada quando se trata de pessoas de idade. Se alguém atingiu uma idade avançada e tem pouco tempo de vida ao mesmo tempo que é atacado por uma doença que torna a sua vida miserável, os médicos nem sempre avançam com a profilaxia de prolongamento da vida. Talvez os pacientes com poucas posses ainda sejam alvo de menor consideração do que os mais abastados, sendo, frequentemente, deixados a morrer em paz; mas este não é, em todo o caso, uma prática médica bem conhecida, que se traduz numa forma de eutanásia.
Sem dúvida que o caso de crianças com problemas mentais ou físicos será apresentado como outro exemplo de prática de eutanásia tal como já acontece, uma vez que permitimos que tais crianças morram. É certo que permitimos de forma deliberada que morram; crianças com malformações graves ao nível da espinha bífida, nem sempre são operadas, mesmo sabendo que sem essa operação morrerão; e mesmo no caso de crianças afectadas pelo Síndrome de Down que sofrem de obstrução intestinal, a simples operação que tornaria possível alimentá-las não é feita.15 Quer isto se trate de eutanásia tal como a entendemos ou apenas como os Nazis a entendiam é outra questão. Devemos colocar a questão essencial, “É para o bem da própria criança que os médicos e os pais optam pela sua morte?” Em alguns casos, a resposta pode muito bem ser que sim, e, o que é mais importante, pode ser também verdade que o tipo de vida que constitui um bem, não seja possível ou provável para aquela criança, e que para ela não esteja reservado pouco mais além de sofrimento e frustração.16 Porém, tem que haver o pressuposto de que o diagnóstico médico é terrível, como deve ser para algumas crianças que sofrem de espinha bífida. No que respeita a crianças com o Síndrome de Down, as coisas são bem diferentes. A maioria destas consegue ter uma vida razoavelmente agradável durante bastante tempo, permanecendo crianças toda a sua vida, mas capazes de estabelecer relações afectivas, envolverem-se em actividades lúdicas e levar a cabo tarefas simples. O que acontece, de facto, é que os médicos que fazem recomendações contrárias à preservação da vida no caso de crianças deficientes, não estão a pensar nelas, mas nos pais e na família ou no “fardo social” que elas constituem caso sobrevivam. Então não é para o seu próprio bem, mas para evitar o incómodo de terceiros que é permitido que morram. Quando exposto desta maneira, parece inaceitável: pelo menos não aceitamos facilmente o princípio que os adultos que precisam de cuidados especiais sejam considerados um fardo quando decidimos mantê-los vivos. Devemos insistir, porém, no facto de que se é permitido que as crianças que sofrem do Síndrome de Down morram, isto não constitui um caso de eutanásia a não ser à luz do que era entendido por Hitler. E para as nossas crianças, uma vez que temos escrúpulos em as gasear, nem mesmo o modo como as deixamos morrer é “doce e fácil”; quando a obstipação intestinal de uma destas crianças não é tratada, ela simplesmente morre à fome. Talvez alguns tomem estes casos como argumento para tornarem a eutanásia activa, estando neste caso na companhia de um oficial das S.S. estacionado em Warhgenau, que enviou um memorando a Eichmann dizendo que “no Inverno seguinte não havia hipótese de alimentar os Judeus” e deixando ao seu critério a proposta de se “não seria uma solução mais humana matar os Judeus incapazes de trabalhar através de um método rápido”.17 Se dizemos ser incapazes de cuidar das nossas crianças com deficiência, não estamos muito longe da verdade do oficial das S.S. que dizia que os Judeus não podiam ser alimentados.
Apesar de tudo, se é legítimo permitir que crianças deformadas morram, uma vez que terão uma vida miserável, e não tomarmos medidas para prolongarmos um pouco a vida de um recém-nascido, a qual não pode ir além de alguns meses de cuidados intensivos, há um problema sério no que respeita à eutanásia activa por oposição à passiva. Existem casos bem conhecidos em que uma equipa médica infelizmente viu morrer uma criança à fome e de desidratação por não se sentir capaz de lhe aplicar uma injecção letal. De acordo com os princípios analisados anteriormente, não teriam o direito de o fazer, uma vez que a criança não pode exprimir o pedido nesse sentido. A única solução possível — assumindo que a eutanásia voluntária activa fosse legalizada – seria a de nomear tutores que actuariam nos interesses da criança. Sob outro ponto de vista, esta situação não seria tão perigosa, mas actualmente, quando as pessoas assumem tão facilmente que a vida de uma criança deficiente não tem valor, repugnar-nos-ia aceitá-lo.
Finalmente, ainda nos cabe uma palavra sobre as crianças com deficiência mental profunda. Para estas também seria melhor dizermos que a morte seria melhor. Mas nem mesmo a deficiência mental coloca automaticamente uma criança no caminho de um possível acto de eutanásia. Se o nível de consciência for baixo, não podemos dizer que têm uma boa vida, o mesmo se aplica nos casos daqueles que sofrem de senilidade extrema. Ainda assim, se não estão em processo de sofrimento, o facto de alguém desejar a sua morte não constitui um acto de eutanásia. Talvez a caridade não exija que medidas efectivas sejam tomadas para manter estas pessoas vivas, mas a questão da eutanásia não entra aqui, nem em casos em que alguém como Karen Ann Quinlan esteja num estado de coma permanente. Muito se poderia dizer sobre este último caso. Poderíamos mesmo sugerir que no caso de não-consciência esta “vida” não é aquela a que se refere o “direito à vida”. Mas não é nossa função analisá-lo aqui.
O que devemos considerar, ainda que de forma breve, é a possibilidade da eutanásia genuína, e não aquela contrária aos princípios da justiça e caridade, dever ser legalizada sobre uma vasta área de casos. Pois sujeitamo-nos ao problema sério dos abusos. Muitas pessoas desejam ardentemente ver-se livres dos seus familiares idosos e mesmo dos seus companheiros enfermos. Haverá alguma maneira de garantir que não assumam como eutanásia aquilo que é de facto para o seu próprio benefício? E seria possível prevenir a ocorrência de actos, que seriam genuinamente actos de eutanásia, mas considerados moralmente inaceitáveis porque violam os direitos do paciente que desejava viver?
Talvez o mais longe que nos fosse permitido ir seria o de encorajar os pacientes a fazer acordos com os seus médicos, fazendo-lhe saber se desejam prolongar a própria vida no caso de doenças terminais dolorosas ou de incapacidade. Um documento como o “Living Will” (Testamento da Vida) parece bastante razoável, e, ao dar a conhecer o desejo expresso do paciente, deveria dar também garantia de imunidade legal ao médico, atendendo às possíveis acções judiciais dos familiares.18 A legalização da eutanásia é de todo um assunto completamente diferente deste. Além da particular repugnância que os médicos sentem em aplicar a injecção letal, é de importância primordial manter uma barreira psicológica contra a ideia de matar um outro ser humano. Por outro lado são os casos de eutanásia activa que são mais propensos ao abuso. Hitler não teria morto 255.000 pessoas no seu programa de “eutanásia”, se tivesse que ter esperado que necessitassem de um tratamento que lhes salvasse a vida. Existem, no entanto, outras objecções à eutanásia activa, mesmo à eutanásia activa voluntária. Em primeiro lugar, seria difícil definir procedimentos que protegessem as pessoas contra os abusos de persuasão em relação a darem o seu consentimento. E em segundo lugar, a possibilidade de eutanásia voluntária activa poderia introduzir alterações terríveis nas relações sociais. Como as coisas estão neste momento, as pessoas, em geral, esperam ser cuidadas quando adoecem ou ficam velhas. Esta é uma das coisas boas que possuímos, mas que podemos perder, sendo que a nossa vida pioraria sem este bem. Podemos esperar que alguém que possa vir a necessitar de muitos cuidados chame um médico e exija a sua própria morte. Algo de semelhante poderia constituir um bem no caso de uma comunidade gravemente afectada pela pobreza, onde as crianças sofressem bastante com a falta de alimento; mas nas sociedades ricas como a nossa, seria certamente um desastre espiritual. Tais possibilidades deveriam fazer-nos pensar e ser cautelosos quando defendemos a eutanásia, mesmo em circunstâncias em que a aplicação do princípio moral a um caso isolado não a proíbe.19