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Crítica
30 de Setembro de 2005   Ética

Desejo e sentido da vida

Simon Blackburn
Tradução de Faustino Vaz

Alguns moralistas recomendam que a vida “autêntica” não significa simplesmente lembrarmo-nos de que um dia morreremos, mas de alguma maneira viver permanentemente com a consciência desse facto, “viver-para-a-morte”. O poeta John Donne tinha mesmo o seu próprio retrato em que aparecia pintado de mortalha, antecipando cheio de esperança a maneira como iria encarar o Juízo Final. Todavia, a maioria das pessoas não acha a preocupação de Donne particularmente saudável. De facto, tal estado de espírito prevalece apenas em condições de instabilidade social e impotência política, correspondendo a uma tendência para o pessimismo e o suicídio entre a intelligentsia. Ora, não é fácil argumentar com um estado de espírito. Se o poeta se sente atraído pela serenidade da morte, ou nauseado pela desordem humana, talvez precise de uma mudança de governo, ou de um tónico, ou de umas férias, de preferência a um argumento.

A obsessão pela morte pode correr o perigo de inconsistência. É inconsistente a veemência de que a morte é uma coisa boa, e até um luxo em si, e que ao mesmo tempo o que torna a vida absurda e ilusória é que ela tem um fim. Mas por que razão é isto um problema se a morte é estimável?

Apesar de argumentarem que a morte não é para ser temida, os estóicos não promoveram qualquer preocupação mórbida com a morte. Em vez disso, tal como o uso moderno do seu nome sugere, a sua mensagem era de força de espírito e resignação perante a morte, ou de fatalismo em face do inevitável desenrolar dos acontecimentos. A atitude estóica está enraizada numa das conotações populares do próprio termo “filosofia”, como se pode ver no comentário de uma pessoa sobre a desgraça de outra: “encara as coisas filosoficamente — simplesmente não penses nisso”. P. G. Wodehouse provavelmente tem a última palavra sobre este aspecto dos Estóicos. Jeeves consola Bertie:

“Não sei se posso chamar a sua atenção para uma observação do imperador Marco Aurélio. Disse ele: “Acontece-te o que quer que seja? Isso é bom. Faz parte do destino de Universo determinado para ti desde o início. Tudo o que te acontece faz parte da grande rede””.

Respirei com um estertor.

“Ele disse realmente isso?”

“Sim, Sir”.

“Bem, podes dizer-lhe da minha parte que ele é um idiota. As minhas malas estão prontas?

Como Bertie observou judiciosamente mais tarde: “Duvido, como questão de facto, se o que Marco Aurélio afirmou poderá alguma vez dar moral às tropas quando elas se deparam com um destino terrível: terás de querer esperar que a agonia se abata sobre ti”.

Os filósofos e poetas que tentam reconciliar-nos com a morte não o fazem habitualmente com argumentos tão incisivos como os Estóicos, nem com o fatalismo Estóico, mas lamentando-se da própria vida. Já todos ouvimos o funesto refrão: o mundo não é senão discórdia, instabilidade e desordem. A vida é tédio e fardo. As suas esperanças ilusórias, os seus prazeres insignificantes. O desejo é infinito e insaciável; a satisfação não traz apaziguamento. Carpe Diem (aproveita o dia) — mas não podes aproveitar o dia porque o dia se desvanece enquanto tentas fazê-lo. Tudo mergulha no abismo, nada é estável; palácios e impérios desfazem-se em pó; friamente, o universo move-se e tudo será no fim esquecido.

Vaidade das vaidades, diz o pregador, vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Que benefício retira o homem de todo o seu labor na terra?

Acima de tudo, os mortos têm de ser invejados. A morte é preciosa. Melhor seria não ter nascido, mas uma vez nascido, o melhor será morrer depressa.

O perigo aqui consiste naquilo a que o filósofo George Berkeley (1685–1753) chamou o vício da abstracção, “a rede subtil e elegante de ideias abstractas que deixam os espíritos dos homens tão miseravelmente perplexos e enredados”. É mais fácil lamentar a natureza irrisória do desejo e as suas inconsistências se não nos centrarmos em nada, mantendo a discussão em termos abstractos. Desse modo, parece desolador se a satisfação do desejo é efémera e o próprio desejo é instável e susceptível de dar origem apenas a mais insatisfação. Mas será que isto é de lamentar? Pensando em termos concretos, supõe que nos apetece um bom jantar e que ele nos deu prazer. Deverá envenenar o prazer que tivemos a reflexão de que o prazer é efémero (o prazer deste jantar não subsistirá para sempre), de que o desejo de um bom jantar não perdura (mais tarde não sentiremos fome) ou é apenas temporariamente satisfeito (iremos querer jantar amanhã outra vez)? A verdade é que a vida não se tornaria melhor se quiséssemos sempre um jantar, ou se, tendo jantado, não quiséssemos mais nenhum jantar, ou se aquele jantar bastasse para toda a vida. Nenhuma destas coisas parece remotamente desejável; logo, porquê lamentarmo-nos se as coisas não são assim?

Se a disposição pessimista abandonar a abstracção de certas ideias, tenderá a concentrar-se em desejos problemáticos, tais como o desejo de riqueza, ou o desejo erótico. É fácil argumentar que estes desejos são intrinsecamente insaciáveis, pelo menos para algumas pessoas durante algum tempo. Da aquisição de riqueza resulta frequentemente ou a exigência de mais riqueza, ou a incapacidade de gozar o que se tem. O nosso bem-estar pode ser destruído pela pobreza, mas a mais breve consideração das vidas dos ricos não sugere que o bem-estar aumenta indefinidamente com mais riqueza. Muitas pessoas são hoje mais ricas do que qualquer pessoa alguma vez foi, mas serão mais felizes? Estatísticas sociais relevantes, como taxas de suicídio, não o sugerem. Os fechados e vigiados guetos dos ricos, como o American Governor's Club, dificilmente permitem testemunhar vidas felizes e invejáveis. E, seguindo Veblen, podemos esperar que o aumento de riqueza simplesmente fará subir a fronteira a partir da qual a vaidade exigirá que os ricos se distingam. Esta é uma das coisas desencorajadoras acerca da desencorajadora ciência económica.

O desejo erótico, outra carta de trunfo dos pessimistas, é notoriamente insatisfeito e incerto, além de que oferece apenas realização parcial. Provavelmente nunca chegaremos a possuir tanto outra pessoa quanto realmente desejaríamos. A arte não tem tido dificuldade em ligar o desejo erótico ao desejo de morte e aniquilação. O próprio amor é uma espécie de morte — o amante é penetrado ou atacado. Nesta tradição, os delírios do amor, especialmente o orgasmo (em francês une petite mort, “uma pequena morte”), são símbolos da morte real. Argumenta-se que as mortes em Tristão e Isolda ou em Romeu e Julieta indicam o desejo oculto dos amantes de extinção conjunta. Na arte é extraordinariamente perigoso ser uma mulher apaixonada, como nos lembra a interminável procissão de Ofélias, Violetas, Toscas e Mimis.

É bastante deprimente supor que mesmo eros (desejo) é contaminado por thanatos (morte). Mas talvez o vício da abstracção esteja em funcionamento mais uma vez. Se prestarmos atenção a algumas obras de arte, concluímos que o desejo erótico tem a morte no seu centro. Não paramos para reflectir que era o artista que sentia a necessidade do tema dos amantes fatais, suprimindo a referência a quaisquer prazeres e alegrias comuns. O artista tem boas razões para construir Jack e Jill como Romeu e Julieta. Mas provavelmente Jack e Jill são em si bastante mais alegres. A tragédia não é inevitável nem habitualmente desejada.

Do mesmo modo, deslizamos para a abstracção quando perguntamos se a vida em bloco, como se de uma massa informe se tratasse, “tem um sentido”, talvez imaginando algum observador externo, o qual até podemos ser nós próprios para além do túmulo, olhando para trás. Preocupa-nos que o observador domine com o seu olhar a totalidade do espaço e do tempo e que a nossa vida encolha até não ser nada, apenas um insignificante e infinitesimal fragmento do todo. “O silêncio desses espaços infinitos aterroriza-me”, disse Blaise Pascal (1623-62).

Mas Frank Ramsey (1903-30), o filósofo de Cambridge, respondeu:

Onde eu pareço divergir de alguns dos meus amigos é em conceder pouca importância ao tamanho das coisas. Não me sinto nem um pouco humilhado perante a vastidão dos céus. As estrelas podem ser enormes, mas não podem pensar ou amar; e estas são qualidades que me impressionam bastante mais do que o tamanho. Não me acrescenta qualquer importância o facto de eu pesar 108 quilos.

A minha descrição do mundo é elaborada em perspectiva e não como um modelo em escala. O solo é ocupado por seres humanos e as estrelas são todas tão pequenas como moedas de três dinheiros.

Quando perguntamos se a vida tem sentido, a primeira questão terá de ser: para quem? Para um observador com a totalidade do espaço e do tempo no seu olhar, nada a uma escala humana terá sentido (é difícil imaginar como é que ela pode ser de todo visível — há uma medonha quantidade de espaço lá longe). Mas por que razão a nossa insignificância no interior dessa perspectiva deverá esmagar-nos? Suponha-se em vez disso que temos em mente uma audiência que desceu à nossa medida. Alguém que dedica a sua vida a algum objectivo, como a cura do cancro, pode perguntar se a sua vida tem sentido, e a sua preocupação será se tem sentido para aqueles para quem trabalha. Se o seu trabalho for bem-sucedido, ou se a geração seguinte o tiver em conta, a sua vida terá tido sentido. Para algumas pessoas, é dolorosa a ideia de que o seu trabalho possa falhar e não deixar memória. Outros arranjam-se muito bem com isso: afinal, muito, muito poucos mesmo, deixam atrás de si realizações que suscitam a admiração contínua da próxima geração, para não falar das gerações que vierem a seguir. Isto é tristemente verdade mesmo em departamentos de filosofia.

Talvez nos vejamos a nós próprios na posição de juiz: cada um de nós pergunta se a vida tem sentido para si, aqui e agora. E nesse caso a resposta depende. A vida é uma corrente de acontecimentos vividos no interior da qual há frequentemente bastante sentido — para nós próprios e os que nos rodeiam. O arquitecto Mies van der Rohe disse que Deus está nos pormenores e o mesmo é verdade acerca do sentido da vida para nós, aqui e agora. O sorriso do filho significa tudo para a mãe, a carícia significa beatitude para o amante, a mudança de frase significa felicidade para o escritor. O sentido vem da entrega e do prazer, da corrente de pormenores que são importantes para nós. O problema que há com a vida é então o de ela ter demasiado sentido. Todavia, se o estado de espírito é outro, tudo é penoso. Como Hamlet, estamos determinados a esquivar-nos do carnaval humano, não vendo senão a caveira debaixo da pele. É triste quando nos tornamos seres humanos assim e mais uma vez precisamos de um tónico de preferência a um argumento. Ou talvez neste caso, o único bom argumento, numa famosa frase de Hume, é que não há nenhuma maneira de fazer de ti uma pessoa útil ou agradável para ti próprio ou para os outros.

Simon Blackburn
Being Good: A Short Introduction to Ethics (Oxford: Oxford University Press, 2002)
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ISSN 1749-8457