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Crítica
31 de Agosto de 2010   Estética

Como falsificar uma obra musical

Peter Kivy
Tradução de Vítor Guerreiro

É difícil aos filósofos da arte mais jovens aperceberem-se do estado em que a disciplina se encontrava quando os estudantes da minha geração iniciaram as suas pós-graduações no final da década de 1950 e início da década de 1960. Tratava-se, falando com franqueza, de um deserto com um grande oásis: a obra de Monroe Beardsley, Aesthetics: Problems in the Philosophy of Criticism (1958). Além disso, os filósofos analíticos britânicos desses anos, a quem desejávamos igualar, tinham declarado que enquanto objecto de estudo a estética não existia. O gosto, a crítica, a arte, a beleza não eram, segundo eles, susceptíveis de crítica filosófica. Era embaraçoso para um estudante de pós-graduação declarar-se interessado em estética, a “ciência desoladora”.

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Dúvidas?

Felizmente para mim e para os meus contemporâneos que desejavam dedicar-se à estética, um pequeno grupo de distintos filósofos americanos e britânicos recusou dar crédito aos exagerados rumores sobre o fim da disciplina. Não vou nomeá-los, por receio de omitir alguém importante. Mas o nome do falecido Nelson Goodman constaria em qualquer lista. Não há como exagerar o efeito revigorante que a publicação de Linguagens da Arte em 1968 teve sobre nós. Pois Goodman era já nessa altura uma figura importante na filosofia anglo-americana contemporânea. A obra The Structure of Appearance (1951) surgia-nos como o cume de uma montanha a que só os mais audazes e aptos tinham hipótese de escalar. Além disso, Facto, Ficção e Previsão (1955) era objecto de estudo minucioso e vigorosa discussão. Quem não fosse capaz de dissertar longamente sobre o verdul e o azerde simplesmente não era ainda um praticante qualificado do ofício, independentemente das outras aptidões que tivesse. Ainda por cima, o estilo de Facto, Ficção e Previsão era para nós um assombro. Parecia absolutamente milagroso que se pudesse exprimir tanta profundidade e rigor filosóficos numa prosa americana tão lúcida e, sim, elegante.

O próprio facto de o grande Goodman ter passado a dedicar-se à filosofia da arte fez instantaneamente que esta se tornasse não só respeitável mas também um centro vital.

Um dos capítulos mais intrigantes de Linguagens da Arte, e um dos mais controversos, é sem dúvida o que se intitula “Arte e Autenticidade”. É aí que Goodman faz a distinção, hoje parte do nosso vocabulário filosófico, entre aquilo a que chamou artes “alográficas” e artes “autográficas”. Parte dessa distinção, ou uma das suas implicações, consoante a perspectiva que adoptemos, era a consequência de que as obras musicais, por contraste com, digamos, as pinturas ou as estátuas, não podem ser falsificadas. Pode-se evidentemente falsificar um manuscrito musical; mas fazendo-o apenas se obtém outra partitura da mesma obra. E se o leitor “falsificasse” a Quinta Sinfonia de Brahms não conseguiria mais do que uma sinfonia escrita por si. Falsificar obras musicais, segundo a análise de Goodman, era simplesmente uma impossibilidade ontológica.1

O ensaio que se segue pode ser descrito como uma resposta superficial à posição de Goodman acerca da falsificação musical. Apresentarei um exemplo, segundo creio, do que “falsificar uma obra musical” pode significar: não se trata de um exemplo bizarro ou enviesado, mas de um exemplo que considero perfeitamente simples — sem estratagemas ontológicos ou truques lógicos. Proponho simplesmente uma narrativa sensata do que penso que qualquer pessoa descreveria como “falsificação” num sentido robusto da linguagem comum. Não se trata, por outras palavras, de ficção científica filosófica, apenas do género de coisa que pode fazer alguém ir parar à choldra.

Não se trata, todavia, de uma reposta ao desafio de Goodman, como afirmei, a não ser de um modo transversal. Contudo parece justo dizer que foi Goodman quem deu à questão da falsificação um lugar central nas preocupações dos filósofos da arte. Logo, parece inteiramente apropriado apresentar, em sua memória, um ensaio sobre a falsificação musical, por pouco goodmaniano que seja.

O melhor modo de falsificar uma obra musical é através de um esforço cooperativo, que envolve alguém com formação em musicologia histórica, um compositor com domínio teórico e com dom para imitar os estilos de outros compositores, e um falsário experiente com boa mão.

Primeiro há que escolher a obra a ser falsificada. Uma boa candidata é uma obra de que o manuscrito original se tenha perdido, por exemplo, a Partita em Lá menor para Flauta Solo, de J. S. Bach. “A composição sobrevive num único manuscrito reproduzido por dois copistas, um dos quais, conhecido na bibliografia como Anónimo 5, esteve associado a Bach em Köthen e Leipzig”.2

Ao prepararem-se para a colaboração, o compositor e o musicólogo devem familiarizar-se tanto quanto possível com o estilo de Bach em geral, o seu estilo de escrita para flauta, e em especial com o estilo da Partita. (Um computador poderá ser-lhes útil aqui.) Entretanto, o falsificador de assinaturas deverá ter obtido microfilmes de uma boa selecção de manuscritos autenticados de Bach, dedicando-se perseverantemente à tarefa de dominar a escrita musical muito elegante de Bach.

Uma vez que se tenha feito apropriadamente estes preparativos, o compositor e o musicólogo têm de combinar as suas aptidões para produzir uma versão da obra de Bach que, em vários aspectos cuidadosamente pensados, difere em detalhes do manuscrito ainda existente e das edições impressas que se fez a partir do mesmo.

O compositor e o musicólogo estão agora prontos para apresentar os resultados do seu labor, na forma de uma cópia a limpo da Partita, ao falsificador que, entretanto, dominou a grafia musical de Bach. Este produz então uma falsificação de uma manuscrito da Partita por Bach, com base na cópia a limpo que lhe deram, apropriadamente “danificada”, suja e “envelhecida”, que pela aparência sugere tratar-se do há muito perdido autêntico manuscrito original da Partita, escrito pela mão do próprio compositor, e que o musicólogo afirma ter descoberto no sótão de um casebre nas imediações de Leipzig. Publica a sua “investigação”, sob a forma de um artigo, no prestigioso Journal of the American Musicological Society. A Bärenreiter-Verlag publica, em edição fac-simile e para execução, a versão “autêntica”, “recentemente descoberta”, da obra — a versão “canónica” agora aceite — e com o impulso desta investigação, é oferecido ao musicólogo um cargo docente efectivo no Departamento de Música de Harvard. (O compositor e o falsificador recebem uma compensação monetária pelo trabalho que tiveram.)

Sugiro que a descrição apropriada do que sucedeu aqui é que o compositor, o musicólogo e o especialista em escrita, juntos, falsificaram uma obra musical, nomeadamente, a Partita para Flauta Solo de Bach. Repare-se: falsificaram também um manuscrito de Bach, como meio para o seu objectivo perverso de falsificar uma obra; mas na verdade pode-se perfeitamente falsificar uma obra sem a dificuldade acrescida de falsificar um manuscrito se for concebida uma narrativa apropriada para a origem da falsificação da obra. (Por exemplo, o musicólogo afirma ter copiado a obra a partir de um manuscrito autografado pelo compositor, subsequentemente destruído num bombardeamento durante a segunda guerra mundial.)

Pode-se neste ponto responder que o que estes três patifes fizeram não foi falsificar uma obra musical, uma vez que isso, pelas célebres razões goodmanianas, é uma impossibilidade metafísica. Apesar do esforço, não fizeram senão produzir, através de meios inconvencionais, outra versão da obra, a acrescentar ao manuscrito e às diversas versões feitas a partir deste por uma longa linhagem de editores.

Mas essa resposta é apenas parcialmente correcta. Os colaboradores produziram na verdade outra versão da Partita. Todavia, produziram também uma falsificação da obra. Pois produzir uma versão da obra é produzir a obra: uma versão da obra é a obra, numa das suas versões. E nas circunstâncias em que produziram a sua versão da obra produziram, por isso mesmo, uma falsificação da obra: uma falsificação que se apresenta como a versão canónica da obra.

Mas consideremos agora o seguinte caso. Numa daquelas coincidências tremendamente improváveis tão caras aos filósofos, o manuscrito original perdido da Partita para Flauta Solo aparece. Eis que o manuscrito forjado pelo nosso falsificador é exactamente igual, nota por nota, ao manuscrito autêntico. Será que nesse caso a falsificação é realmente uma falsificação? Afinal, não há diferença entre esta e a obra, isto é, a obra indicada em notação pelo manuscrito autêntico. São a mesma versão da mesma obra.

Compare-se isto com o caso da muito esperada super-copiadora que pode fazer uma cópia de uma pintura a óleo, molécula por molécula, idêntica à original. A cópia molécula a molécula da Mona Lisa é, segundo a ontologia de qualquer pessoa (excepto dos que pensam que a pintura é uma arte alográfica), uma falsificação, pressupondo que é feita pelos motivos apropriados, etc. Se realmente a cópia molécula a molécula da Mona Lisa for uma falsificação, e a cópia nota a nota do manuscrito da Partita para Flauta não o for, será que isto põe em dúvida a afirmação de que há um caso inequívoco, como esboçado, em que as obras musicais podem ser falsificadas?

A minha resposta seria a que se segue. A diferença entre a falsificação de obras musicais e a falsificação de pinturas é que, ontologicamente, quando as versões de uma obra são idênticas nota por nota, são a mesma versão da mesma obra, pelo que não podem ter com o original a relação de falsificação; ao passo que quando as cópias de uma pintura são idênticas molécula a molécula com o original, são ainda, evidentemente, pinturas distintas e, portanto, podem ser falsificações.3

Evidentemente, como a história anterior mostra, a ontologia da falsificação musical difere em alguns aspectos relevantes da ontologia da falsificação de pinturas. Mas e depois? Não é surpreendente, uma vez que a ontologia das obras musicais difere da ontologia das pinturas em alguns aspectos relevantes, pelo menos segundo a maioria dos teorizadores. Contudo, a questão é que a ontologia das obras musicais não exclui a falsificação de obras musicais, como é habitual pensar; veja-se o exemplo da Partita para Flauta de Bach referido atrás. Só há um modo de descrever esse exemplo que capte as nossas intuições acerca do que sucedeu; tão-pouco se trata de um caso de “falsificação” num sentido estranho e rarefeito. A descrição é perfeitamente clara: uma obra musical, a Partita em Lá menor para Flauta Solo, de Bach, foi falsificada.

Concluindo, a falsificação musical, no sentido apropriado do termo, parece possível ontologicamente e na prática, e provavelmente não vale o esforço que custa.4

Peter Kivy
Journal of Aesthetics and Art Criticism, vol. 58, n.º 3 (Verão de 2000), pp. 233–235

Notas

  1. Nelson Goodman, Languages of Art, an Approach to a Theory of Symbols (Indianápolis: Bobbs-Merrill, 1968), pp. 112–122. [Linguagens da Arte: uma Abordagem a uma Teoria dos Símbolos, trad. V. Moura e D. Murcho, Gradiva, 2006.]
  2. Robert L. Marshall, The Music of Johann Sebastian Bach: The Sources, the Style, the Significance (Nova Iorque: Schirmer, 1989), p. 211.
  3. Jerrold Levinson, numa comunicação privada, sugere uma interpretação alternativa deste exemplo. Escreve: “Se acredita que está a inventar algo, e representa o resultado como algo diferente daquilo que acredita que é (ou seja, como uma invenção sua), então não vejo por que não seria uma falsificação, mesmo quando o resultado, por uma “coincidência improvável”, é um resultado “feliz”. Penso que isto é independente da sua preferência (aparentemente ainda robusta) por uma ontologia musical em que obras com a mesma estrutura sónica/tonal são necessariamente as mesmas obras”.
  4. Estou grato a Noël Carroll e a Jerrold Levinson por lerem uma versão anterior deste artigo, e pelas suas observações criticas úteis. Sou, como é óbvio, inteiramente responsável pelos erros que permaneçam.
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