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Crítica
19 de Março de 2002   Lógica

O homem que queria refutar Galileu

Júlio Sameiro

O desenvolvimento do espírito crítico é o objectivo mais consensual do ensino da filosofia. O que não é claro nem consensual é o modo como isso se faz. Penso que se exercita o espírito crítico tentando refutar (destruir, mostrar a falsidade de) as teses ou teorias com que deparamos. E tentar a refutação é ensaiar o Modus Tollens contra essas teses ou teorias. O objectivo deste artigo é o de apresentar o Modus Tollens (que abreviarei para MT) a leitores não iniciados nas coisas da filosofia e da lógica. Junto com os artigos que se lhe seguirão, terá um objectivo um pouco mais ambicioso: o de tornar plausível esta hipótese: se não cultivamos o MT, não cultivamos o espírito crítico.

O Modus Tollens é um instrumento de crítica. Mas não é uma arma de arremesso, uma gritaria indignada, ou um ar amuado. É, apesar do nome em latim, um processo de argumentação que usamos no dia-a-dia. De facto, discutimos muito de acordo com o esquema — “Se tivesses razão, então isto ou aquilo seria assim e assado. Mas não é assim e assado. Logo, não tens razão”. — e este é o esquema do MT! Vejamo-lo em acção em alguns exemplos:

O jovem Adão, impressionado pelo facto dos números 1, 3, 5 e 7 serem primos (no tempo de Adão ainda não havia decomposição em factores primos, pelo que o 1 ainda podia ser primo), concluiu:
“Todos os números ímpares são primos”. Mas Eva respondeu: “O número 9 é ímpar e não é primo…”.
Bang! Adão estava enganado.

Onde está o MT? Vamos descobri-lo explicitando todo o argumento de Eva. Indicaremos primeiro as premissas, isto é, as afirmações que se destinam a defender a conclusão. No fim apresentamos a conclusão, antecedida por “Logo,…”. De facto vamos encontrar dois “Logo”. Logo, vamos encontrar duas conclusões e, portanto, dois argumentos (temos sempre tantos argumentos quantos os 'logo', isto é, as conclusões que tivermos, embora, claro, nem sempre seja fácil encontrá-los). O primeiro argumento destina-se apenas a provar a primeira premissa do segundo:

Objectivo de Eva: demonstrar que é falso que todos os ímpares sejam primos.

I Etapa: Deduzir uma consequência da teoria de Adão.

Se um número é ímpar, então esse número é primo (ou: Todos os números ímpares são primos).
9 é ímpar.
Logo, 9 é primo.

II Etapa: Encostar Adão à parede e fuzilar.

Se todos os ímpares são primos, então 9 é primo. (o resumo da I etapa)
Mas, 9 não é primo.
Logo, é falso que todos os ímpares sejam primos.

Eva raciocinou segundo um padrão bem conhecido, chamado de redução ao absurdo ou argumento indirecto. Tem duas etapas: primeiro começamos a raciocinar como se aceitássemos a afirmação (chamemos-lhe P) que queremos refutar (mostrar que é falsa), extraindo dela uma das suas consequências (chamemos Q à consequência). Segunda etapa: mostramos que a consequência Q é falsa. Como a falsidade Q derivou de P, concluímos que P é falsa. O MT só surge na segunda etapa, mas é crucial porque é nela que se dá propriamente a refutação. Destaquemos o seu esquema:

Se dizes que P é verdadeira, então dirás que Q também é verdadeira.
Ora, reconheces que Q é falsa.
Logo, tens de reconhecer que P é falsa.

Ou mais simplesmente:

Se P, então Q.
Ora, não-Q.
Logo, logo não-P.

Pronto. O MT está apresentado, cumprimente-o.

Destacado o esquema do MT será mais fácil reconhecê-lo em muitos outros argumentos. Vejamos este exemplo inspirado em Platão:

Adão (levantando os braços e com os olhos no infinito): — é justo dar a cada um o que lhe pertence!

Eva (continuando a pintar as unhas): — Portanto, é justo devolver as armas de um nosso amigo que agora e em estado de semi loucura apareça a pedir a sua devolução?

Adão (baixando os braços, os olhos e a voz): —. #@grrr!&…

Explicitemos o MT de Eva:

Se é sempre justo dar o seu a seu dono, então é justo dar as armas do louco ao louco.
Ora, não é justo dar as armas do louco ao louco.
Logo, é falso que seja sempre justo dar o seu a seu dono.

Disclaimer: não responderei pelo leitor que use este argumento para não devolver os 500$ que lhe emprestaram ontem.

Mais um exemplo inspirado em Platão:

— O Belo é o agradável, o agradável é o belo.
— Sentir uma necessidade, estar oprimido e acossado por uma necessidade não é desagradável?
— Sim… e daí?
— Então livrarmo-nos de uma necessidade e desses sentimentos negativos que a acompanham, não é agradável?
— Sim…
— Logo, libertares-te da fome é agradável, logo é belo, logo comer um bife é uma belezinha?
— Claro! Nunca ouviste dizer que os olhos também comem?
— Rapaz! és um egoísta: se achas que agrado e beleza são sinónimos, não devias fechar a porta de quando satisfazes algumas das tuas necessidades, privando os outros de tanta beleza…

O leitor já talvez possa reconstruir o MT usado. Tente. Dubidum… bum… dáá… está a tentar? Não…? aqui vai uma dica:

(1) Se tudo o que agrada é belo, então........... É belo.
(2) Ora,......... não é belo.
(3) Logo, é falso que.......................................

O leitor pode achar que não basta apresentar o MT. O defensor da teoria belo=agradável pode querer recusar a premissa (1). É mais seguro, pensou o leitor, provar que quem defende belo=agradável tem de aceitar essa premissa, como se fez no argumento original. Procurou, por isso e muito bem, explicitar todo o argumento. Assim:

Objectivo: demonstrar que o Belo e o agradável não são sinónimos.

I — Extrair uma consequência da teoria Belo=Agradável

O belo é o agradável, o agradável é o belo.
Libertarmo-nos da pressão de uma necessidade é agradável.
Ora,......... É libertarmo-nos da pressão de uma necessidade.
Logo,......... É agradável.
Logo,......... É belo.

II — Mostrar que a consequência é falsa e concluir que a teoria é falsa

Se tudo o que agrada é belo, então........... É belo. (Esta premissa deriva da I etapa e resume-a)
Ora,......... não é belo.
Logo, é falso que.......................................

Mas o nosso opositor pode ainda não estar convencido: pode querer rejeitar a segunda premissa da I primeira etapa “Libertarmo-nos da pressão de uma necessidade é agradável”. Nesse caso, ainda poderíamos incluir este subargumento para a provar:

Libertarmo-nos da pressão de uma necessidade gera um sentimento de alívio.
Todo o sentimento de alívio é um sentimento de agrado.
Logo, libertarmo-nos da pressão da necessidade é agradável.

Já está. Como se vê, a profundidade com que analisamos um argumento dependerá do contexto e do objectivo visado. Em regra, evitamos explicitar todas as premissas envolvidas porque essa tarefa seria infinita e nos tornaríamos enfadonhos dizendo coisas por demais evidentes. Mas o núcleo do argumento deve ser sempre tão claro quanto possível.

Agora, com um pouco de reflexão sobre todas as suas discussões com outras pessoas, o leitor pode verificar que a forma do MT — “Se tens razão, então Q teria de ser verdadeira. Mas, Q é falsa. Logo, não tens razão” é frequentíssima e pode coleccionar os seus próprios exemplos.

A simplicidade do Modus Tollens não deve esconder o seu terrível alcance. Regressemos ao nosso primeiro exemplo. Adão fez uma generalização precipitada: a partir de uma amostra insuficiente de números ímpares, concluiu o que julgou ser uma verdade para TODOS os números ímpares. Que poder! Agora basta um pensamentozinho para abrangermos uma infinidade de números! As generalizações deixam-nos um grande sentimento de satisfação: com elas já não falamos apenas de factos pontuais ou de pormenores da realidade — enunciamos uma espécie de lei obrigatória para todos os factos passados, presentes e futuros*. Que descanso! já não é preciso olhar o universo, basta o pensamento! E no entanto… bastou um facto para Adão ter de regressar ao trabalho. É assim o MT…

As nossas cabeças e as nossas relações com outras pessoas estão cheias de generalizações precipitadas: “Os alentejanos são preguiçosos”, “Os escoceses são avarentos”, “A filosofia é uma chatice”, “As pessoas são egoístas”, “Os políticos são corruptos”, “Os alunos do 10º A são fracos”, “Não há domingo sem Sol”. Por vezes são inofensivas porque quem as usa e quem as ouve dá o desconto… Mas são perigosas levando-nos a fazer juízos injustos sobre os atletas alentejanos, os escoceses altruístas, os políticos honestos, os dois brilhantes alunos do 10º A, este alegre texto de filosofia, e a esquecer o chapéu de chuva por ser Domingo. Pelo sim pelo não, é melhor ter sempre um par de éMeTês à mão. Um filósofo bombástico poderia mesmo ser tentado a escrever uma tese de doutoramento com o título: “A condição humana: a generalização precipitada”. Muito provavelmente a sua tese seria também uma espécie generalização precipitada: recolheria imensas generalizações, todas elas precipitadas, para poder concluir, á maneira do estouvado Adão, “Toda a generalização é precipitada”. Excluiria da sua amostra, claro, uma generalização como: “Todo o homem é mortal” porque é difícil crer que ela seja precipitada.

Esta referência ao Dr. Filo-Bombástico não serve apenas para dar mais um exemplo de MT (reparou nele? Está nas duas últimas linhas do parágrafo anterior). Nem para distrair o leitor, nem para cultivar o seu ressentimento para com os doutorados. Vastas e bem construídas teorias podem cair ou, pelo menos, entrar em pânico, face ao humilde MT: a poderosa teoria e uma pequena consequência da teoria na primeira premissa, a prova de que a consequência é falsa na segunda premissa, o estoiro da poderosa teoria na conclusão…

Nos exemplos que apresentei, a segunda premissa é um dos factos ou casos particulares que refutam uma generalização. É por isso que o leitor também pode encontrar este uso do MT sob o nome “técnica dos contra-exemplos”. Mas não é a única forma de MT. Um exemplo:

Se dizes que pela força do pensamento podes voar, então a teoria da gravidade é falsa.
Não me parece que queiras negar teoria da gravidade.
Logo, estás a delirar.

Neste MT estamos a tentar mostrar ao nosso oponente, que a sua nova teoria, a do voo descansado, contradiz uma outra que ele também parece defender e com fundamentos mais sólidos, pelo que a nova teoria talvez não seja sustentável. Este tipo de argumento é um ingrediente de toda a investigação racional. Se um cientista propõe uma nova teoria, e ela se aplica a factos também estudados por uma teoria Z que até ao momento tem sido bem-sucedida, é frequente os seus pares quererem a prova de que essa teoria se ajusta à teoria Z. Por outras palavras estão a pedir-lhe que, para tornar a sua teoria plausível e digna de consideração, escape ao seguinte MT:

Se a tua teoria é verdadeira, então deve adequar-se à teoria Z que também reconheces ser boa.
Ora, não me parece que os resultados da tua teoria se adequem a Z.
Logo, a tua teoria é falsa.

Conclusão adicional: o leitor partilha o seu principal instrumento de crítica, o MT, com os mais brilhantes génios da ciência. Espero que se sinta orgulhoso.

Como é que o proponente da nova teoria pode responder àquele MT? Há vários aspectos a ter em conta:

Aquela formulação do MT exprime o aspecto conservador da investigação científica: se há um núcleo de teorias (Z) que têm funcionado bem, as novas teorias devem tê-las em conta e respeitá-las, não devem contradizê-las. Isto compreende-se bem: afinal essas teorias Z que já alcançaram o respeito da comunidade científica, relacionam e explicam inúmeros factos. Não respeitar tais teorias seria correr o risco de ver todos esses factos transformados em contra-exemplos! Assim, o MT que mostra a incompatibilidade de uma teoria nova com teorias bem estabelecidas tem quase a força de uma refutação.

Pode suceder, no entanto, que o conflito seja aparente e que, com um pouco mais de investigação, a nova teoria se mostre compatível com o tal núcleo Z. Neste caso o MT não refutou a nova teoria mas obrigou ao ser desenvolvimento.

Há ainda uma terceira possibilidade porque a ciência também tem as suas revoluções. Por vezes pode acontecer que a pessoa diga que, pensando melhor, talvez Z seja falsa. Isto significa que o MT nos ajuda a progredir. Precisamos agora de continuar a investigação que nos permita construir os argumentos independentes que nos mostrem qual das duas teorias é a melhor. Mas já sabemos que, na sua forma actual, não podem ser ambas verdadeiras. O proponente da nova teoria pode conseguir refutar o tal núcleo Z de teorias bem estabelecidas, obrigando a modificações drásticas em Z ou mesmo ao seu abandono.

Um exemplo do MT na ciência. Quando Galileu, explorando a teoria de Copérnico, apresentou a sua estranha teoria de que a Terra se move sobre si mesma e à volta do Sol (e em ambos os casos com elevada velocidade) — teve de enfrentar este MT:

Se andamos sempre à roda e a alta velocidade, então ficamos tontos.
Ora, Galileu andou todo o tempo à roda e a alta velocidade.
Logo, Galileu ficou tonto.

Oops! Isto não é um MT. Mas o leitor percebeu que se trata de uma maneira sarcástica de sugerir o seguinte MT:

Se andamos sempre à roda, então ficamos tontos.
Ora, não nos sentimos tontos.
Logo, não estamos sempre a andar à roda.

A objecção é ingénua (podia ser posta por uma criança) mas deve ser levada a sério. Galileu inventou a sua teoria para resolver problemas postos pelas observações astronómicas. Mas a teoria parece ter consequências que não se ajustam às nossas Física e Neurologia do dia-a-dia. Tem, portanto, de ultrapassar essa dificuldade para tornar a sua teoria plausível. Neste caso talvez seja fácil: basta corrigir a física do dia-a-dia mostrando que “andar à roda” é vago — talvez seja preciso ter em conta o diâmetro da “roda” e a velocidade. Se o leitor imitar um pião a 20 Km/hora enjoa, se passar toda a vida a percorrer o equador da Terra a essa velocidade nem dá que está a andar à roda. Quanto maior for o raio da circunferência que descrevemos, maior terá de ser a velocidade para ficarmos tontos. O leitor já viu que daqui deriva um programa de investigação científica: encontrar a fórmula com a qual, dado o raio da circunferência, obtemos a velocidade a que, em média, uma pessoa tem de percorrer a circunferência para ficar tonta… depois aplicamos a fórmula ao raio e à velocidade da Terra — veremos então se a tese de Galileu não será falsa…

Este exemplo serve para mostrar que devemos refrear a nossa juvenil confiança nos poderes do MT. Mas também serve para não o subestimarmos: um MT, mesmo ingénuo, deve sempre ser bem vindo. Vimos que pôr uma teoria em dificuldades não é o mesmo que destruí-la. Mas se o MT não destrói a teoria pelo menos obriga-a a desenvolver-se para absorver os casos ou as teorias renitentes. Ou a abandonar ou reformar os renitentes. E se o MT for uma objecção ingénua, serve para detectar uma incompreensão e gerar um esclarecimento.

O leitor está quase cansado. No próximo número há mais. Acabo aqui o artigo para que o possa reler e ensaiar os seus MT contra ele. Mas tem uma alternativa à releitura. Escreva o conto “O homem que queria refutar Galileu”. Imagine esse homem a seleccionar 100 cobaias, (os seus piores inimigos? a família? os alunos?) e a fazê-los descrever circunferências, variando ora o raio ora a velocidade, dia após dia, à procura do limiar de tontice. Pode juntar peripécias interessantes: o nosso experimentador, não tendo meio$, mas tendo boa retórica, criou uma nova religião, onde o círculo, claro, tem um papel fundamental. Milhares de convertidos acorrem e ele tem milhares de cobaias. O enjoo do círculo é transformado em “êxtase divino do círculo”. Junte-lhe alguns pormenores: o nosso homem criou novos instrumentos para explorar o sistema nervoso e ver o que se passava com o enjoo e assim abriu caminho para importantes descobertas nesse campo. Aprofundou o estudo da força centrífuga (da inércia); da psicologia e da retórica (que teve de usar para manter a sua Igreja unida); e assim por diante. Mas não refutou Galileu. Uma vida vazia, em vão! Felizmente encontrou a Sandra Bullock com quem foi viver no Templo bem no meio dos círculos que os pés dos fiéis cavaram nas suas experiências. Os círculos salvaram a casa (o Templo) das inundações. Deus escreve direito por linhas tortas! Galileu fora vencido! Fim. Venda para Holywood. Não cobrarei direitos, mas uma nota de reconhecimento, a mim e ao inspirador MT, seria bem-vinda.

Júlio Sameiro

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