O objectivo da lógica consiste no estudo das formas de argumentação válidas. Esta é uma primeira caracterização abrangente da disciplina e, por essa razão, encontramo-la com frequência em textos introdutórios. Outra maneira de indicar o mesmo objectivo consistiria em dizer que a lógica se interessa pelo estudo de uma classe especial de inferências e que esta classe detém a particularidade de a validade dos espécimes nela representados ficar a dever-se exclusivamente à sua forma.
Convém, no entanto, reconhecer que esta apresentação é um pouco enigmática, sobretudo para quem não tenha já uma ideia aproximada do que se entende por validade, argumento, forma e inferência. O objectivo dos capítulos seguintes é o de facultar a informação mínima indispensável à manipulação destes conceitos e permitir que a sua compreensão intuitiva, se existe, assuma um conteúdo preciso.
Uma maneira de caracterizar um argumento é a que resulta de se considerarem os seus objectivos gerais. Apesar da diversidade destes objectivos, pretendemos fixar-nos num deles em particular.
Simplificando, tem-se um argumento sempre que se pretende justificar o valor de verdade de uma asserção.
Mas o que é uma asserção? Uma asserção é uma frase declarativa empregue para afirmar ou negar algo. Quando, por exemplo, queremos expressar a ideia de que a raiz de 2 não pertence ao conjunto dos números racionais, a frase “A raiz de 2 não é um número racional” representa uma asserção. A distinção entre frases assertivas e frases não assertivas pode ser compreendida facilmente. Para isso, basta confrontar o exemplo anterior com a frase “Ao saíres, fecha a porta cuidadosamente”. No primeiro caso atribuímos a um objecto (um número) uma certa propriedade e no segundo formulamos um pedido. A primeira frase é verdadeira, enquanto a segunda não tem valor de verdade. Sempre que uma frase não é verdadeira nem falsa diz-se que não possui valor de verdade.
Mas será que necessitamos de conhecer o valor de verdade de uma frase declarativa para a considerarmos apta a exprimir uma asserção? A célebre conjectura de Goldbach, pela qual qualquer número par é representável como a soma de dois primos, não foi ainda hoje confirmada nem refutada. Não sabemos, portanto, se é verdadeira ou falsa. Admite-se, como pressuposto, que uma destas possibilidades é o caso e esperamos que um bom argumento estabeleça em definitivo o seu valor de verdade. Apesar da simplicidade do seu enunciado, demonstrar que Goldbach tinha razão (ou que estava enganado) não é fácil. Mas, se no futuro essa prova vier a existir, podemos estar confiantes de que se tratará de um exemplo de um argumento matemático particularmente bem-sucedido.
Este sucesso é geralmente obtido pela listagem do conjunto de razões em que se apoia a pretensão de que uma determinada asserção é verdadeira ou falsa. Os gregos antigos conheciam já um argumento a favor da ideia de que a raíz de 2 é um número irracional, e esse argumento ainda hoje é tido como um modelo de elegância e rigor. Pelo mesmo motivo, espera-se que uma vez apresentado um certo conjunto de razões, a asserção que se tinha em mente defender seja considerada verdadeira no caso das razões propostas o serem igualmente. A sua verdade é assumida como dependendo, no seu conjunto, de as razões apresentadas serem verdadeiras, associado ao facto de a verdade dessas razões implicar a verdade da tese proposta. Queremos, então, assinalar que a verdade de uma asserção é aceite como consequência da verdade das razões que lhe servem de apoio. Ora, sempre que isto acontece, não é racionalmente admissível aceitar como verdadeiras as razões apresentadas e, em simultâneo, considerar falsa a asserção que essas razões têm em vista suportar.
Um exemplo simples do que acabo de afirmar é o seguinte. Se pretendo defender que os seres humanos são responsáveis pelos actos que praticam voluntariamente, uma maneira eficaz de o fazer é chamar a atenção para o facto de: (i) um acto voluntário ser praticado livremente; (ii) agir livremente significa que estamos em condições de avaliar criticamente as consequências das escolhas efectuadas. Como resulta óbvio, se aceitamos as razões assinaladas em (i) e (ii) não é possível rejeitar a consequência que delas se segue, isto é, que não existem actos voluntários pelos quais os seres humanos que os praticam não sejam também responsáveis. Este exemplo poderia ser complementado com vários outros acerca de diferentes assuntos sem modificar o essencial da situação.
O principal aspecto a sublinhar é o seguinte. A argumentação, no sentido acima referido, é um processo que tem lugar entre sujeitos racionais, destinado a ser avaliado racionalmente. Com isto, queremos excluir outras formas de promover a adesão a ideias ou pontos de vista através do apelo a factores de ordem emocional, por exemplo, o género de recursos vulgarmente utilizados em publicidade. Obrigar alguém a fornecer o acesso à sua conta bancária sob a ameaça de uma pistola não é, obviamente, um argumento, ainda que metaforicamente possamos usar a expressão para qualificar esse tipo de acções. No entanto, a prova de que existe um único número par primo é um argumento que qualquer ser humano suficientemente sofisticado para o compreender aceita sem hesitação. Ora, este facto depende numa larga medida de o argumento ser logicamente bem construído.
Por isso, a análise que nos interessa efectuar incide em exclusivo naqueles aspectos da argumentação que nos permitem decidir de forma inequívoca se determinada asserção se segue realmente das razões propostas em sua defesa. Como nem sempre isto acontece, interessa-nos dispor de um critério que nos permita saber que características possuem aqueles argumentos que estamos em condições de considerar logicamente bem construídos. Uma vez que o objectivo da argumentação é o de fornecer razões para aceitarmos uma asserção como verdadeira (ou falsa), um argumento logicamente bem construído é aquele que torna racionalmente impossível rejeitar a asserção que queremos defender se, em simultâneo, aceitarmos todas as razões propostas em sua defesa. Sempre que este objectivo é alcançado dispomos de bons motivos para discutir com seriedade o seu conteúdo, e a primeira condição para que possamos considerá-lo um argumento bem-sucedido foi plenamente alcançado. Entre outros aspectos, é isto que se tem em mente ao ser-nos proposta uma prova racional de que existe um único número par primo, entre diversos outros exemplos.
Admitamos que o sucesso de um argumento depende da verdade das razões apresentadas implicar a verdade da asserção a justificar. Neste caso, o sucesso do argumento reside em tornar manifesto o facto de, caso a lista de razões apresentadas inclua apenas asserções verdadeiras, então, é impossível que a tese a defender seja falsa. Pelo mesmo motivo, se um oponente à nossa asserção permanece teimosamente céptico quanto à verdade do que afirmamos, uma excelente maneira de resistir aos nossos esforços consiste em disputar a verdade de pelo menos uma das razões incluídas na lista. (Uma lista completa de razões pode conter um número qualquer de asserções — por exemplo, uma única.) E se a troca de argumentos tiver como principal objectivo o esclarecimento da verdade, e não fazer valer um ponto de vista particular custe o que custar, é de esperar que a discussão se transfira para a análise das asserções contidas na lista. Isto mostra que uma afirmação proposta como verdadeira pode ser rejeitada caso uma das razões em que se apoia seja falsa.
O que acabo de afirmar permite ilustrar algumas das preocupações que justificam a análise de argumentos.
Admita-se por exemplo que alguém se encontra em posição de defender racionalmente uma certa opção entre diversos regimes alimentares, digamos, o regime vegetariano. É claro que uma pessoa nestas circunstâncias pode evocar vários tipos de razões em defesa da sua preferência e diferentes pessoas podem recorrer a diferentes argumentos. É possível, por exemplo, apresentar argumentos de saúde, religiosos, de gosto, morais, etc. Fixemo-nos para efeitos de ilustração no último caso. Que género de argumento pode ser utilizado? Uma possibilidade seria a seguinte. Se defendo que a dor é um mal e que provocar a morte de qualquer ser capaz de sentir implica dor, então, caso pretenda ser coerente, o meu regime alimentar não pode depender da morte desses seres. Que resposta poderíamos esperar de uma audiência pouco motivada para aceitar o ponto de vista indicado?
Este é um exemplo de argumento que não obtém uma aceitação generalizada. Mas isto não significa que esteja mal construído. O simples facto de possuirmos diferentes hábitos alimentares não é por si só um argumento, tal como não o é o facto de não resistirmos a um prato de carne bem confeccionado. Na melhor das hipóteses, estas preferências dispõem-nos a procurar nas razões do nosso amigo vegetariano um ponto fraco que nos permita, de maneira racionalmente defensável, rejeitar a ideia de que deseja persuadir-nos. Ora, esta não é uma tarefa tão simples como parece. Pode até suceder que não consigamos encontrar nelas qualquer ponto fraco e, ainda assim, recusarmos modificar a nossa ementa por motivos de outra ordem, por exemplo, as dificuldades decorrentes da radical alteração dos nossos hábitos alimentares associada à ideia de que se pensarmos seriamente no assunto conseguiremos descobrir um bom contra-argumento que nos permita usufruir de um excelente bife do lombo com a maior tranquilidade de espírito. No entanto, se aceitarmos as razões propostas, parece evidente que esse objectivo não é facilmente alcançável. E rejeitar sem qualquer argumento um determinado ponto de vista não é uma decisão racionalmente meritória.
Ora, é esta característica que nos permite compreender que o facto de um argumento ser logicamente bem construído não depende de a lista de razões apresentadas em benefício de uma dada asserção incluir apenas asserções verdadeiras. Pretende-se sublinhar a ideia de que, caso a asserção que desejamos justificar seja falsa, então, pelo menos uma das razões apresentadas também o é. Nestas circunstâncias, ou as razões apresentadas são insuficientes ou simplesmente não merecem crédito.
Todavia, se perguntarmos convictamente a nós próprios por que motivo isto é assim, se quisermos de facto compreender a razão pela qual num argumento logicamente bem construído a verdade das suas razões implica a verdade da asserção a justificar, começaremos a compreender a preocupação típica da lógica. Compreenderemos, ainda, que os lógicos se encontram acerca de argumentos numa posição análoga à dos cientistas ao interrogarem-se a respeito da composição química da água. Apesar de a água ser a mais vulgar das substâncias, demorou algum tempo até que soubéssemos realmente de que substância se trata. Ora, a pergunta que os lógicos fizeram a si próprios foi: em virtude de que factores somos racionalmente compelidos a aceitar uma dada asserção e em que circunstâncias podemos estar seguros de que essa asserção é realmente uma consequência de um conjunto de outras asserções? Se a resposta correcta for obtida, ficamos a saber algo mais a respeito de nós próprios e do que significa analisar racionalmente os problemas que colocamos.
É verdade que nem sempre somos tão exigentes a respeito de argumentos, pelo menos se pensarmos na atitude que por vezes assumimos perante perspectivas discordantes. De facto, não procedemos à análise cuidadosa das razões propostas e, a maior parte do tempo, limitamo-nos a confiar na intuição. Acontece que a confiança que muitas vezes depositamos na intuição pode ser enganadora e quando se trata de estabelecer um teorema matemático toda a atenção é pouca. A avaliar pelos exemplos disponíveis, são muitas as razões para afirmar que esse cuidado tem sido recompensado.
Um argumento interessante e ilustrativo no domínio da teoria matemática dos conjuntos é o seguinte. Sabe-se que, dados dois conjuntos A e B, A está incluído no conjunto B se todos os elementos que pertencem a A pertencem também a B. Por outro lado, sabemos que o número de elementos do conjunto vazio é igual a 0. Vamos agora provar que o conjunto vazio está incluído em qualquer conjunto.
O argumento baseia-se nas definições de inclusão e conjunto vazio complementadas com algum talento para construir argumentos racionalmente convincentes. Vejamos o que é possível fazer com estes ingredientes.
Procuremos, em primeiro lugar, imaginar o que aconteceria se existisse um conjunto M no qual o conjunto vazio não estivesse incluído. O nosso primeiro passo consiste, portanto, em assumir como hipótese precisamente o contrário daquilo que se quer demonstrar. Perguntemos a seguir o que é necessário para que o conjunto vazio não esteja contido em M. Pela definição de inclusão, ficamos a saber que é necessário que pelo menos um elemento pertencente ao conjunto vazio não pertença a M. Ora, isto não é possível. E não é possível porque o conjunto vazio não tem elementos. Como a única condição para que o conjunto vazio não esteja incluído em M não é satisfeita, o conjunto vazio está necessariamente contido em M. Dado não ser difícil reproduzir o mesmo argumento para qualquer outro conjunto, podemos afirmar que provámos o resultado desejado.
O exemplo precedente é ilustrativo, entre outros aspectos, quanto ao facto de aceitarmos a asserção inicialmente proposta como verdadeira apenas em função de critérios racionais, sem que outro género de factores seja considerado relevante para o efeito. Em geral, esta é a prática que se tem em mente quando discutimos hipóteses e teorias científicas ou filosóficas, mas a utilidade em proceder do modo indicado ultrapassa largamente o que é habitual acontecer nestas áreas do conhecimento. Recorde-se, por exemplo, o papel que os argumentos éticos, políticos ou jurídicos desempenham na vida comunitária. Não se tornará difícil perceber a importância da sua cuidadosa avaliação racional.
Tente agora imaginar o que seria a nossa civilização se o comportamento usual acerca de argumentos fosse a sua aceitação ou rejeição apenas em função de critérios não racionalmente motivados. É claro que não existiria ciência nem qualquer dos benefícios dela decorrentes para a vida comum; não existiria física, nem matemática, nem computadores, rádios, meios de transporte sofisticados e outros artefactos de que estamos em condições de usufruir. Não existiriam regras de conduta nem princípios de decisão que não fossem arbitrários e, em geral, a nossa vida seria bastante confusa e decepcionante, sujeita a todo o tipo de caprichos imprevisíveis. Contudo, seria injusto acusar os lógicos dos males da civilização ou de nos sentirmos culpados quando comemos carne de vaca.
Detenhamo-nos um pouco aqui e regressemos momentaneamente ao argumento do nosso amigo vegetariano.
Um dos méritos de uma análise cuidada reside em mostrar-nos como proceder perante um argumento, e esse mérito é tanto mais admirável quanto maior o grau de complexidade envolvido no argumento. No caso que estamos a analisar, o argumento do nosso amigo vegetariano, parece necessário mostrar que pelo menos uma das razões propostas, se não comprovadamente falsa, é no mínimo discutível. Para isso, é útil dispor o argumento na forma mais clara de modo a facilitar a identificação das razões e a separá-las da asserção a defender. Uma vez concluído este estádio inicial estamos em condições de prosseguir. O argumento do nosso amigo vegetariano apresenta o seguinte aspecto:
A dor é um mal.
Provocar a morte de seres sencientes é causa de dor.
Logo, não devo alimentar-me de seres sencientes.
O leitor atento terá notado que este argumento apela a uma razão não explícita que a lista acima não inclui.
De facto, é necessário assinalar que a análise completa de argumentos obriga à listagem exaustiva das suas razões. Mas nem sempre isto sucede — em particular, se o contexto permite a identificação das razões implícitas. Mas recorrer ao contexto não é uma boa forma de proceder se queremos analisar detalhadamente um argumento e, por este motivo, deixo ao leitor a tarefa de a explicitar.
Esta preocupação pode à primeira vista ser considerada desnecessária. Mas, se desejamos discutir racionalmente um argumento é indispensável ter ideias claras acerca do que se pretende discutir e o primeiro aspecto a ter em conta consiste em determinar exactamente que argumento está a ser apresentado. Em certos casos, confundir a conclusão com alguma das premissas (ou o inverso, se tomarmos como premissa o que é de facto a conclusão), podemos estar a desviar-nos do objectivo, por exemplo, ao combater um argumento muito diferente daquele que realmente nos foi proposto. O mesmo acontece se não tivermos consciência de todas as razões que apoiam a asserção a defender.
Agora que uma situação não tão invulgar como possa parecer foi evitada, podemos colocar as perguntas que realmente importam. Se o leitor for um oponente feroz do ponto de vista que está a ser defendido, basta-lhe, a título de exercício, seleccionar pelo menos uma das premissas e argumentar solidamente a favor da sua presumível falsidade. Se for bem-sucedido, não se iluda: há melhores argumentos do que este em defesa do regime vegetariano, e bastante mais difíceis de combater.
Acontece que ao ouvirmos as razões apresentadas por alguém com quem conversamos é possível antecipar o ponto onde o nosso interlocutor pretende chegar antes mesmo de este ter sido indicado.
Ora, aquilo que conseguimos antecipar nas suas palavras consiste na conclusão que delas se segue. Foi precisamente para nos fazer chegar a essa conclusão que durante alguns minutos se esforçou por argumentar em seu benefício. Assim, quando antecipamos a conclusão desejada limitamo-nos a reconstituir por nós próprios o raciocínio que havia conduzido o nosso interlocutor à sua tese inicial. De facto, ao conversar connosco ele estava apenas a esforçar-se por transmitir em voz alta o que antes tinha aceite como verdadeiro (ou falso) em consequência de um conjunto de reflexões por vezes demoradas. As razões por si apresentadas devem ser entendidas como as premissas do raciocínio que efectuou e a ideia que pretendia defender como a sua conclusão. As premissas de um raciocínio são a informação à partida disponível com base no qual se extrai uma conclusão.
Como é óbvio, o facto de termos conseguido antecipar a conclusão desejada não se deve a uma especial capacidade de adivinhação da nossa parte. Casos deste género mostram que, dado um certo conjunto de razões (premissas), o auditor atento está em condições de determinar, em parte pelo menos, que consequências resultam das premissas. Sempre que algo de semelhante acontece, podemos estar seguros de que estamos perante um processo de inferência, isto é, aquilo que é habitual designar por raciocínio. Um argumento não é mais que a expressão linguística de uma inferência.
Para compreender isto, basta verificar que não é possível justificar racionalmente asserção alguma se as razões que desejamos ver reconhecidas não sejam comunicadas oralmente ou por escrito. Assim, um argumento pode ser entendido como um conjunto de asserções com algumas características particulares. Formalmente, podemos dizer o seguinte. Dado um certo conjunto de asserções P1, P 2,..., Pn , tal que uma outra asserção Q, não necessariamente diferente de Pn, se segue das primeiras, obtém-se um conjunto K = {P 1, P2,..., Pn } ∪ {Q} pelo qual o argumento é exaustivamente representado. Pretendemos com isto sublinhar que uma inferência é um conjunto formado pela união entre dois conjuntos cujos elementos são, respectivamente, as premissas e a conclusão.
Se pensarmos agora no modo como o nosso conhecimento é alcançado verificamos que a única forma de o obter consiste em reflectir sobre a realidade (por vezes arduamente) com vista a chegar àquelas conclusões que nos permitem de facto compreendê-la melhor. Acontece que para isso necessitamos de fazer inferências. Assim, quando formulamos um argumento, limitamo-nos a apresentar publicamente as inferências que nos permitiram alcançar as conclusões que realmente alcançámos.
Por outro lado, se sucede que as consequências lógicas decorrentes das nossas inferências nos são imediatamente acessíveis, é bastante mais vasto o número de casos em que não temos uma consciência imediata, nem sequer precisa, de qual a conclusão a extrair de um certo conjunto de informações que julgamos — ou sabemos — correcto. Um exemplo trivial do primeiro género é o seguinte. Se possuo a informação de que todos os homens são mortais e que Sócrates é homem, estou autorizado a concluir que Sócrates é mortal. Na verdade, as coisas seriam bastante simples e a lógica um instrumento não excessivamente importante, se a totalidade dos nossos raciocínios fossem deste tipo. Sabemos, no entanto, por experiência própria, ao estudarmos matemática ou física, por exemplo, que os processos que nos conduzem a descobertas importantes são algo mais complexos.
Mas, ainda que todas as nossas inferências fossem tão transparentes que fosse impossível cometer erros lógicos, é um interessante desafio intelectual determinar em virtude de que factores podemos considerá-las logicamente bem construídas, tal como foi um desafio estimulante para os químicos descobrir que a água é H2O. Apesar da sua utilidade para a vida ser independente de o sabermos ou não, poder satisfazer a nossa curiosidade natural acerca do mundo é por si só um empreendimento gratificante. Qualquer instrumento capaz de fazer progredir esta curiosidade é não apenas desejável como contribui à sua maneira para que façamos também justiça às nossas capacidades racionais.
De facto, ficamos a saber bastante mais acerca de um assunto de que estejamos a tratar se formos capazes de reflectir sobre ele correctamente do que ficaríamos se esta tarefa se revelasse impossível. Como é óbvio, a forma de progredir racionalmente numa investigação não consiste em adivinhar a resposta correcta para os problemas que nos interessam ver esclarecidos mas antes descobri-la. Exigimos, portanto, não uma qualquer resposta mas uma resposta cuja verdade seja racionalmente satisfatória — que possa ser testada, entre outras coisas, pelo conjunto das suas consequências. O tipo de teste que os lógicos têm em vista baseia-se no seguinte princípio. Se, ao assumirmos uma determinada hipótese formos conduzidos a uma conclusão que sabemos ser falsa, e se a inferência que efectuámos for válida, então a hipótese donde partimos não pode ser verdadeira. Este é um princípio unanimemente utilizado na análise de teorias científicas e também quotidianamente.
No entanto, nem todas as inferências que estamos em condições de realizar, e das quais o nosso conhecimento depende, recaem sob o âmbito da lógica. A jurisdição da disciplina obedece a um limite preciso, pelo menos na opinião da maioria das pessoas que estudam o assunto. Não há, por exemplo, razões de ordem estritamente lógica que permitam garantir que inferências cujas premissas resultem de dados recolhidos experimentalmente e a conclusão seja uma generalização desses dados (por exemplo, quando concluímos que todas as esmeraldas são verdes com base no facto de os exemplares que observámos até hoje o serem), tenham a característica de, caso as premissas sejam todas verdadeiras, seja impossível a falsidade da conclusão. Este é um exemplo de inferência indutiva e a análise deste tipo de inferências é efectuada fora do âmbito da lógica, em geral, no quadro do cálculo de probabilidades e em epistemologia. As inferências de que se ocupa a lógica, cujo tipo particular inclui todos os exemplos fornecidos até ao momento excepto o último, são designadas dedutivas. (As importantes diferenças entre indução e dedução serão mais tarde consideradas.)
De momento, convém assinalar que o interesse da lógica por este género de inferências decorre de, ao invés dos restantes tipos de inferência, possuirem a propriedade de serem válidas em virtude da sua forma.
Todos os seres humanos têm algo a dizer sobre a realidade que os rodeia e um conjunto de crenças (nem sempre verdadeiras) acerca do mundo que pretendem transmitir e partilhar com os seus próximos. É vulgar que dessas crenças se sigam certas conclusões cuja justificação para serem aceites como verdadeiras (ou falsas) envolve determinar com clareza em que medida são uma consequência de que premissas. Ainda que não caiba à lógica estabelecer critérios para aceitar uma proposição como verdadeira, compete-lhe esclarecer em que medida uma proposição é uma consequência de um certo conjunto de outras proposições. Caso o veredicto seja negativo algo exige revisão.
Este facto permite explicar o interesse de algumas pessoas particularmente conscientes da importância da argumentação em propor um método que permitisse determinar as circunstâncias em que uma inferência merece ser considerada válida. A primeira pessoa a fazê-lo de uma forma sistemática foi Aristóteles, um filósofo grego da Antiguidade. O seu exemplo foi seguido por vários outros filósofos, entre os quais um lógico medieval português chamado Pedro Hispano. Durante o século XX o tema sofreu um desenvolvimento imenso devido, em particular, à descoberta da lógica moderna por Frege.
Na verdade, o estudo da lógica desenvolveu-se em torno de uma ideia principal: a ideia de validade. Esta é uma ideia notável porque nos permite compreender, entre outras coisas, a razão pela qual, em certas circunstâncias, podemos confiar nas conclusões a que chegamos ao efectuar uma inferência. Dado que o conceito de validade tal como emprege pelos lógicos foi amplamente utilizado nos capítulos anteriores em associação com o conceito de argumentação, resta-nos dar a sua definição.
Diz-se que um argumento é válido na circunstância em que: se as suas premissas são todas verdadeiras, então a conclusão não pode ser falsa. Vejamos agora algumas consequências que se seguem da definição.
O primeiro aspecto a sublinhar é o seguinte. Não podemos estar certos de que, partindo de premissas verdadeiras, alcançamos uma conclusão verdadeira a menos que a inferência efectuada seja válida. Vejamos um pouco melhor este aspecto decisivo. Se pensarmos que numa inferência se pretende que a conclusão seja uma consequênca das premissas, torna-se evidente que a única forma de o garantir consiste em raciocinar validamente. Garantimos também que se as premissas forem verdadeiras, a verdade da conclusão é uma consequência da verdade das premissas. Este é um aspecto importante porque implica que ao raciocinarmos validamente, a validade preserva a verdade das premissas — digamos, transferindo-a sem danos colaterais para a conclusão. Não corremos, portanto, o risco de chegar a conclusões falsas a partir de premissas verdadeiras. Esta característica permite afirmar que o argumento que estabelece a propriedade de o conjunto vazio estar incluído em qualquer conjunto é convincente. Ele prova-nos que é realmente assim que as coisas se passam.
Mas, se quisermos avançar com segurança, é necessário possuir uma ideia precisa acerca dos conceitos principais envolvidos na definição de validade. Como vimos, a validade foi definida à custa do conceito de possibilidade. Dissemos que, se as premissas são todas verdadeiras, então, é impossível que a conclusão seja falsa. O nosso problema consiste em determinar exactamente o que entendemos por possibilidade. Na verdade, nem sempre se tem consciência de que existem vários tipos de possibilidade. Uma vez discriminados os diferentes sentidos em que este termo é utilizado, estaremos finalmente em condições de apreciar o que se pretende dizer quando falamos em validade.
Observemos os seguintes exemplos: (i) Existem triângulos cujo número de ângulos internos é igual a 4; (ii) Talvez no futuro uma nave consiga viajar mais depressa que a velocidade da luz. O que há de surpreendente nestes exemplos? Bem, não é simplesmente possível que um triângulo tenha 4 ângulos internos, tal como não é possível que um corpo se movimente a uma velocidade superior à da luz. Mas a diferença entre (i) e (ii) reside na razão pela qual isto não é possível. Se nos perguntarmos em virtude de que factores (i) e (ii) exprimem impossibilidades, verificamos um facto crucial.
Consideremos (ii). A impossibilidade de um corpo se deslocar mais depressa do que a velocidade da luz é o resultado das leis da física. Estas leis reflectem o modo como o mundo está constituído e é a própria organização da matéria que torna (ii) impossível. Se o leitor sugere que a extraordinária evolução científica e tecnológica do último século justifica que, num futuro talvez muito distante, uma nave esteja em condições de realizar a proeza indicada, bem, sucede que está enganado. Talvez as leis da natureza pudessem ser logicamente diferentes do que são e, se fossem do género apropriado, isso podia acontecer. Ora, o facto de considerarmos (ii) impossível decorre do modo como o mundo é. Digamos, então, que possuímos sólidas razões empíricas para afirmar (ii) impossível.
Vejamos agora o primeiro caso. A impossibilidade expressa em (i) não depende de qualquer lei da natureza da qual tenhamos conhecimento. Este facto não exige conhecimento algum acerca do mundo; é, se quisermos, algo que podemos saber sem recorrer à experiência. Trata-se, pois, de um conhecimento a priori. Na verdade, sabemos que (i) é impossível baseados no facto de sermos pessoas linguisticamente competentes, isto é, apenas porque conhecemos o significado da palavra “triângulo”. Se sabemos o que significa “triângulo”, sabemos ainda que se algo possui 4 ângulos internos, então, não é um triângulo. Admitir o contrário conduziria a uma contradição. O mesmo sucede com a frase “Alguns solteiros são casados”. Esta frase é obviamente contraditória dado que “solteiro” significa precisamente não ser casado. Portanto, (i) é impossível por razões semânticas e não empíricas.
Ora, não existe contradição em viajar mais depressa que a velocidade da luz. Apesar de ser fisicamente impossível, (ii) não é logicamente impossível. Mas se o leitor admitiu que as leis da natureza poderiam ser diferentes do que realmente são, isso deve-se ao facto de admitir que um mundo diferente do mundo actual não é logicamente impossível. No entanto, isto não significa que tudo aquilo que conhecermos apenas em virtude da observação seja contingente. Mas se algo é logicamente impossível é também empiricamente impossível. É fácil imaginar um mundo no qual Wellington tivesse sido derrotado em Waterloo mas não conseguimos imaginar alguém solteiro e casado. A menos que o significado de “solteiro” mude radicalmente, é inútil investigar se alguém está nessas condições. Em contrapartida, a competência linguística não é suficiente para provar que E = mc .2
Sucede (não é uma surpresa) que o sentido de possibilidade que interessa aos lógicos não é o de possibilidade física. Na verdade, a lógica não tem interesses directos a respeito do mundo mas apenas acerca da maneira como fazemos inferências. Logo, dado um argumento, a pergunta é: será logicamente possível que as circunstâncias que tornam as premissas todas verdadeiras tornem falsa a conclusão? Que esta possibilidade seja o caso é suficiente para declarar inválido o argumento.
Este é um resultado crucial pela seguinte razão. Encontramo-nos, finalmente, em condições de esclarecer a razão qual a verdade não implica falsidade. Se se dá o caso de ser logicamente impossível que um argumento válido contenha premissas verdadeiras e conclusão falsa, o facto de a validade preservar a verdade não é uma característica acidental desse argumento. Sabemos agora que o contrário é logicamente impossível com base no mais forte tipo de possibilidade que observámos. Por outro lado, o facto de uma inferência ser válida não depende do modo como o mundo é.
Usamos a seguinte notação para indicar os argumentos válidos: P1, P 2,..., Pn ⊨ Q, onde o símbolo “⊨” indica que a conclusão é uma consequência (semântica) das premissas listadas à esquerda.
Esta forma de representar um argumento válido é utilizada independentemente do valor de verdade das suas premissas e conclusão. De facto, existem argumentos válidos cujas conclusões são falsas. Note-se que a definição de validade é da forma “se... então...” e limita-se a indicar que condição exige ser satisfeita para que a impossibilidade da conclusão de um argumento ser falsa se verifique. Ora, esta condição é a de que todas as premissas sejam verdadeiras. E, como vimos antes, nem sempre isto acontece. Mas, se essa condição não for satisfeita, deixa de haver razões para exigir a impossibilidade de a conclusão ser falsa. Aliás, é com base na definição de validade que se torna possível pôr em causa a verdade da conclusão de um argumento logicamente bem construído sem duvidar que a conclusão se siga realmente das premissas que constituem o seu ponto de partida.
Isto mostra que ainda que a conclusão de um argumento seja uma consequência das suas premissas daí não se segue que essas premissas são verdadeiras. Acontece apenas que no caso de o serem, uma conclusão falsa não pode ser a sua consequência lógica. Como vimos, premissas verdadeiras não implicam uma conclusão falsa.
Ora, se um argumento é inválido, a conclusão não resulta das premissas, isto é, unicamente à custa da sua forma lógica. Daí a inutilidade lógica destes argumentos. Como não existe entre premissas e conclusão uma relação de consequência lógica, a verdade das premissas não nos obriga a aceitar a conclusão.
Imagine o leitor que tem conhecimento de um familiar ou amigo que deseja comprar uma casa e que essa pessoa (digamos, o António), a última vez que se encontraram, lhe disse “Se as taxas de juro baixarem compro uma casa no litoral”. Imagine também que, algum tempo depois, o António comprou uma casa. Se concluir que a taxa de juro baixou, a sua inferência não é válida. Este pode ser um resultado surpreendente. Muitas pessoas aceitariam o argumento sem hesitar, ainda que, ao fazê-lo, cometam um erro lógico bastante elementar. Tudo quanto necessitamos é verificar por que motivo é assim.
O argumento deixa-se representar pelo seguinte conjunto de asserções.
Se as taxas de juro baixarem, António compra uma casa no litoral.
António comprou uma casa no litoral.
Logo, as taxas de juro baixaram.
O que há de errado neste argumento? Aparentemente, nada. Mas, se é realmente inválido, pela definição de validade segue-se a possibilidade de ambas as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. Uma análise pormenorizada mostra que é isto que acontece. Este ponto justifica uma análise detalhada.
Basta pensar na hipótese de António ter recebido uma herança, ter sido recompensado por um bom negócio ou ter ganho o primeiro prémio do Totoloto, para se compreender o que está em causa. Como estas possibilidades são compatíveis com o facto de as taxas de juro permanecerem estáveis ou até terem subido (casos que tornariam falsa a conclusão), a inferência é inválida. De facto, a primeira premissa afirma que a baixa das taxas de juro é uma condição para que António compre uma nova casa, não afirma que a satisfação do desejo de António condiciona a descida dos juros. Este exemplo mostra-nos em que medida raciocinar invalidamente tem consequências desagradáveis.
Um leitor menos disposto a aceitar o resultado da análise precedente poderá interessar-se por colocar a seguinte objecção: que aconteceria, numa situação igualmente hipotética, se a taxa de juro tivesse de facto baixado? Não estaríamos, nesse caso, perante premissas verdadeiras e conclusão verdadeira? A resposta é: claro que sim. No caso hipotético descrito a conclusão seria verdadeira. Mas, se o leitor desejar prosseguir nesta linha e defender que a inferência acima pode ser válida em certas circunstâncias, ainda que inválida noutras, comete um erro. Vejamos a razão pela qual isto sucede.
Imagine, por exemplo, que não se lembra onde guardou um par de sapatos que lhe apetece calçar num dado momento. A sua atitude será a de tentar recordar-se e, se não o conseguir, de o procurar onde habitualmente os sapatos são guardados. Imagine agora que a sua investigação foi tão meticulosa que os procurou em todos os lugares da casa onde verosimilmente poderiam ter sido guardados, sem o conseguir. Ao fim de algum tempo acabou por desistir. Imagine ainda que foi tomar o pequeno-almoço particularmente irritado com a sua memória mas decidido a esquecer o assunto. E imagine, por exemplo, que durante o pequeno-almoço os seus pés chocam debaixo da mesa com um objecto indeterminado. Ao curvar-se na cadeira encontra os sapatos que tinha desistido de procurar.
Que conclusão extrai desta história? Que encontrou os sapatos por acaso. Não, é claro, em consequência de uma investigação deliberada. Retomemos o nosso argumento. Tal como obteve o que pretendia em função do acaso e não em consequência de uma procura intencional, também na inferência acima a verdade da conclusão, caso o seja, não é uma consequência da verdade das premissas. A descida da taxa de juro não é, de todo, uma consequência da informação que possui acerca do António. Donde, a conclusão — ainda que eventualmente verdadeira — não se segue do conjunto de premissas
Se um argumento é válido, isso quer dizer que não há qualquer circunstância em que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. Logo, não faz sentido dizer que um argumento é inválido numas circunstâncias e válido noutras.
Exibimos um argumento em que a conclusão não se segue das premissas. De facto, nada se segue desse conjunto de premissas. Logo, porquê comprometermo-nos com a verdade de uma asserção que não é uma consequência da informação que possuímos e sabemos correcta, ainda que pareça sê-lo? Nada nos obriga a fazê-lo. Tal como a teoria de Copérnico representou para a física o primeiro passo decisivo que nos permitiu não confundir o movimento aparente do Sol com a realidade, algo de semelhante sucede a respeito de inferências. Não é sequer demasiado difícil indicar um bom número de exemplos onde a fronteira entre um argumento válido e um argumento logicamente mal construído não permite ser traçada sem a ajuda de instrumentos especializados construídos para o efeito. Foi este, aliás, o principal motivo para o desenvolvimento sistemático da disciplina.
Outra consequência interessante da definição de validade é que existem argumentos válidos com premissas falsas e conclusão verdadeira. Uma característica notável acerca de validade é a seguinte. Num argumento válido a verdade das premissas é preservada na conclusão. Contudo, se existem argumentos válidos cujas premissas são falsas e a conclusão verdadeira, a falsidade das premissas não é preservada na conclusão.
Ora, apesar de existirem argumentos válidos com premissas e conclusão falsas, o facto de sabermos que a conclusão de um argumento válido é verdadeira não permite concluir que todas as suas premissas sejam igualmente verdadeiras. De facto, pode suceder qualquer das seguintes duas possibilidades: (i) todas as premissas do argumento são falsas; (ii) pelo menos uma das premissas é falsa.
Vejamos um caso ilustrativo do primeiro género.
As girafas alimentam-se da carne de outros animais.
Os seres que se alimentam da carne outros animais são mamíferos.
Logo, as girafas são mamíferos.
Até um leitor momentaneamente distraído está em condições de verificar que a conclusão do argumento acima é realmente uma consequência das premissas. No entanto, as premissas são ambas falsas (as girafas são animais herbívoros e há animais, como as cobras, que incluem carne na sua ementa e não são mamíferos), enquanto a conclusão é verdadeira. Ora, este não é, apesar de válido, um bom argumento. É óbvio que as razões listadas em (1) e (2), por serem falsas, não permitem justificar a conclusão.
O número de casos em que algo de semelhante pode acontecer é ilimitado. À primeira vista trata-se de um resultado decepcionante, em particular se o leitor foi levado a admitir que o facto de um argumento ser válido é suficiente para garantir a verdade da conclusão. Mas esta exigência não é salutar nem indispensável. De facto, ela é impossível de satisfazer, e não podemos acusar a lógica de ficar aquém de expectativas incorrectas. Garantir em que circunstâncias uma inferência é válida é apenas um primeiro passo para que valha a pena discutir as razões a que um argumento faz apelo.
Esta é uma exigência sensata. Porquê perder tempo a discutir razões quando se dá o caso de não implicarem a conclusão? Quanto muito, podemos chamar a atenção do nosso interlocutor para este facto e esperar que o ponto seja aceite. Se isto acontecer, há ainda a possibilidade de o argumento ser reformulado do modo conveniente após alguma reflexão suplementar. Ao proceder assim ganhou-se em clareza e rigor o que, momentaneamente, pôde parecer uma simples perca de tempo. Noutros casos, ganhou-se o facto de deixar cair um ponto de vista para o qual não se possui razão alguma.
Convém, portanto, distinguir os conceitos de validade e de correcção. Diz-se que um argumento é correcto se, caso seja válido, todas as suas premissas são verdadeiras. Não existem argumentos correctos inválidos.
Isto não significa, todavia, que todos os argumentos válidos com premissas verdadeiras são bons argumentos. Existem argumentos válidos cujas premissas e conclusão são verdadeiras sem que esta característica seja suficiente para os tornar realmente convincentes. Um exemplo típico seria o seguinte.
O quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos.
Logo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos.
Parece claro que se Pitágoras tivesse proposto este argumento como prova do seu célebre teorema, dificilmente alguém o aceitaria. Trata-se, no entanto, de um argumento válido. Para isso basta compreender que se a premissa for verdadeira é impossível que a conclusão seja falsa (na verdade, ambas possuem o mesmo conteúdo). Tem-se, assim, que a validade de um argumento não é uma condição necessária nem suficiente de verdade. Não é uma condição suficiente porque não basta um argumento ser válido para que a sua conclusão seja verdadeira. E não é igualmente uma condição necessária de verdade uma vez que existem argumentos inválidos com conclusões verdadeiras.
Uma apresentação sinóptica do que acaba de ser indicado é a seguinte:
Premissas | Conclusão | Validade |
Verdadeiras | Verdadeira | SIM |
Verdadeiras | Falsa | NÃO |
Falsas | Verdadeira ou Falsa | SIM |
Os factos que acabamos de relatar acerca de validade permitem afirmar que a validade de uma inferência é independente do valor de verdade das asserções que a constituem. Em função do que foi dito acima, este não pode ser considerado um resultado demasiado surpreendente. De que depende, então, a validade de um argumento? A nossa tarefa reside em fornecer a resposta a este problema.
Para isso, é necessário considerar a distinção entre forma e conteúdo. Vejamos os aspectos preliminares envolvidos.
Consideremos as seguintes duas sequências de símbolos: (i) “Gramut begnet yassur” (ii) “A neve é branca”. Uma vez que acabo de inventar a primeira, a distinção básica a estabelecer entre ambas as sequências é que apenas a segunda tem conteúdo. Com isto, pretende-se afirmar que o conteúdo de uma sequência de símbolos (neste caso uma frase do português) consiste no seu significado. Na realidade, se pretendo afirmar ou negar algo, é necessário que a minha asserção tenha significado.
Ora, um facto notável a respeito do significado de uma asserção é que a sua verdade ou falsidade lhe está intimamente associada. Sucede que uma sequência de símbolos desprovida de significado é inutilizável como asserção e também para outros efeitos. Vejamos agora o caso de (iii): “La neige est blanche”. É claro que (ii) e (iii) têm o mesmo significado, respectivamente, em português e francês. Este facto permite-nos pensar que ao afirmarmos serem ambas as frases verdadeiras pretendemos dizer que uma frase é verdadeira ou falsa em função do seu conteúdo e não da sequência particular de símbolos que a constitui. Mas, se uma frase é verdadeira ou falsa em virtude do seu conteúdo, é ao conteúdo que a propriedade de ser verdadeiro se aplica, não à frase enquanto tal.
Detenhamo-nos um pouco aqui. É fácil verificar que o significado de (ii) não coincide com o significado das suas partes componentes isoladamente consideradas. Há um número ilimitado de frases com diferentes significados onde as expressões “neve” e “brancura” podem ocorrer. Uma e outra representam propriedades, isto é, características que certos objectos exemplificam num ou noutro momento — digamos, a característica de um certo agregado de H2O ser neve e de esta folha de papel onde se sucedem as palavras que escrevo ser branca. Mas (ii) e (iii) retiram o seu significado do facto de os predicados que representam estas propriedades se encontrarem associados de certa maneira. Estes predicados estão associados de maneira a representarem um pensamento particular, isto é, o pensamento que a neve é branca. Torna-se, portanto, evidente que representar uma propriedade é diferente de exprimir um pensamento, algo que apenas uma frase completa pode fazer.
Ora, o significado de uma frase declarativa consiste na proposição expressa pela frase. Esta distinção pode ser captada considerando: (a) “António acredita que a neve é branca”; (b) “Richard crois que la neige est blanche”. A nossa intuição é que António e Richard acreditam na mesma coisa. Mas que coisa? Ambos acreditam que “A neve é branca” e “La neige est blanche” são frases verdadeiras.
Vejamos. A relação de crença que (a) e (b) atribuem respectivamente a António e a Richard é algo que tem lugar entre indivíduos e frases ou entre indivíduos e proposições? Se quisermos manter a ideia intuitiva de que ambos acreditam na mesma coisa, então, é necessário concluir que a relação se verifica entre indivíduos e proposições, não entre indivíduos e frases. Como as frases são diferentes, se a relação fosse a segunda, é evidente que António e Richard não acreditariam na mesma coisa. Segue-se, então, que duas frases exprimem a mesma proposição se, e apenas se, são sinónimas.
Que importância pode ser atribuída a estes factos? À primeira vista, a distinção resulta um pouco académica e rebuscada na terminologia sem que o resultado iluda alguma trivialidade. No entanto, ao falarmos em proposições para nos referirmos ao conteúdo de asserções permite-nos retomar um aspecto já referido acerca de argumentos. Quando declaramos válido um argumento queremos dizer que as proposições expressas pelas premissas implicam a proposição expressa pela conclusão. Assim, o conceito de validade aplica-se a uma certa relação que se verifica entre o conjunto de proposições que constituem o argumento, não às asserções que as exprimem. Ora, a análise que efectuámos de (ii) e (iii) aplica-se também a diferentes representações linguísticas do mesmo argumento (verificamo-lo traduzindo qualquer dos argumentos já apresentados para outra língua). Daí que seja mais correcto tratar os argumentos como conjuntos de proposições, não de frases ou asserções.
Vejamos agora outro aspecto decisivo. Considerem-se as seguintes duas frases: (c) Platão é grego; (d) Descartes é francês. Alguma atenção permite-nos verificar que apesar de diferentes significados (exprimem diferentes proposições) estas frases possuem a mesma forma. Trata-se de frases da forma sujeito-predicado, pela qual uma certa propriedade (expressa pelo predicado) é atribuída a um sujeito, respectivamente, Platão e Descartes. É evidente que nem todas as frases têm esta forma mas o exemplo é suficiente para ilustrar o que se pretende. Ora, de que maneira poderemos representar este facto? Bem, dado que é a forma que desejamos trazer à superfície, a melhor maneira de proceder consiste em abstrair do conteúdo, facto que se obtém substituindo nome e predicado por símbolos convencionalmente adoptados para o efeito. Fica-se, então, com o esquema: x é P. Na linguagem específica da lógica este facto é representado do seguinte modo canónico.
P (x)
Esta maneira de representar frases da forma sujeito-predicado permite-nos visualizar com bastante economia e clareza o facto de possuirem um padrão comum. Na verdade, x representa qualquer objecto ou indivíduo a denotar por um nome próprio e P representa qualquer predicado pelo qual seja atribuível ao objecto relevante uma certa propriedade. Donde, não apenas (c) e (d) são exemplificações do padrão indicado, como qualquer outra frase do mesmo tipo constitui uma instância, ou caso particular, desse padrão. Vejamos de que modo esta característica é extensível a outro tipo de frases.
Considerem-se os seguintes exemplos: (e) Os portugueses são europeus; (f) Os chineses são asiáticos. Ao contrário dos exemplos precedentes, (e) e (f) não são frases constituídas por sujeito e predicado. Na verdade, ao afirmarmos que os portugueses são europeus não estamos a referir indivíduos particulares; estamos a afirmar uma relação entre duas classes ou conjuntos. É claro que esta relação envolve indivíduos mas apenas enquanto membros de uma classe ou como elementos de um conjunto, não enquanto sujeitos determinados. De facto, o que (e) e (f) afirmam é que uma certa classe, respectivamente, a classe dos portugueses e a classe dos chineses, está incluída noutra, isto é, pela ordem indicada, a classe dos europeus e a classe dos asiáticos. Usando o símbolo “⊂” para representar a relação de inclusão entre classes, o padrão comum a (e) e (f) é o seguinte.
P ⊂ Q
De facto, é bastante vasto o número de frases cuja forma pode ser representada como se indica acima.
Quando, por exemplo, dizemos que os números naturais são um sub-conjunto dos racionais formulamos uma asserção cuja forma se deixa também representar pelo mesmo padrão (basta para isso substituir P e Q pelos símbolos matemáticos adequados). Este resultado pode ainda ser generalizado: consoante a sua estrutura, determina-se um padrão do qual a frase é uma instância particular. Esta estrutura exibe a conexão lógica que mantém ligados os elementos que compõem o seu significado.
Indo um pouco mais longe, podemos agora substituir a linguagem da teoria dos conjuntos pela linguagem típica da lógica — na qual, de resto, o conceito de inclusão é representável. Para o conseguirmos basta-nos considerar a definição de inclusão já referida e verificar ser esta a ideia expressa por (e) e (f). Iremos proceder para esse efeito à substituição de P pelo conjunto dos portugueses e Q pelo conjunto dos europeus; em seguida, façamos o mesmo com o conjunto dos chineses e dos asiáticos. A que conclusão chegamos? Bem, à conclusão de que um conjunto está incluído no outro, isto é, que todos os elementos do primeiro conjunto são também elementos do segundo.
Todavia, (e) e (f) contêm um elemento com o qual não fomos ainda confrontados: trata-se da expressão “todos”. Esta expressão não é claramente um predicado. A sua função é a de indicar universalidade.
Daí a necessidade encontrar uma forma de representar a ideia de universalidade para obter uma primeira aproximação ao padrão lógico desejado. Com este objectivo, vamos socorrer-nos do símbolo “∀”. Em conjunção com um símbolo capaz de representar um indivíduo qualquer, digamos x, obtém-se: (Para todo o x)[se x é português, então, x é europeu]. Aplicando esta técnica a (e) temos: (∀x)[se x é chinês, então x é asiático]. Este, no entanto, é apenas um passo intermédio e não uma representação inteiramente satisfatória de um ponto de vista lógico da forma de cada uma destas frases.
Uma maneira de se avançar um pouco mais na direcção pretendida consiste em verificar, por exemplo, que “x é português” é uma frase já semi-formalizada do tipo sujeito-predicado. O mesmo sucede com “x é europeu”. Visto que já sabemos como representar frases com esta forma, tem-se o seguinte resultado: (∀x)[se P(x) então, Q(x)]. Para obtermos uma formalização completa de (e) e (f) resta estipular um símbolo para representar a expressão portuguesa “se..., então...”. Os lógicos designam frases com esta forma por condicionais e adoptaram uma seta para exprimir a relação.
Estamos, finalmente, em condições de exibir o padrão comum a (e) e (f).
(∀x)[P(x) → Q(x)]
Retomemos agora o nosso objectivo inicial. Pretendíamos saber em virtude de que factores um argumento é válido. Ora, a validade de um argumento não depende do valor de verdade das proposições que o constituem. A validade depende apenas da relação que se verifica entre essas proposições.
Não existem demasiadas opções. Na verdade, existe uma única. Um argumento é válido em virtude da sua forma. Para compreender isto basta que considerar cuidadosamente os seguintes exemplos de argumentos.
Exemplo 1
Todos os matemáticos são racionalmente competentes.
João é matemático.
Logo, o João é racionalmente competente.Exemplo 2
Todos os ziglibdin são estrelas cadentes de alta intensidade.
MX 14 é um ziglibdin.
Logo, MX 14 é uma estrela cadente de alta intensidade.
Vimos acima de que modo é possível determinar a forma lógica de uma proposição. Para isso, recorremos a um simbolismo específico, isto é, uma linguagem artificial que foi construída para esse efeito. No entanto, dada o grau de complexidade da linguagem utilizada, é aconselhável para o que temos em mente ilustrar recorrer agora a uma formalização mitigada sem alterar com esta decisão o objectivo.
Na verdade, não existe uma só linguagem disponível para formalizar proposições. Vejamos, então, como proceder.
Uma análise atenta destes exemplos permite compreender em que medida a forma lógica é determinante para a sua validade. Em ambos os casos, a conclusão proposta é uma consequência das premissas. Apesar de ninguém saber o que é um ziglibdin nem que objecto “MX 14” designa, sendo as premissas o que são, é logicamente impossível que a conclusão seja falsa. Como nada sabemos a respeito do seu conteúdo, a única explicação para aceitarmos E2 é a que resulta de se considerar a sua forma.
Tem-se, então, que E1 e E2 partilham o seguinte padrão comum:
Todo o A é B.
x é A.
Logo, x é B.
Apesar de várias insuficiências, esta maneira de representar a forma lógica dos exemplos precedentes permite mostrar que qualquer que seja a interpretação dada a A, B e x se obtém um argumento válido.
Vejamos ainda outro caso.
Exemplo 3
Todos os australianos falam inglês correctamente.
Jimmy é australiano.
Logo, Jimmy fala inglês correctamente.
Como é óbvio, este não é o único padrão de inferência válido. No entanto, um argumento que exemplifique o padrão acima indicado resulta válido independentemente das proposições que o constituam.
Conversamente, para provar que uma forma é inválida é suficiente mostrar que existe uma interpretação, isto é, uma instância particular dessa forma, pela qual as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa. Se nos dermos ao trabalho de voltar à página 8 verificamos ser este o caso do exemplo aí proposto. Usando o expediente da formalização, concluiu-se que toda a inferência com esse padrão lógico é inválida.
Assim, se representarmos pelos símbolos “A” e “B”, respectivamente, as frases “As taxas de juro baixam” e “António compra uma casa no litoral”, estamos em condições de determinar a forma lógica do argumento:
A → B
B
Logo, A
Estamos agora em condições de justificar o objectivo inicialmente proposto para os estudos lógicos. De facto, este objectivo consiste em determinar quais os padrões de inferência válidos de maneira a permitir um escrutínio rigoroso das inferências que efectuamos, bem como das regras de inferência que podem ser utilizadas caso se deseje preservar a validade dos argumentos que construímos para provar asserções. Pelo que acabamos de observar, a intuição não é em muitos casos suficiente.
Com o primeiro objectivo em mente, os lógicos construiram linguagens artificiais do género indicado de modo a representarem formalmente argumentos expressos nas diferentes linguagens naturais (o português, o inglês, o polaco, etc.) e também na linguagem vulgarmente utilizada em matemática.
Em simultâneo, dedicaram-se ao estudos destas linguagens e sistemas formais com vista ao esclarecimento das suas propriedades. Este é um domínio particularmente importante da lógica devido às características do seu objectivo principal. Na verdade, se se pretende estudar as formas de inferência válidas recorrendo à formalização de inferências expressas na linguagem natural ou na linguagem da matemática, é importante, por exemplo, mostrar que essas linguagens não dão origem a contradições.
Utilizámos o conceito de validade para nos referirmos a uma propriedade que as inferências possuem. Podemos agora acrescentar que não existem argumentos verdadeiros, tal como não há argumentos falsos. Este modo de nos expressarmos é talvez habitual em circunstâncias informais mas traduz uma má compreensão acerca do que é um argumento. Um argumento não afirma ou nega seja o que for. Quanto muito, permite justificar a pretensão de uma proposição à verdade. O que não é a mesma coisa. E reservamos os predicados “válido” e “inválido” para serem aplicados apenas a inferências.
Ora, verificámos que o conceito de validade foi definido à custa do conceito de possibilidade lógica. Vamos agora mostrar de que modo a propriedade de um argumento ser válido se deixa definir recorrendo ao conceito de consistência. O objectivo é aprofundar as relações que obtêm entre validade e verdade.
Recorde-se que um argumento pode ser representado como a união de dois conjuntos de proposições, digamos, {P 1, P 2,..., P n} ∪ {Q }. Em complemento, caso o argumento seja válido, denotamos este facto colocando um símbolo apropriado a ligar um conjunto ao outro. Podemos agora dizer que, se o argumento é válido, então, o conjunto união pelo qual se deixa representar é consistente.
Vejamos então o que se entende por consistência. Uma definição de consistência pode ser formulada do seguinte modo: dado um conjunto K de proposições, tal que K = {P 1, P 2,..., P n}, K é consistente se e somente se existe uma interpretação de todas as P i que pertencem a K pela qual resultem verdadeiras. Quando isto acontece diz-se que K tem um modelo. Conversamente, K é inconsistente se não existe uma interpretação pela qual as P i pertencentes a K resultam todas verdadeiras.
A aparência um pouco assustadora da definição pode ser consideravelmente suavizada se recorrermos a exemplos.
Vejamos o primeiro. Faça-se representar pelo símbolo A1 a frase “Todos os portugueses são boas pessoas”. Represente-se ainda por A2 a frase “Nenhum português é boa pessoa”. Para concluir, formemos um conjunto K cujos dois únicos elementos são as nossas duas frases. Deste modo, tem-se K = {A 1 , A2}. Uma vez concluída esta fase preliminar, coloquemos a nós próprios a seguinte questão: será K um conjunto consistente? A resposta é não. Vejamos em detalhe quais as razões deste facto.
Admitamos que A1 é uma proposição verdadeira. Ora, é claro que nesta circunstância A2 tem que ser falsa. Assim, A1 e A2 não podem ser ambas verdadeiras nesta interpretação. Admitamos agora que A2 é verdadeira. Que acontece neste caso? Se A2 for verdadeira, então A1 é falsa. Logo, não existe qualquer atribuição de valores de verdade aos elementos de K pela qual se obtenha K consistente.
Considere-se outro caso. Faça-se B1 representar a frase “Manuel acredita que Júlio César foi um génio militar”. Admita-se ainda que B2 representa “António não acredita que Júlio César fosse um génio militar” e faça-se K = {B 1, B2}. Será K consistente? A resposta é afirmativa. Vejamos por que motivo.
Para que K seja um conjunto inconsistente é necessário que B1 e B2 não possam ser ambas verdadeiras. Note-se que B1 e B2 são ambas frases da forma x acredita que P (onde P representa uma proposição). Sucede que B1 e B2 são verdadeiras em virtude de Manuel e António possuirem as crenças que lhes são atribuídas e não em virtude do conteúdo dessas crenças. Logo, existe pelo menos um modelo M para K sob o qual B1 e B2 resultam ambas verdadeiras. O facto de B1 e B2 serem ambas falsas noutra interpretação (isto é, na hipótese de Manuel e António não terem de facto as crenças que lhes são atribuídas) significa que B1 e B2 não são verdadeiras em todos os modelos.
Outro exemplo de inconsistência é dado pelo seguinte par de frases: “João é solteiro” e “João é casado”. Note-se que estas frases podem ser ambas falsas, ainda que não possam ser ambas verdadeiras. Deixo ao leitor, a título de exercício, a tarefa de indicar a cricunstância em que ambas são falsas.
Em resumo. Um conjunto K = {P 1, P 2, P 3,..., P n} é consistente se e somente se existe pelo menos um modelo M pelo qual todos os elementos de K resultam verdadeiros. Esta condição não é incompatível com a possibilidade de todos os elementos de K resultarem falsos numa outra interpretação. Este facto torna-se claro se considerarmos as proposições A1 e A2. Apesar de não poderem ser ambas verdadeiras, podem ser ambas falsas, por exemplo, se apenas alguns portugueses são boas pessoas.
A consequência daqui resultante é particularmente instrutiva. Se K é inconsistente, segue-se {A1 , A2} ⊨ B (seja qual for a proposição que B represente). Para compreendermos isto basta ver que, dada a inconsistência de K, nunca se tem o caso de todas as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. Na realidade, acabámos de mostrar que é impossível que A1 e A 2 sejam ambas verdadeiras para a mesma interpretação. A moral da história é a seguinte. Se começarmos com premissas inconsistentes, então, estamos em condições de derivar delas seja que conclusão for. E é claro que não queremos que isto se verifique. De facto, se estivermos dispostos a acreditar em proposições inconsistentes, estaremos dispostos a acreditar seja no que for em consequência das crenças de origem.
Dramatizando um pouco poderíamos dizer o seguinte. Se aceitarmos K como um bom ponto de partida para uma inferência, segue-se que ficamos logicamente comprometidos, entre outras coisas, com a existência de quadrados redondos. E é por este motivo que as inconsistências são pouco apreciadas.
O que acabámos de dizer acerca de conjuntos de proposições aplica-se do mesmo modo a proposições isoladas. Dada uma proposição P, tem-se que P é consistente se e apenas se existe um modelo para P.
Vejamos outro caso. Seja K = {C1, C 2}, tal que C1 representa a frase “Todos os estudantes de lógica são interessados” e C2 “Alguns estudantes de lógica não são interessados”. A principal diferença entre este caso e o primeiro é a seguinte. Enquanto um conjunto ser inconsistente não é incompatível com a possibilidade de todos os seus elementos serem falsos, o mesmo não se passa agora. De facto, qualquer modelo para C1 torna C2 falsa; por outro lado, uma interpretação pela qual C1 resulte falsa é um modelo para C2. Quando duas frases se encontram nesta relação dizem-se contraditórias.
Tem-se, assim, que um conjunto de frases ser inconsistente não depende de ser também contraditório.
A razão destes factos é a seguinte. Se for verdade que todos os estudantes de lógica são interessados, então, é falso que alguns o não sejam. Donde, se C1 é verdadeira, C2 é falsa. Por outro lado, se é verdade que alguns estudantes de lógica não são interessados, é necessariamente falso que todos o sejam. Logo, se C2 é verdadeira, C1 é falsa. Assim, não existe um modelo para K sob o qual os seus elementos resultem todos verdadeiros, tal como não existe uma interpretação dos elementos de K pela qual ambos sejam falsos. Em geral, se se quer obter a contraditória de uma proposição P, a melhor forma de o fazer consiste em prefixar a P o símbolo para a negação.
O conceito de contradição aplica-se identicamente a proposições e não apenas a conjuntos de proposições. Exemplos típicos de proposições contraditórias são os seguintes: (i) Sócrates não é Sócrates; (ii) Chove e não chove; (iii) x pertence a P se e somente se x não pertence a P; (iv) O João é solteiro e casado. Assim, uma proposição contraditória é aquela para a qual não existe um modelo.
Se compararmos o que foi dito acima acerca de inconsistência e contradição verificaremos que a relação de contradição é mais forte que a relação de inconsistência. Na realidade, se um conjunto K é contraditório, então K é necessariamente inconsistente. Mas se K é inconsistente não implica que seja contraditório; basta que exista uma interpretação I de K pela qual todos os seus elementos são falsos.
Representando por 1 e 0, respectivamente, os valores verdadeiro e falso, tem-se o seguinte:
Modelo | (1, 1) | (1, 0) | (0, 0) |
Inconsistência | NÃO | SIM | SIM |
Contradição | NÃO | SIM | NÃO |
Vejamos que consequências resultam daqui para a compreensão dos conceitos de validade e argumentação.
Faça-se K = {P1, P 2,..., Pn} ∪ {B} tal que P1, P 2,..., Pn ⊨ B. Nestas circunstâncias, é fácil verificar que K é um conjunto consistente. Na realidade, podemos demonstrar que se se dá o caso de K ser válido, então, K é necessariamente consistente. Podemos igualmente demonstrar que o conjunto L = {P 1, P 2,..., P n} ∪ {A}, se difere de K pelo facto de A e B serem proposições contraditórias (e por nenhuma outra razão) é inconsistente na hipótese de K ser consistente. Por fim, demonstramos também que nenhuma forma de argumento válida implica uma proposição P e a sua negação.
Consideremos o primeiro caso. A proposição a demonstrar é da forma “se... então...”. Isto significa que o nosso argumento tem início assumindo como premissa a proposição que ocorre como antecedente da condicional. Assim, assumimos a validade de K e mostramos que dada esta premissa se segue como conclusão a consistência de K (facto que corresponde ao consequente da condicional).
Esta forma de demonstração é típica em matemática ainda que, por vezes, a terminologia pela qual é apresentada seja diferente. Este, no entanto, é um aspecto que podemos negligenciar com tranquilidade. O factor decisivo que é conveniente ter em consideração diz respeito às razões pelas quais isto acontece. Se reflectirmos um pouco verificaremos que, uma vez mais, se trata de mostrar que aceite uma certa proposição, somos racionalmente compelidos a aceitar também uma outra proposição em virtude, apenas, de a última ser uma consequência da primeira. Para isso, é necessário exibir a inferência pela qual este facto se deixa demonstrar de modo a que possamos sujeitá-la a um exame racional. Esta é a consequência de desejarmos exercer competentemente a nossa capacidade crítica.
Informalmente, obtém-se o seguinte. Se K é válido, então, se todas as suas premissas forem verdadeiras, segue-se que a conclusão também o é. Mas, neste caso, todas as proposições de K resultam verdadeiras sob a mesma interpretação e, assim, K possui um modelo. Donde, se existe um modelo para K, dada a definição de modelo, K é consistente. Vejamos agora a apresentação formal do argumento.
Caso 1
(1) K é válido. | Premissa. |
(2) Se P1, P 2,..., Pn forem todas verdadeiras, B é verdadeira. | 1, Def. de validade. |
(3) Existe um modelo M para K. | 2, Def. de modelo. |
(4) K é consistente. | 3, Def. de consist. |
(5) Se K é válido, então, K é consistente. | 1 ∪ 4 |
O modo como o argumento 1 é apresentado acima justifica alguns comentários adicionais importantes.
Formalmente, um argumento é uma sequência de passos numerados que tem início com a listagem das premissas. A sua apresentação inclui duas colunas, sendo a da direita uma lista onde intervêem as definições usadas ao longo do argumento. Esta coluna contém ainda uma referência ao número dos passos anteriores utilizados para inferir o passo seguinte pelo uso, neste caso, de uma definição.
Por exemplo, no Caso 1, verificamos que a proposição constante no passo 2 da coluna da esquerda foi inferida do passo 1 pela aplicação da definição de validade. Em seguida, o passo 3 foi obtido do passo 2 pela aplicação da definição de modelo, etc. No último passo, onde ocorre a proposição que se queria demonstrar, é assinalado o facto de a conclusão do argumento ter sido obtida pelo conjunto dos passos precedentes. Como se obteve o passo 5 a partir da premissa com base num encadeamento de passos cuja justificação se situa à direita, estamos autorizados a afirmar, no final, que a conclusão é realmente uma consequência da premissa em conjunção com as definições aplicadas ao longo do processo de derivação. O mesmo acontece com a segunda demonstração.
Caso 2
(1) K é válido. | Premissa. |
(2) L difere de K pelo facto de ocorrer B em K onde corre A em L. | Premissa. |
(3) A = ¬B | Premissa. |
(4) Se B é verdadeira, ¬B é falsa. | 3, Def. de contradição. |
(5) K é consistente. | 1, Caso 1. |
(6)¬B é falsa em qualquer modelo para P1, P 2,..., Pn. | 4, Def. de modelo. |
(7) L é inconsistente. | 2, 6, Def. de consistência. |
(8) Se K é válido, então, L é inconsistente. | 1 ∪ 7. |
Em conjunto, os argumentos 1 e 2 permitem mostrar que o conceito de validade se deixa definir à custa do conceito de inconsistência. A principal conclusão a extrair deste facto é que uma instância particular de qualquer padrão de inferência inválida dá lugar a um conjunto inconsistente de proposições. Este resultado não é surpreendente. Tinhamos visto que um argumento é inválido se e somente se o conjunto formado pelas premissas e conclusão possui um modelo. Verificamos agora que nenhuma forma de inferência válida permite, em simultâneo, justificar uma proposição e a sua contraditória.
Deixo ao leitor, a título de exercício, a elaboração de uma demonstração para o terceiro caso. Uma pista é a seguinte. Qualquer resultado que tenha sido demonstrado previamente pode ser utilizado numa nova demonstração. Um outro exercício consiste em obter uma versão mais económica de E1. Para isso, é necessário mostrar que E1 pode ser simplificado; um dos seus passos é eliminável sem prejuízo do resultado final dado ser redundante. Verifique as definições utilizadas.
Vimos que dada uma proposição P qualquer, ou é o caso que P não possui um modelo ou possui pelo menos um modelo. Resta-nos verificar se existem proposições para as quais qualquer interpretação constitui um modelo. Ora, acontece que há proposições que resultam verdadeiras em todas as interpretações. Vamos designá-las por proposições necessariamente verdadeiras e distingui-las daquelas proposições que, apesar de verdadeiras em alguns modelos, não o são em todos os modelos. Ver-se-á também por que razão nem todas as proposições deste tipo possuem um interesse exclusivamente lógico, pelo menos no sentido em que termo “lógica” foi empregue até ao momento.
De facto, usámos este termo com o propósito de designar a disciplina que se ocupa com o estudo das condições formais do pensamento e do discurso, e não há motivos que nos obriguem a modificar esta prática. Iremos somente considerar aquelas proposições cuja verdade necessária decorre ou da sua estrutura lógica apenas ou da sua estrutura lógica associada à definição dos termos não lógicos que nela ocorrem. Designaremos ainda por tautologias todas as proposições que satisfaçam uma ou outra das condições precedentes. Vejamos agora em pormenor algumas definições e exemplos.
A definição de tautologia é a seguinte. Uma proposição P é uma tautologia se e apenas se é verdadeira em todos os modelos exclusivamente em virtude das suas características sintácticas ou semânticas.
Um exemplo do primeiro tipo (sintáctico) é o seguinte. Seja P a proposição “3 é primo ou 3 não é primo”. Verifica-se facilmente que P é constituída por duas proposições ligadas entre si por uma conectiva (“ou”) — as proposições “3 é primo” e “3 não é primo” — e que estas proposições são contraditórias. No entanto, quer o número 3 possua a característica que lhe é atribuída quer a não possua, P resulta verdadeira. Proposições com esta forma são verdadeiras em qualquer atribuição de valores às suas partes componentes. Na realidade, este exemplo é uma instância do princípio lógico do terceiro excluído. A aplicação deste princípio é aceite como não estando sujeita a qualquer restrição no contexto da lógica clássica. O princípio estabelece que uma proposição é verdadeira ou falsa, excluindo outras possibilidades. Assim, as suas instâncias particulares dão lugar a proposições reconhecidamente verdadeiras em todos os modelos. Estamos, portanto, em condições de afirmar que P é necessariamente verdadeira em consequência das leis da lógica apenas.
As tautologias têm uma propriedade interessante. Para o verificar, pense-se nas condições que é necessário satisfazer para que em geral uma proposição seja verdadeira. As condições são basicamente duas: (i) uma proposição é verdadeira em virtude do seu significado (é pelo facto de possuir o significado que realmente possui que lhe é possível ser acerca de alguma coisa); (ii) é necessário que a porção de realidade a que a proposição se refere possua as características que lhe são atribuídas. A proposição expressa pela frase “Napoleão venceu a batalha de Austerlitz” é verdadeira visto afirmar acerca do indivíduo Napoleão que este se encontra numa certa relação com um acontecimento particular e que essa relação obtém a respeito de Napoleão, e não acerca de Sócrates ou Wellington. O grau de competência semântica que nos permite compreendê-la não é suficiente para determinar o seu valor de verdade; necessitamos, para o efeito, de informação empírica adicional (por exemplo, consultar os livros de história adequados). Ora, este facto não se deve ao acaso. É aconselhável, contudo, um cuidado adicional a este respeito: se o leitor concluiu que qualquer proposição cuja verdade, para ser estabelecida, reclame o concurso da experiência não é, por essa razão, uma tautologia, a sua conclusão é correcta. Mas daqui não se segue que algumas proposições empíricas, pelo facto de não serem tautologias, não sejam necessariamente verdadeiras.
Vejamos. É fácil conceber situações logicamente possíveis que, caso se tivessem verificado, tornariam falsa a proposição acima. Isto significa que a necessidade de incluir informação empírica adicional para determinar o seu valor de verdade é uma consequência de a proposição não ser verdadeira em todos os modelos. Assim, existem mundos logicamente possíveis onde Napoleão não venceu a batalha de Austerlitz. Um mundo logicamente possível é apenas uma situação ou curso alternativo de acontecimentos relativamente ao modo como as coisas se passam no mundo actual e que não é necessário observarmos através de um telescópio; na verdade, é suficiente imaginá-los. Acontece que uma proposição verdadeira em todos os modelos é verdadeira acerca de todos os mundos possíveis.
Similarmente, as proposições contraditórias são falsas em todos os mundos possíveis (um quadrado redondo, por exemplo, é logicamente impossível). Mas, se uma tautologia é verdadeira independentemente do curso de acontecimentos considerado, então, é verdadeira seja o mundo como for. Ora, se não é indispensável recorrer a informação empírica adicional para reconhecer a sua verdade ou falsidade, a explicação consiste em admitir, como ilustra o exemplo precedente, que se trata de uma verdade lógica (a lei do terceiro excluído). Dizemos então que a sua verdade depende em exclusivo da estrutura formal que suporta as partes componentes da proposição. Um exemplo suplementar: (1) “Se Napoleão é francês, então Napoleão é francês”. De facto, qualquer atribuição de valores ao antecedente e consequente da implicação dá origem a uma proposição verdadeira. Vejamos outro caso: (2) “Todos os cadernos castanhos são coloridos”. Uma análise cuidadosa de (2) permite-nos mostrar que as leis da lógica não são suficientes para garantir que (2) é verdadeira. Esta proposição, no entanto, também é uma tautologia. Isto deve-se às relações semânticas que obtêm entre as partes não lógicas da proposição, e é isso que vamos verificar em seguida.
Ao afirmarmos que a proposição (1) é verdadeira em virtude da forma lógica, estamos a defender que qualquer proposição que exemplifique o mesmo padrão, independentemente do seu conteúdo, é também verdadeira. O leitor poderá testar facilmente esta afirmação se substituir a frase “Napoleão é francês” em ambos os lados da implicação por qualquer outra frase da forma sujeito-predicado, por exemplo, “Sócrates é homem”. No entanto, caso queiramos proceder deste modo a respeito de (2), os resultados não são idênticos. Para isso basta verificar que proposição expressa por “Todos os súbditos ingleses são brancos”, a designar por (3), é falsa. Ainda assim, (2) e (3) exemplificam o mesmo padrão lógico. Os meios atrás esboçados para formalizar frases na linguagem do cálculo de predicados permitem-nos observar que o padrão comum a (2) e (3) é o seguinte:
(∀x) {[P( x) ∧ Q(x)] → R( x)}
Uma vez que estas proposições exibem a mesma forma mas diferem em valor de verdade, conclui-se que (2) não é verdadeira em virtude do padrão lógico que ambas as proposições têm em comum.
A necessidade de recorrer a um critério semântico, para explicar que frases deste género exprimam tautologias justificável. Ao analisarmos cuidadosamente a proposição (2) verificamos que a sua verdade é uma consequência do significado das partes não lógicas que a compõem (as expressões “castanho” e “colorido”), em conjunção com uma lei lógica que seguidamente iremos explicitar. Note-se, em primeiro lugar, que o castanho é uma cor e que todo o objecto que possua a cor castanha é — por definição — colorido. Esta é a parte semântica do problema. A regra lógica afirma o seguinte: aquilo que se aplica a todos os objectos de um conjunto de objectos aplica-se a cada um deles em particular. Ora, os cadernos a que a proposição (2) faz referência incluem-se no conjunto de objectos que possuem a propriedade de serem castanhos. Por esta razão, dado o significado das expressões relevantes e o princípio lógico indicado, conclui-se que a proposição é necessariamente verdadeira. Complementarmente, como a verdade de (2) decorre de princípios lógicos associados a definições que tipificam as nossas práticas linguísticas, a proposição é uma tautologia.
Um leitor interessado poderá, no entanto, interrogar-se com cepticismo a respeito do valor informativo inerente a frases do tipo considerado. De facto, se uma tautologia é uma proposição necessariamente verdadeira devido a considerações de carácter meramente formal ou semântico, parece evidente que estas proposições nada afirmam de substantivo acerca do mundo. Permitem apenas exibir a maneira como empregamos as palavras. Este cepticismo justifica-se parcialmente, é claro. Contudo, as tautologias em sentido lógico estrito, cuja verdade é uma consequência da sua forma, apesar de nada afirmarem acerca do mundo, relevam-nos importantes verdades lógicas. Possuem, além disso, o mérito de permitirem construir sistemas formais axiomáticos pelos quais segmentos importantes das ciências, em particular da matemática, se deixam representar adequadamente. Este é um aspecto notável dada a possibilidade que estes sistemas oferecem de codificar formalmente os princípios de que dependem as demonstrações aceites em cada uma das áreas relevantes. Em complemento, permitem examinar com objectividade essas demonstrações e avaliar a sua correcção.
Mas existem ainda razões para considerar incorrecta a tese de que não existem verdades necessárias substantivas. Quando dizemos que as tautologias são proposições necessariamente verdadeiras, isto não significa que — sem excepção — as proposições necessariamente verdadeiras são tautologias. Frases como “Se Sócrates é mortal, então Sócrates é mortal” não iludem alguma trivialidade. Mas o mesmo não sucede com um teorema matemático, digamos, “x2 + y2 = z2”. Tal como o célebre teorema de Pitágoras, existem excelentes razões para defender que as restantes proposições matemáticas, se verdadeiras, são necessariamente verdadeiras. Por outro lado, Saul Kripke, um importante filósofo americano da segunda metade do século XX, argumentou de forma plausível a favor da existência de verdades necessárias a posteriori, isto é, de proposições que dependem da experiência para serem conhecidas como verdadeiras, ainda que sejam verdadeiras em todos os mundos possíveis. “A água é H2O”constitui o exemplo típico de proposição empírica necessariamente verdadeira.
Esta, no entanto, é uma discussão que já não compete à disciplina de lógica.
Os capítulos precedentes contém a informação mínima indispensável ao prosseguimento de estudos na área. Para ir mais além, o leitor dispõe de alguma bibliografia básica, quase toda em língua inglesa. E existe também bibliografia em português cuja leitura se recomenda. Um exemplo do segundo tipo é o livro de Newton-Smith, Lógica, Um Curso Introdutório, publicado na colecção “Filosofia Aberta” da Gradiva. O outro exemplo é o livro de Franco de Oliveira, Lógica e Aritmética, da mesma editora. Num registo mais austero, pode ler-se, de M. S. Lourenço, Teoria Clássica da Dedução, da Assírio e Alvim.
Em inglês, é vivamente recomendada a consulta de Modern Logic, de Graeme Forbes, uma das melhores e mais completas introduções à lógica actualmente disponíveis. A editora é a Oxford University Press. Em complemento, pode-se ainda consultar Logical Forms, de Mark Sainsbury, da Blackwell.
Finalmente, uma interessante discussão sobre os conceitos de possibilidade e necessidade encontra-se em Understanding Necessary Truth (inédito), de Desidério Murcho, a quem desejo também agradecer a paciente revisão do material exposto e as correcções introduzidas em alguns pontos.