Sócrates poderia ter nascido no Egipto ou não ter bebido a cicuta, mas não poderia ter sido um automóvel ou um cartão de crédito. Ou pelo menos as nossas “intuições modais” — as nossas convicções pré-filosóficas sobre aquilo que é ou não possível — apontam neste sentido. A teoria filosófica do essencialismo, uma das grandes contribuições de Aristóteles para a metafísica, acomoda intuições como estas distinguindo as propriedades acidentais das essenciais — aquelas que as coisas exemplificam contingentemente daquelas que as coisas exemplificam necessariamente. A emergência da ciência moderna, no entanto, trouxe consigo uma filosofia hostil à distinção aristotélica. De acordo com a nova perspectiva, bem nítida tanto no empirismo de David Hume como posteriormente no positivismo lógico, todo o nosso conhecimento factual é empírico e todo o conhecimento empírico é contingente. O único conhecimento de verdades necessárias, como o da matemática ou da lógica, resulta de simples convenções linguísticas. Neste quadro não há lugar para as propriedades essenciais de Aristóteles — elas pura e simplesmente parecem impróprias para uma visão científica do mundo.
Embora em muitos aspectos a velha ciência medieval constituída em torno de Aristóteles fosse indefensável, há algumas décadas filósofos como Saul Kripke começaram a contestar o quadro positivista sugerindo que não podemos deitar fora o bebé com a água do banho — que há fortes razões para preservar o essencialismo. Este é o ponto de vista defendido em “Essencialismo Naturalizado”. Desidério Murcho, doutorando no King’s College da Universidade de Londres e director da prestigiada “Crítica” (www.criticanarede.com), declara no prefácio: “A distinção entre propriedades essenciais e acidentais, longe de ser um legado de uma forma errada de pensar, constitui uma distinção sem a qual não é possível compreender a ciência, a linguagem e a estrutura do pensamento”. Ao longo de cerca de cem páginas, Murcho argumenta tenazmente a favor desta perspectiva e acaba por proporcionar uma introdução rigorosa a uma das áreas da metafísica que mais têm florescido e beneficiado do desenvolvimento da lógica.
O primeiro dos três capítulos do livro introduz os recursos conceptuais necessários para a discussão dos argumentos subsequentes. Entre os conceitos examinados contam-se os de verdade analítica e de conhecimento “a priori”, mas a maior parte do capítulo incide nos diversos conceitos modais de possibilidade e necessidade. Apesar da sua importância no pensamento filosófico em geral, muitas destas noções são maltratadas com excessiva frequência nos dicionários e manuais escolares de filosofia, o que torna esta parte do livro especialmente valiosa no contexto português.
No segundo capítulo, “A inteligibilidade do essencialismo”, encontramos os argumentos mais importantes que filósofos como Quine usaram para desacreditar o “idioma modal” em que o essencialismo se exprime. Murcho procura mostrar como todos esses argumentos podem ser refutados. A lógica modal é utilizada para revelar ambiguidades fatais nos argumentos de Quine. Felizmente, apesar das inevitáveis fórmulas, o texto permanece acessível à compreensão do leitor atento sem conhecimentos prévios de lógica. O livro contém algumas noções técnicas de lógica modal, mas estas surgem em apêndice.
Afastadas as suspeitas de incoerência que têm sido lançadas sobre o essencialismo, Murcho dedica o terceiro capítulo do livro à defesa directa de uma versão específica da doutrina: o essencialismo naturalizado. A característica mais saliente deste tipo de essencialismo é o facto de, por oposição ao essencialismo apriorístico típico da ciência medieval, se basear em verdades necessárias “a posteriori” — verdades que só podem ser conhecidas por meios empíricos. Contra as teorias rivais, Murcho procura evidenciar de diversas maneiras o poder explicativo superior do essencialismo. “O antiessencialista”, sustenta a este respeito, “é incapaz de explicar cabalmente o que faz a ciência”.
“Essencialismo Naturalizado” sobressai pela discussão invulgarmente concisa e transparente de argumentos filosóficos poderosos. Consegue ser cativante apesar do elevado grau de abstracção dos problemas abordados, e dá a conhecer alguns dos momentos altos da metafísica tal como esta se faz na tradição da filosofia analítica — um estudo em que o diálogo com os clássicos incontornáveis é conduzido à luz dos progressos técnicos alimentados pela lógica.