O domínio da filosofia conhecido sob a designação de “metafísica” — como veremos mais adiante, à luz da concepção que propomos para a disciplina, esta designação e a designação de “ontologia” são aproximadamente co-extensionais — assume actualmente contornos algo imprecisos e difusos. É provável que tal se deva, pelo menos em parte, ao conspícuo rejuvenescimento e desenvolvimento acelerado a que a disciplina tem sido sujeita nos últimos vinte anos. Com efeito, o território caracteriza-se hoje por uma grande riqueza e diversidade de tópicos e problemas discutidos, a qual pode ser vista como um sintoma de vitalidade da disciplina. Muitos desses tópicos situam-se na fronteira da metafísica com outras disciplinas filosóficas, especialmente disciplinas como a filosofia da linguagem, a filosofia da mente, e a filosofia da ciência. Como nem sempre é possível marcar essa fronteira de modo rigoroso, torna-se mesmo difícil, em relação a certos tópicos, proceder a uma sua inserção clara nesta ou naquela disciplina filosófica; esse é, por exemplo, o caso do chamado problema da mente-corpo, que tanto pode ser visto como pertencendo à metafísica como pode ser visto como pertencendo à filosofia da mente.
Eis, a título de ilustração, uma lista(1) de tópicos correntemente discutidos na disciplina:
Podemos isolar quatro grandes temas no interior da metafísica, no sentido de quatro agregados de tópicos e problemas que se têm distinguido pela sua posição saliente quer ao longo da história da disciplina quer na investigação actualmente executada. Esses tópicos são os seguintes:
Em relação a cada um dos agregados de tópicos acima identificados, o objectivo central do curso de Ontologia é introduzir o estado actual da sua discussão. Assim, são expostas e examinadas as principais teorias e doutrinas disponíveis acerca desses tópicos, e são discutidos os principais argumentos a favor e contra cada uma dessas teorias e doutrinas. Como resultado da nossa discussão, é defendida no curso uma posição genérica de inspiração fortemente realista, segundo a qual universais e abstracta são objectos indispensáveis à luz da nossa melhor teoria metafísica.
Três géneros de razões motivaram a escolha dos quatro tópicos atrás listados.
Em primeiro lugar, a posição central que ocupam na discussão filosófica actual. Trata-se inegavelmente de problemas “quentes”, no sentido de questões potencialmente geradoras de uma multiplicidade de teorias e de pontos de vista em conflito, acerca de nenhum dos quais se está aparentemente em posição de dizer conclusivamente que é completamente satisfatório ou correcto (ou, por razões análogas, que é completamente insatisfatório ou incorrecto).
Em segundo lugar, temos o seu impacto intradisciplinar: as múltiplas relações que podem ser estabelecidas, de uma forma natural, entre os tópicos seleccionados e uma grande variedade de outros tópicos importantes de outros ramos da filosofia, como por exemplo a filosofia da linguagem, a filosofia da mente, e a filosofia da ciência; entre estes estão, por exemplo, tópicos como a descrição, a predicação, a quantificação, a natureza das leis científicas, a verdade, e o problema da mente-corpo.
Em terceiro lugar, podemos invocar as credenciais históricas dos tópicos seleccionados e a sua conspícua recorrência na tradição filosófica ocidental. Com efeito, de Platão a John Locke (digamos), poucos são os grandes filósofos que não se ocuparam de alguma maneira, com maior ou menor intensidade, de alguns ou mesmo de todas as quatro grandes áreas de problemas metafísicos propostas.
Convém fazer agora algumas observações acerca da maneira como concebemos a província da metafísica, e, em seguida, tecer também algumas considerações sobre o método que propomos para a disciplina, o qual justifica a sua denominação como logicamente disciplinada.
Se tivermos em mente a configuração que os diversos ramos da filosofia têm assumido na discussão recente e na literatura actualmente disponível, pode-se dizer com alguma segurança que os contornos teóricos da disciplina de metafísica coincidem aproximadamente com os contornos daquilo a que Aristóteles chamava “filosofia primeira” (ou “ontologia”). Com efeito, a província da metafísica foi dividida por Aristóteles em três departamentos: a) o estudo dos primeiros princípios e das primeiras causas; b) o estudo do divino, ou teologia; e c) o estudo do ser enquanto ser, ou ontologia. Ora, à luz de uma maneira corrente de mapear o território da filosofia e as suas disciplinas e problemas, pode-se dizer, por um lado, que a investigação mencionada em b pertence actualmente à disciplina de filosofia da religião, e, por outro lado, com respeito à investigação mencionada em a, que uma parte dela cai no âmbito da lógica e a outra parte no âmbito da filosofia da ciência. Assim, a investigação metafísica parece poder ser plausivelmente reduzida à investigação ontológica, no sentido do estudo do ser enquanto tal (regressaremos a esta expressão um tanto ou quanto enigmática mais adiante); ou, se quisermos ser mais cuidadosos e dar lugar a tópicos residuais como por exemplo o tópico do tempo e o problema do determinismo e do livre-arbítrio, podemos dizer no mínimo que uma fatia substancial da metafísica é ocupada pela ontologia.
A segmentação aristotélica da metafísica foi conservada e ampliada pelos racionalistas. Assim, Wolf faz uma distinção familiar entre dois grandes departamentos no interior da disciplina: a) a metafísica geral, ou ontologia; e b) a metafísica especial. Esta última é por sua vez dividida em três secções: b1) o estudo de Deus, ou teologia racional; b2) o estudo da identidade pessoal e da alma humana, ou psicologia racional; e b3) o estudo dos corpos materiais e da mudança, ou cosmologia racional. De novo, dado o mapeamento correntemente feito dos ramos da filosofia e das suas fronteiras, a disciplina de metafísica, ou pelo menos uma parte generosa dela, parece poder ser plausivelmente reduzida à disciplina de ontologia tal como esta é tradicionalmente concebida (ou seja, como metafísica geral). De facto, a teologia racional (b1) é hoje um segmento da filosofia da religião, a psicologia racional (b2) é um departamento importante da disciplina de filosofia da mente, e muitos dos tópicos investigados na tradicional cosmologia racional são hoje cobertos pela filosofia da ciência.
Resta dizermos alguma coisa, ainda que com brevidade, sobre a natureza do método que queremos adoptar para a investigação em metafísica ou ontologia (a partir de agora, tomaremos estes termos como equivalentes). Há dois aspectos centrais a ter em conta no que respeita ao método que perfilhamos. O primeiro aspecto é um elemento conservador, o qual consiste em conservar em essência a concepção aristotélica da metafísica, a ideia de uma disciplina que se dedica à investigação do ser enquanto ser. Usando a distinção familiar de Kant entre o projecto metodológico de uma metafísica transcendente e o projecto metodológico de uma metafísica crítica, aquilo que nos propomos seguir é, em traços gerais, o projecto aristotélico tradicional de uma metafísica transcendente. O segundo aspecto é um elemento inovador (por assim dizer), o qual consiste em fazer um uso sistemático e intenso do aparato conceptual e técnico da teoria lógica moderna na investigação dos problemas e tópicos perenes da metafísica. A conjunção dos dois elementos dá-nos a essência do método que queremos utilizar, o de uma metafísica transcendente mas logicamente disciplinada. Detenhamo-nos um pouco mais sobre esses dois elementos.
Embora de maneiras certamente diferentes, Kant, de um lado, e o empirismo britânico, do outro, lançaram algum descrédito científico sobre a concepção tradicional de uma metafísica transcendente, uma metafísica ocupada com a essência e a estrutura das coisas tomadas em si mesmas. Esta crítica teve um impacto profundo em toda a filosofia subsequente e contribuiu decisivamente para deslocar a metafísica para uma posição subalterna na investigação filosófica, posição que ela só deixou de ocupar muito recentemente. Com efeito, as críticas de Kant e dos empiristas britânicos às pretensões ilegítimas da metafísica transcendente encontraram prolongamentos naturais em segmentos importantes da filosofia executada na tradição analítica. Primeiro, e mais conspicuamente, deparamos com o positivismo lógico e com a sua pretensão de que qualquer afirmação metafísica — incluindo afirmações aparentemente em ordem como “Há corpos materiais” — é destituída de sentido, uma pretensão cujo potencial de auto-refutação é bastante elevado. Depois, embora menos conspicuamente, deparamos com prolongamentos como a chamada “metafísica descritiva” de Peter Strawson e ainda toda a investigação ontológica de alguma forma inspirada no chamado Linguistic Turn, cujos praticantes são figuras como Willard Quine, Michael Dummett, Donald Davidson, e outros. Só muito recentemente se assistiu ao ressurgimento, no interior da tradição analítica, de algo bastante próximo do projecto tradicional de uma metafísica transcendente, de uma investigação directa da essência e estrutura das coisas. Entre as figuras mais salientes deste movimento metodológico contam-se Saul Kripke, David Lewis, o (recentemente falecido) metafísico de Princeton, os metafísicos australianos, em especial David Armstrong e Frank Jackson, e pessoas como Peter van Inwagen, Kit Fine, e outros. Não é alheio a este ressurgimento da metafísica transcendente aquilo que designamos como “disciplina lógica”, em especial o emprego em metafísica dos sofisticados recursos técnicos disponíveis com base no desenvolvimento, nos anos 70 e 80, da lógica modal quantificada e da associada semântica de mundos possíveis.
A pretensão subjacente à crítica da metafísica transcendente é a de que a ideia de uma coisa ou de um objecto tomados em si mesmos, independentemente da nossa apreensão deles ou da sua qualidade de objectos de uma experiência ou representação possível, é ou uma ideia totalmente incoerente (nas versões críticas mais radicais) ou uma ideia inadequada para servir de base a uma investigação filosófica séria da estrutura da realidade. Essa ideia deve ser assim abandonada e substituída pela tese metodológica central da metafísica crítica. Formulada em linguagem mais moderna, trata-se da tese de que o estudo da realidade e da sua estrutura tem de ser necessariamente mediado pela investigação de um esquema conceptual, no sentido de uma rede de conceitos e categorias que utilizamos para arrumar e classificar a realidade e que se encontram incorporados num sistema linguístico dado. Numa formulação célebre proporcionada por Donald Davidson (ver Davidson 1979), a tese é a de que investigar a estrutura e as propriedades mais gerais da realidade só é possível através de uma investigação da estrutura e das propriedades mais gerais da linguagem que utilizamos para descrever a realidade. A ideia de um esquema conceptual mediador é assim central à metafísica crítica. Devemos investigar, não as coisas em si mesmas, mas as coisas enquanto representadas por meio de uma determinada rede de conceitos e categorias, aquela que empregamos para descrever a realidade. Não temos qualquer acesso directo às coisas em si mesmas. Aquilo ao qual temos primariamente acesso é ao esquema conceptual que utilizamos para representar as coisas, e é sobre ele que nos devemos concentrar. Só a investigação das características mais gerais do nosso esquema conceptual constitui uma via cientificamente credível para chegarmos a uma identificação das características mais gerais da realidade.
Pensamos que este género de investigação é interessante, frutífero, e merece certamente ser desenvolvido. Todavia, vemo-lo mais como algo que pertence à província da epistemologia, ou da filosofia da linguagem, do que à província da metafísica. Em todo o caso, pensamos que as considerações aduzidas a seu favor estão longe de constituir razões conclusivas para interditar a prossecução, sob certas condições, do projecto tradicional de uma metafísica transcendente. Para além disso, suspeitamos que a ideia metodológica que preside ao projecto crítico, a ideia de um esquema conceptual mediador, é problemática. Com efeito, se aquilo que devemos primariamente investigar é o esquema conceptual que usamos para representar a realidade, então, pelas próprias premissas do projecto crítico, só temos acesso a ele de um modo necessariamente mediado, através de um esquema conceptual adicional. Mas então a ideia de um esquema conceptual mediador corre o risco de se tornar numa ideia incoerente, uma vez que parece envolver uma regressão viciosa ad infinitum.
De qualquer maneira, independentemente da eficácia de objecções deste género, pensamos que o antídoto para o carácter potencialmente indisciplinado que a metafísica transcendente alegadamente tem não é a mediação por um esquema conceptual, mas antes o recurso à disciplina lógica. Com efeito, note-se que as noções básicas da metafísica transcendente — por exemplo, noções como “objecto”, “atributo”, “existência”, “identidade”, “necessidade”, etc. — são noções dotadas de um elevado grau de generalidade. Ora, esta característica torna-as em noções que são, por excelência, tratáveis e caracterizáveis do ponto de vista dos conceitos, teorias, métodos, e técnicas da lógica. Em especial, o recurso aos conceitos, teorias, métodos, e técnicas da lógica modal quantificada, e da teoria semântica associada (a semântica de mundos possíveis), tem-se revelado extremamente frutífero na investigação de conceitos, tópicos, e problemas perenes da metafísica transcendente. É bom observar desde já que o recurso ao aparato da lógica não deve ser em geral visto como susceptível de gerar soluções para os problemas da metafísica; a sua função é bem mais modesta, mas não menos importante: permitir em muitos casos a clarificação de teses, doutrinas, e argumentos metafísicos de um elevado grau de complexidade, bem como obter uma ideia clara da dialéctica de disputas metafísicas centrais.
Ao longo do curso são dados muitos exemplos de metafísica logicamente disciplinada. Todavia, gostaria de dar um exemplo imediato do método na clarificação da própria expressão tradicionalmente empregue para caracterizar a tarefa da metafísica transcendente: o estudo do ser enquanto ser. O que se deve entender por “ser enquanto ser”? Em primeiro lugar, o que se deve entender por “ser”? Uma maneira de responder a esta pergunta é dizer que o ser consiste em tudo aquilo que há ou existe, ou seja, em todos os objectos; a metafísica ou ontologia é assim caracterizável nessa base como uma teoria geral dos objectos.
Mas o que é um objecto? Progredimos um pouco em relação a esta questão se usarmos algumas ideias simples provenientes da teoria lógica.
Adquirindo aí comummente o estatuto de noção ontológica de todas a mais inclusiva, a noção de objecto é utilizada na bibliografia lógico-filosófica — de uma maneira caracteristicamente genérica e algo imprecisa — para referir o que quer que seja ao qual propriedades possam ser atribuídas (sendo para o efeito habitualmente invocada uma noção irrestrita ou liberal de propriedade); ou seja, recorrendo a uma formulação tradicional, a noção é empregue para referir qualquer (potencial) sujeito de predicações. Noções aparentadas, como as noções de entidade e coisa, são frequentemente usadas para o mesmo propósito.
Neste sentido, a noção cobre não apenas objectos particulares como pessoas ou artefactos individuais, mas também objectos universais como a brancura ou a sabedoria (na medida em que estes últimos podem também ser sujeitos de predicações, predicações de ordem superior); por outro lado, a noção cobre não apenas objectos concretos como sons particulares ou inscrições específicas de frases num pedaço de papel, como também objectos abstractos como frases-tipo ou números.
Poderíamos talvez esboçar uma caracterização implícita da noção de objecto dizendo que se trata daquela noção que satisfaz princípios do seguinte género, em que F toma valores sobre propriedades (como é típico de definições implícitas, o termo a caracterizar ocorre nas proposições utilizadas na definição):
P1) ∀x (x é um objecto)
P2) ∀x (x é um objecto ↔ ∃F Fx)
P1 afirma que qualquer valor de uma variável quantificada, qualquer elemento de um domínio de quantificação, é um objecto. Assim, o princípio atribui ao predicado “é um objecto” o estatuto de predicado tautológico, um predicado verdadeiro de tudo (ou melhor, um predicado necessariamente verdadeiro de tudo); e a noção de objecto adquire desse modo o estatuto de noção puramente lógica (como a noção de auto-identidade). Poderíamos conceber a noção tradicional (predicativa) de ser, dada na forma x é, como uma simples contracção da noção de ser um objecto, dada na forma x é um objecto, tomada como governada pelo princípio P1 (ser é ser um elemento de um domínio de quantificação). P2 afirma que os objectos, e só os objectos, têm propriedades. Se utilizarmos uma noção irrestrita de propriedade e contarmos a propriedade de ser um objecto como estando ela própria entre os valores de F, então é trivial que só aquilo que tem propriedades é um objecto; isto tomado em conjunção com a tese razoável de que só os objectos têm propriedades dá-nos então a bicondicional em P2. Poderíamos supor sem dificuldade que as propriedades, isto é, os valores da variável F, formam um subconjunto próprio de objectos, isto é, os valores da variável x. Assim, qualquer propriedade, incluindo a propriedade de ser um objecto, seria um objecto; mas, obviamente, nem todo o objecto seria uma propriedade.
Para terminar a nossa tarefa de esclarecer a expressão algo enigmática “estudo do ser enquanto ser”, e após a termos tornado equivalente à expressão “estudo dos objectos enquanto objectos”, resta-nos dizer alguma coisa acerca da maneira como a ressalva presente na expressão (“enquanto ser”) deve ser entendida. É possível discernir aqui dois elementos importantes. O primeiro é que a ressalva indica universalidade, por oposição a uma concepção departamentalizada do objecto da metafísica, o qual não está assim restrito a nenhum domínio particular de objectos ou coisas. Assim, a metafísica estuda as características mais gerais dos objectos, as características que qualquer objecto possui, ou seja, as características que cada objecto possui na qualidade de objecto. Exemplos de características inclusivas deste género são a existência, a modalidade, a identidade, e as categorias — as quais constituem precisamente as características estudadas no programa que propomos para a disciplina. O segundo elemento é que a ressalva deve ser entendida no sentido de uma rejeição liminar de qualquer mediação no acesso a objectos, de qualquer esquema conceptual que se interponha na nossa investigação da estrutura e das características mais gerais dos objectos. Assim, estamos interessados não nos objectos enquanto identificados através de um dado esquema conceptual — nos objectos enquanto apreendidos, representados, conhecidos, pensados, etc. — mas apenas nos objectos enquanto tal, nos objectos enquanto objectos(2).
João Branquinho