Neste artigo apresento duas objecções ao artigo “O Problema do Mal”, de Jaime Quintas, publicado na “Crítica”. A primeira, mais forte, procura mostrar que o argumento de Quintas é incoerente. A segunda, mais fraca, procura mostrar que o argumento de Quintas se baseia numa concepção deficiente de “impossibilidade” — concepção que, uma vez corrigida, derrota o argumento original.
O argumento de Quintas é o seguinte: não podemos declarar que é possível haver menos mal no mundo, pois seja qual for a quantidade de mal existente num mundo, os seus habitantes pensarão sempre que é excessivo. Quintas apresenta um conjunto de argumentos para sustentar a premissa deste argumento. Não vou contestar esses argumentos, apesar de pensar que também podem ser contestados. O contra-argumento que apresento derrota a meu ver totalmente o argumento original.
O contra-argumento é o seguinte: se fosse verdade que fosse qual fosse a quantidade de mal que existisse num mundo, os seus habitantes pensariam sempre que essa quantidade era excessiva, então não poderíamos saber se o argumento apresentado é sólido; logo, o argumento apresentado não pode ser sólido. A ideia é a seguinte: o tipo de argumento que Quintas usa pressupõe, para funcionar, o tipo de “clausura epistémica” que torna impossível que qualquer argumento possa ser bom. Porque se estamos numa situação de clausura em relação ao sofrimento máximo possível, nenhum argumento poderá estabelecer que estamos nessa situação de clausura. Se eu não posso olhar-me a partir de fora para saber se o meu sofrimento poderia ser maior, também não posso olhar-me a partir de fora para saber que o meu conhecimento acerca do meu sofrimento está enclausurado.
O âmago do argumento original é procurar mostrar que os seres humanos se encontram como que numa “clausura epistémica”. Poderão dizer “Há demasiado mal no mundo do nosso ponto de vista”, mas nunca poderão dizer “Há objectivamente demasiado mal no mundo”. Este argumento é peculiar, porque nos convida a aceitar as seguintes duas afirmações:
Estas duas afirmações são dificilmente conciliáveis. Antes de vermos isso, vejamos por que motivo Quintas tem de aceitar 2. A razão é a seguinte: se aceitar que estamos apenas a dar voz à nossa subjectividade quando pensamos que 1 é verdadeira, então 1 não é realmente verdadeira. Apenas parece verdadeira do nosso ponto de vista. Talvez de outro ponto de vista qualquer 1 pareça falsa. Mas se nos ficarmos por aqui, pouco mais adiantámos do que dizer, pura e simplesmente, que há pessoas que acham que a existência do mal é incompatível com o deus teísta, ao passo que outras pessoas pensam que não. Neste caso, uma montanha de argumentação subtil teria parido um rato sob a forma de conclusão.
Mas se Quintas aceitar 2, tem de nos mostrar por que razão peculiar conseguimos alcançar o domínio da objectividade para saber que quer o argumento que conduz a 1 é sólido, objectivamente sólido, quer a afirmação 1 é verdadeira, objectivamente verdadeira — ao mesmo tempo que não conseguimos alcançar o domínio da objectividade quando tentamos saber se há demasiado mal no mundo.
Repare-se que ao dizer que a quantidade de mal é subjectiva não se está a dizer que não podemos determinar qual a quantidade de mal existente. Podemos, claro. O que não podemos é comparar essa quantidade com qualquer escala absoluta. E como tal não podemos nunca saber se o sofrimento que existe é incompatível com Deus — pois pode muito bem acontecer que, comparando com a escala absoluta, o nosso sofrimento seja ínfimo. O ponto do argumento é mostrar que o nosso sofrimento é incomparável com qualquer escala absoluta; só pode comparar-se com o nosso próprio sofrimento. Posso saber que partir uma perna é pior do que esfolar um joelho; mas na ordem geral das coisas não posso saber quão próximo do sofrimento absoluto estamos. Do nosso ponto de vista, qualquer que fosse o sofrimento máximo de que tivéssemos experiência, isso pareceria ser sempre o máximo de sofrimento possível.
Mas isto quer dizer que o argumento propõe que não podemos saber se objectivamente há demasiado mal no mundo, ao mesmo tempo que propõe que podemos saber objectivamente que isso é verdade. Penso que isto revela a incoerência original do argumento.
Todavia, a ideia original é pelo menos superficialmente plausível. Afinal, o sofrimento é relativo. Para algumas pessoas arrancar um molar é uma pequena tragédia, para outras é mais um acontecimento anónimo da sua história clínica. É razoável, pois, pensar que o sofrimento é relativo às pessoas.
Por analogia, podemos pensar assim: um mundo onde acontecem fomes e holocaustos e terramotos e cancros, essas coisas parecem-nos um sofrimento terrível. Mas um mundo onde nada disso houvesse, partir uma perna pareceria horrível para as pessoas desse mundo; tão horrível como nos parece a nós o holocausto.
Mas há aqui uma confusão. Mesmo que admitamos que o sofrimento é relativo às pessoas, não se segue que sejamos incapazes de determinar os limites máximos de sofrimento biologicamente possíveis. Afinal, também a perspectiva de onde vemos o cosmos é relativa ao local onde nos encontramos — a Terra — mas daí não se segue que não sejamos capazes de determinar os movimentos objectivos dos planetas, de qualquer ponto de vista. Portanto, mesmo que admitamos que o sofrimento é relativo, não se segue que estamos condenados a pensar que qualquer quantidade de sofrimento é sempre excessiva. Isso só seria verdade se fossemos incapazes de comparar a quantidade de sofrimento que efectivamente existe, com a quantidade máxima e mínima de sofrimento que seria possível. Mas não podemos ser incapazes de fazer tal comparação porque nesse caso o argumento original seria incoerente, como vimos. Logo, não estamos condenados a pensar que a quantidade de sofrimento é sempre excessiva.
Por outras palavras: quer na situação real, com holocaustos e terramotos, quer noutra situação sem nada dessas coisas, somos capazes de determinar que tipo de coisas são biologicamente possíveis suportar, sem morrer, em extremo sofrimento. E mesmo os biólogos do mundo onde a tragédia maior era partir uma perna poderiam ver que eram afortunados; poderiam ver que grande parte do sofrimento possível não acontecia no mundo deles.
Isto conclui a apresentação do primeiro contra-argumento.
O segundo contra-argumento refere-se ao modo como Quintas usa a noção de possibilidade. O argumento original procura estabelecer que não é possível que exista um mundo cujo mal os seus habitantes não considerem exagerado face à existência hipotética de Deus. Mas que noção de possibilidade é invocada?
O argumento fala em “impossibilidade lógica”. E a ideia seria a seguinte: seja qual for o máximo de sofrimento que existe num mundo, isso é o grau máximo de sofrimento possível. Por exemplo, se o sofrimento máximo que existe num mundo é, numa escala qualquer, 100, então é logicamente impossível que houvesse mais sofrimento. Mas se por acaso nesse mundo só houvesse no máximo sofrimento de escala 10, então seria logicamente impossível haver mais. E portanto, seja qual for o grau de sofrimento máximo de um mundo, esse grau é sempre máximo. O sofrimento existente parecerá sempre, por isso, incompatível com a existência de Deus, porque parece sempre possível que tivesse havido menos sofrimento.
A falácia do argumento está no raciocínio modal. Compare-se com o seguinte argumento modal: é logicamente impossível que haja mais de 100 pessoas no mundo. Porque seja qual for o número de pessoas que há nesse mundo, se só há 100, e se 100 é o máximo de pessoas que há, não pode haver mais porque por definição esse é o número máximo de pessoas que há. Se pelo contrário só houver 10 pessoas nesse mundo, isso será o máximo de pessoas possível, porque por definição esse é o máximo de pessoas que há nesse mundo.
Este argumento é falacioso, tal como o argumento original. E também não é verdadeiro que as pessoas do mundo só com 10 pessoas são incapazes de conceber que podería haver muito mais pessoas nesse mundo. Tal como as pessoas do mundo afortunado em que o grau máximo de sofrimento é 10 podem perfeitamente perceber que são afortunados, porque poderiam ter de suportar o grau 100.
Temos de entender o argumento original, em termos de impossibilidade lógica, como uma liberdade de linguagem, ou como “impossibilidade lógica” no sentido lato. No sentido estrito, uma afirmação é logicamente impossível unicamente se podemos estabelecer a sua negação por meios exclusivamente lógicos. Assim, uma afirmação como “O João, se existe, é grego e não é grego” é logicamente impossível no sentido estrito.
A impossibilidade conceptual ou lógica em sentido lato pode ser entendida da seguinte maneira: uma afirmação é impossível neste sentido se, e só se, não puder ser verdadeira à luz de considerações filosóficas ou conceptuais. Esta definição informal está longe de ser boa, mas para os nossos propósitos é suficiente: o único objectivo é ficarmos com uma ideia aproximada do que é este tipo de impossibilidade.
Ora, o argumento original não pode também basear-se numa impossibilidade conceptual, ou lógica em sentido lato. As relações entre as diferentes noções de possibilidade e impossibilidade não são pacíficas; mas é pelo menos evidente que uma afirmação não pode ser ao mesmo tempo conceptualmente impossível (ou logicamente impossível em sentido lato) e naturalmente possível. Isto seria disparatado. Não podemos demonstrar que é conceptualmente impossível ir à Lua, uma vez que é fisicamente possível ir à Lua. E o mesmo acontece com a impossibilidade lógica; não pode ser logicamente impossível ir à Lua, pois isso é fisicamente possível.
Quando nos deparamos com uma hipotética demonstração filosófica desse género, podemos ter a certeza de que resulta de um erro qualquer. Como veremos, isso é o que acontece no argumento em exame, quer consideremos que se está a falar de possibilidade lógica ou conceptual. O ponto crucial é que biologicamente é possível fazer o que o argumento procura mostrar que é logicamente ou conceptualmente impossível fazer. Logo, o argumento está errado.
O argumento procura mostrar que é impossível que exista um mundo que os seus habitantes não considerem ter sofrimento em excesso. Mas esta impossibilidade pretende ser derivada da impossibilidade de determinar a quantidade máxima de sofrimento para uma dada espécie natural. Independentemente de saber se esta derivação pode ser levada a cabo — e tenho dúvidas de que possa — o ponto crucial é este: a premissa de que parte é falsa. Não é verdadeiro que seja impossível determinar a quantidade máxima de sofrimento de uma dada espécie natural, incluindo a nossa. A quantidade máxima de sofrimento é determinada pela nossa melhor ciência — e até por experiência. Sabemos que podemos passar uns dias sem comer nem beber água, por muito sofrimento que isso nos provoque. Mas também sabemos que é biologicamente impossível que um ser humano esteja 6 meses sem beber nem comer. Temos, pois, um conhecimento de limites objectivos de sofrimento; sabemos que certas quantidades de sofrimento são biologicamente impossíveis.
A plausibilidade da ideia original do argumento resulta da seguinte consideração: num mundo onde as pessoas nunca atingissem graus de sofrimento elevado, o que aconteceria? Ou elas morriam quando partiam uma perna, ou quando a coisa se tornava realmente complicada, havia um milagre que resolvia a questão. A segunda parece-me, precisamente, plausível. Se Deus existe e ele é benevolente e se as leis da natureza e do comportamento humano implicam todo este sofrimento, porque não uns milagres de vez em quando, quando as coisas estão realmente complicadas? Quando Hitler se prepara para conduzir a Europa a uma guerra horrível, um ataque de coração teria sido providencial. Mas isso não aconteceu.
Todavia, como podemos ter a certeza que outras coisas ainda piores não teriam acontecido sem a intervenção invisível de Deus? Não podemos, de facto. Mas dados os limites biológicos do sofrimento humano, é evidente que grande parte do sofrimento humano poderia ser evitado por um Deus benevolente. E podemos ver que o grau de sofrimento que temos não é o grau máximo, claro. Hitler poderia ter ganho a guerra; hoje a liberdade provavelmente não existiria na Europa e os judeus teriam sido praticamente exterminados. Mas, precisamente, podemos ver que isso seria pior. E podemos ver que outras situações poderiam ser melhores e bastante mais compatíveis com um Deus benevolente e omnipotente do que a situação actual, em que tudo parece ser o resultado das leis cegas da natureza e do comportamento humano e não o resultado de qualquer arbítrio divino. A menos que seja um Deus com um sentido de humor verdadeiramente infernal.
Assim como há factos quanto à quantidade máxima de sofrimento biologicamente possível, também há factos quanto à quantidade mínima de sofrimento biologicamente possível. Por exemplo, sabemos que para haver predadores, terão de haver herbívoros ou outros animais que terão de ser as suas presas — e que terão de sofrer para que os predadores se alimentem. Mas então terá de haver erro em qualquer argumento que mostre que em qualquer situação, por mínimo que seja o sofrimento que exista, iremos pensar que é conceptualmente possível que existisse ainda menos sofrimento; terá de haver erro, porque este argumento afirma que há coisas que serão conceptualmente impossíveis mas biologicamente possíveis. Esse argumento afirma que é conceptualmente impossível determinar o sofrimento mínimo necessário à existência do mundo, mas nós sabemos que tal coisa é biologicamente possível — ainda que em traços largos.
O ar de plausibilidade do argumento de Quintas resulta, penso, do seguinte: se pensarmos bem, é difícil imaginar realmente um mundo sem qualquer tipo de sofrimento. Na melhor das hipóteses, temos de morrer porque somos animais. E podemos apresentar um conjunto de argumentos deste género para mostrar que para termos algo que consideramos um bem, temos de arcar com coisas que consideramos um mal. E isso pode dar a ideia de que por detrás desta harmonia fantástica entre o bem que obtemos e o preço que temos de pagar está um Deus benevolente. Mas, pelo contrário, se pensarmos bem verificamos que a hipótese de um Deus benevolente é muito menos plausível do que a hipótese de que não há qualquer Deus e que o bem e o mal que temos resulta unicamente da operação normal das leis da natureza e do comportamento humano. Teríamos indícios da existência de Deus se descobríssemos as inúmeras possibilidades biológicas das tantas doenças possíveis e depois verificássemos com espanto que nunca ninguém tinha tido uma doença mais grave do que uma constipação. Ou se observássemos que os terramotos e as cheias são o resultado inevitável das leis da natureza, mas que por coincidência nunca ninguém tinha morrido num terramoto nem numa cheia. Isso seria motivo para pensar que há Deus. O contrário é motivo para pensar que não há Deus. E esse é o cerne do argumento contra a existência baseado no mal: não que o mal que existe é o máximo possível, pois sabemos que poderia haver mais, mas porque o mal que existe é excessivo sob a hipótese de haver um Deus benevolente que olha por nós. É caso para dizer que se Deus olha, não vê nada, ou se vê, nada quer fazer, ou se quer fazer, nada pode fazer. Mas qualquer destas hipóteses é contrária à concepção teísta de Deus.
Vou resumir as duas objecções, na esperança de ajudar assim o leitor a ver melhor os seus pontos fracos.
Em primeiro lugar, o argumento em exame é incoerente. Conclui que estamos numa situação de clausura epistémica que, a ser um facto, faz implodir o próprio argumento apresentado. Em segundo lugar, o argumento baseia-se na ideia de que é conceptual ou logicamente impossível determinar a quantidade mínima de sofrimento. Mas isto não pode ser verdadeiro, uma vez que é biologicamente possível determinar a quantidade mínima de sofrimento.
A primeira objecção é mais forte, porque mostra que o argumento original é incoerente. E a sua força fortalece a segunda objecção, pois uma das maneiras de lhe resistir é invocar, precisamente, a clausura epistémica, o que nos conduz à primeira objecção. Assim, em conjunto, as objecções apresentadas parecem constituir pelo menos argumentos poderosos a ter em consideração.
Desidério Murcho