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Crítica
11 de Março de 2020   História da filosofia

Martin Heidegger

Richard Campbell, Bruin Christensen e Thomas Mautner
Tradução de Vítor Guerreiro et al.

Filósofo alemão (1889–1976), professor nas universidades de Marburgo (1923–1928) e Freiburg (1928–1951), Heidegger é famoso pelas suas teorias do ser e da natureza humana e pelas suas interpretações singulares da metafísica tradicional. A sua obra influenciou áreas tão diversas como a teologia (Rudolf Bultmann, Karl Rahner), o existencialismo (Jean-Paul Sartre), a hermenêutica contemporânea (Hans-Georg Gadamer) e teoria da literatura e desconstrução (Jacques Derrida). Foi brevemente reitor da Universidade de Freiburg (1933–1934) e o seu apoio explícito a Hitler e ao nazismo durante esse período continua a ensombrar a sua considerável reputação como um dos mais originais filósofos do século XX.

Algumas obras principais: Sein und Zeit 1927 (Ser e Tempo 2006); Kant und das Problem der Metaphysik 1929; Einführung in die Metaphysik 1953 (Introdução à Metafísica 1997); Was heisst Denken? 1951–1952; Unterwegs zur Sprache 1950–1959 (A Caminho da Linguagem 2008); Nietzsche 1936 (Nietzsche 2007); Die Frage nach dem Ding 1935 (Que é uma Coisa? 1992).

Formado em Teologia Católica e na filosofia escolástica antes da Primeira Guerra Mundial, Heidegger emergiu depois da guerra como um criativo proponente da fenomenologia de Edmund Husserl. Contudo, a sua reformulação radical do método e das tarefas da fenomenologia levou ao rompimento com Husserl.

A fama surgiu em 1927 quando publicou Sein und Zeit. Foi publicado como a primeira de duas partes de uma obra projetada em seis partes daquilo que denominava “ontologia fundamental”, que exploraria a questão do que significa ser. Sustentava que a metafísica ocidental desde Platão tinha perdido de vista o problema enquanto questão significativa. A ideia de Heidegger era começar com o tipo de ser que cada um de nós manifesta, para tornar a questão mais lata, adaptando a fenomenologia de Husserl como método a usar na investigação. Queria também evitar incompreensões que resultariam do uso da terminologia da metafísica tradicional — em vez disso, mostrou forte predileção por expressões rústicas, coloquiais, e neologismos evocativos. O seu uso da linguagem é uma das razões pelas quais muitos leitores o consideram obscuro.

Na perspetiva de Heidegger, o ponto de partida da filosofia moderna era a noção de Descartes de que um ser humano é essencialmente uma res cogi- tans — uma coisa pensante — e que nada há a que tenhamos um acesso mais imediato do que à nossa própria mente e aos seus conteúdos. Esta perspetiva deixa de lado como inessencial o facto de sermos seres conscientes que se interpretam a si mesmos e que estamos incorporados em contextos materiais, sociais e históricos, e, acima de tudo, restringidos pela nossa mortalidade. No enquadramento cartesiano posso estabelecer conclusivamente que existo — mas Descartes nunca parou para investigar a natureza da existência dessa entidade que sou eu. Esta investigação propôs-se Heidegger levá-la a cabo, investigando como este tipo de existência (a que chamou Dasein) se revela na nossa existência e experiência efetivas.

O Dasein, este modo particular de existir, é diferente da existência comum das coisas no mundo que nos rodeia. A diferença é que as coisas são determinadas e têm as suas propriedades distintivas. Esse é o seu tipo de ser. Mas o género de ser que eu manifesto não é o de um ser com propriedades. É um espaço de modos possíveis de ser. Defino o indivíduo em que me torno projetando essas possibilidades que escolho, ou que permito que escolham por mim. Quem me torno é uma questão de como ajo nos contextos em que me insiro. A minha existência é sempre uma questão para mim, e eu determino pelas minhas ações o que será. A existência humana é sempre uma projeção de nós mesmos no futuro: é a cada momento estar essencialmente “a caminho” do que fomos e tentamos ser, para o que seremos.

A nossa existência é assim essencialmente temporal, no sentido de termos um passado vivido na culpa, e um futuro antecipado com temor. O tempo não é aqui concebido como algo que se alonga em direção a um futuro ilimitado; pelo contrário, alonga-se em direção a um futuro indefinido limitado pela morte. Assim, o nosso modo de ser é essencialmente finito, um movimento inelutável em direção à cessação do ser. Estar-se ciente da mortalidade é uma parte essencial do Dasein.

O modo como os indivíduos existem varia. Alguns entregam-se ao mundo, estando cientes da sua mortalidade; vivem de um modo que é genuinamente autodeterminante e autocrítico. A sua existência é mais autêntica: concorda com a sua natureza ontológica. Em contraste, há quem tenha uma vida de superficialidade e de tagarelice ociosa, deixando a sua vida ser determinada por convenções sociais e conformismo: a sua existência é inautêntica.

Outra característica básica do tipo de existência que temos é existirmos no mundo. Temos a experiência de pertencer ao mundo: na verdade, damos connosco “lançados” no mundo, por nenhuma razão discernível. Estamos imersos neste mundo e lidamos com as coisas do mundo (e não, como exige a epistemologia tradicional, preenchendo a lacuna, que de facto não é preenchível, entre uma consciência fechada em si e um objeto externo, mas relacionando objetos com as nossas ocupações práticas: como ferramentas, como algo que está à mão, ou que nos falta). Só pela abstração posterior é que desenvolvemos os nossos conceitos teóricos e encaramos as coisas com as suas propriedades essenciais e acidentais como objetos de conhecimento teórico, o que por sua vez torna possível conceber a nossa existência, erradamente, como se fosse do mesmo tipo da dos objetos.

É ao revelar as características fundamentais do Dasein — do tipo de existência que temos — que compreendemos outros tipos de existência, i.e., outros sentidos do “ser”, começando assim a responder ao que Heidegger chama “a questão do ser”.

Ao encontrar a maneira correta de lidar com esta questão, Heidegger tinha a esperança de superar a tradição da metafísica ocidental, que começou com Platão. O seu principal defeito é o “esquecimento do ser”. A metafísica tradicional tende a separar certas entidades privilegiadas (as Formas, Deus, um Eu transcendental, o Espírito, etc.), esquecendo assim o facto de que a nossa compreensão do ser se baseia no modo como somos no mundo e como nos relacionamos com as entidades do mundo. Este defeito da metafísica tradicional conduz à procura equivocada de uma teoria definitiva de tudo: uma conceção total, de uma vez por todas, do porquê de as coisas serem como são. Em vez disso, Heidegger salientou o carácter histórico do próprio pensamento filosófico, e a sua necessidade de estar ciente de como cada pensador pensa a partir da sua própria situação histórica.

Não são apenas os estados internos (o sentido de temor, de estar “lançado”, de tédio, de culpa, etc.) que a filosofia pode compreender como desvelamentos do ser, mas também certas condições sociais e culturais. O culto moderno da “tecnologia” — um modo de nos relacionarmos com o mundo que trata as coisas apenas como objetos de dominação e de consumo, sem um olhar arguto sobre as suas próprias limitações — é, em si, uma expressão de niilismo, a única filosofia que resta a uma ambição metafísica que se transformou em pesar. É uma mentalidade que pode ser superada lançando um olhar mais arguto sobre o verdadeiro significado do que é ser, e com a rejeição daquilo a que Heidegger chamava “humanismo”, a pretensão da razão de que é capaz de conhecer o mundo exaustivamente e de o pôr inteiramente à disposição dos seres humanos. Não é sensato resistir ao pensamento calculista da ciência moderna e à tecnologia daí resultante (apesar de algumas coisas em Heidegger sugerirem um anelo pela vida rural pré-moderna), mas pode ser transcendido por uma espécie de “emigração interior”, afastando-nos do carácter invasivo da vida moderna, e da sua superficialidade, e aproximando-nos de um Gelassenheit (uma palavra tomada de empréstimo a Mestre Eckhart, e que conota desprendimento — “deixar as coisas ser” — e serenidade), no qual nos reconciliamos com a nossa própria mortalidade.

Tem havido uma forte controvérsia quanto ao pensamento de Heidegger. Os admiradores viram nele intuições penetrantes quanto às verdades mais profundas sobre a condição humana e a natureza do homem. Os críticos queixam-se da linguagem obscura, de fracos argumentos e etimologias dúbias; e tem havido muito debate sobre se a sua postura política revela uma deficiência profunda na sua filosofia.

Richard Campbell, Bruin Christensen e Thomas Mautner
Dicionário de Filosofia, dir. Thomas Mautner (Edições 70, 2010), pp. 356–359

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