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Crítica
16 de Janeiro de 2008   História da filosofia

Refrescantemente original

Rui Daniel Cunha
Bertrand Russell e a Filosofia Analítica no Século XX
de Henrique Jales Ribeiro
Coimbra: Pé de Página Editores, 2007, 80 pp.

Eis um livro refrescantemente original e muito bem fundamentado, que abre novas e promissoras perspectivas de interpretação das filosofias de Bertrand Russell, do Wittgenstein do Tractatus e da história da filosofia analítica do século XX em geral. Foi publicado há poucos meses em Portugal e trata-se de uma versão reformulada da lição de síntese das provas de agregação em filosofia do autor, professor associado da Universidade de Coimbra. Encontra-se dividido em quatro capítulos, uma introdução e um prefácio, terminando com um conjunto de referências bibliográficas adequadas às matérias em causa. Tentemos explorá-lo passo a passo.

A introdução, intitulada “Uma visão popperiana dos problemas filosóficos”, apresenta algumas teses metafilosóficas importantes de Jales Ribeiro. A primeira é que a filosofia consiste essencialmente numa forma argumentativa de resolução de problemas. O que implica esta tese? Implica que aquilo que não for argumentável não será filosófico. Isto significa que a argumentação é o verdadeiro núcleo essencial da atitude crítica inerente à filosofia, excluindo do seu âmbito qualquer pretensão dogmática. Consequência pedagógica desta tese é a importância de ensinar os estudantes de filosofia a argumentar correctamente — construindo argumentos, distinguindo premissas (explícitas ou implícitas) de conclusões, testando a validade de argumentos e analisando a sua solidez e cogência.

Uma segunda tese, particularmente relevante em história da filosofia, é que, para citar o autor,

“na medida em que levanta verdadeiros problemas filosóficos, ele [um texto de filosofia] não é susceptível de uma interpretação mais ou menos definitiva, por muito que cada um de nós pretenda justamente o contrário quando o comentamos” (p. 9).

Mas esta tese não implica, note-se, uma qualquer defesa do relativismo, como observa Jales Ribeiro:

“A impossibilidade de se chegar a uma interpretação final, decisiva, desses problemas, não deve ser vista como um factor de decepção e, muito menos, como um convite ao relativismo e à suspeição” (pp. 9–10).

Trata-se de entender o trabalho filosófico como um trabalho totalmente reflexivo, diante de problemas magnos — por exemplo, qual é o sentido da vida? Por que devo praticar boas acções? O que é a justiça? Como saber o que é arte ou não é arte? etc. — para os quais todas as possibilidades de resposta estão em aberto. Mas o objectivo último é sempre o mesmo — a verdade.

Uma terceira e igualmente decisiva tese é a da conexão essencial entre a filosofia e a ciência (e não, sublinho, entre a filosofia e a literatura), aproximando Jales Ribeiro o filósofo do cientista numa perspectiva popperiana:

“É neste sentido fundamental [da filosofia como tarefa de discussão argumentada de problemas] (...) que o filósofo — e em particular aquele que se reclama da tradição analítica em filosofia — se aproxima do homem de ciência. Creio ter sido esta a mensagem fundamental do livro de Karl Popper intitulado A Lógica da Descoberta Científica” (p. 10).

Por fim, uma quarta tese metafilosófica, que decorre da primeira, diz respeito mais especificamente à filosofia analítica: a característica mais essencial da filosofia analítica — se é que a podemos considerar como modo próprio de fazer filosofia, diferente de outros modos e tradições, o que não é de todo óbvio, como nota Jales Ribeiro — reside justamente “na argumentação suscitada por autênticos problemas filosóficos” (p. 10). Neste caso, a filosofia analítica mais não é então do que a continuação contemporânea de toda a longa tradição da filosofia como racionalidade argumentativa, que se inicia com os diálogos platónicos, como é bem sabido. E se assim é, então a lógica necessariamente é a base da filosofia.

O objectivo fundamental do primeiro capítulo, intitulado “Actualidade e posteridade da filosofia de Russell: a problemática do holismo na história da filosofia analítica”, é a reabilitação da importância da filosofia de Bertrand Russell para a filosofia analítica contemporânea, em oposição às interpretações que desvalorizam a relevância do seu pensamento para os debates filosóficos actuais, interpretações essas que argumentam que

“a sua [de Bertrand Russell] filosofia terá entrado em bancarrota na sequência do impacto do Tractatus Logico-Philosophicus, de Ludwig Wittgenstein, dos anos vinte do século passado em diante” (p. 14).

Em particular, o Wittgenstein do Tractatus terá derrubado um determinado tipo de relação entre a lógica, a psicologia e a epistemologia, relação essa que seria justamente defendida por Russell e se constituiria

“como um exemplo paradigmático de uma concepção clássica ou tradicional, fundacionalista, em matéria de teoria da significação, que seria constitucionalmente alheia às novas perspectivas behavioristas e naturalistas a respeito da mesma” (p. 15).

Aqui, Jales Ribeiro argumenta, primeiro, que não é verdadeiro — nem histórica nem conceptualmente — que a filosofia de Russell tenha sido derrubada pela filosofia do Wittgenstein do Tractatus, e, segundo, que também não é verdadeiro que a filosofia de Russell não tenha

“acompanhado o desenvolvimento do pensamento filosófico ao longo do século XX, e particularmente na primeira metade do mesmo” (p. 16).

Uma inovação crucial de Jales Ribeiro é defender que a filosofia de Russell, no começo dos anos vinte — o Tractatus foi publicado em 1921 —

“ao contrário do que dizem as conhecidas e estafadas interpretações da historiografia analítica contemporânea, não é verificacionista e reducionista em matéria de teoria da significação” (p. 16).

Pelo contrário, o que é característico de Russell em artigos como “On Propositions”, de 1919, e livros como The Analysis of Mind, de 1921, é uma defesa pioneira da teoria segundo a qual a significação tem como base o uso da linguagem. Deste modo, Russell não defende uma concepção mentalista e cartesiana da significação, e o ponto central de Jales Ribeiro é que é a Russell, e não ao Wittgenstein das Investigações Filosóficas,

“que devemos atribuir a primeira formulação de uma tal teoria [do significado como uso], logo no primeiro quartel do século XX” (p. 18).

Este insight de Jales Ribeiro é extremamente original na vasta scholarship russelliana.

Há indícios textuais a este respeito, que Jales Ribeiro cita apropriadamente. Por exemplo, nos Manuscritos Preparatórios de The Analysis of Mind, bem como na “Lição Dez” deste mesmo livro, encontramos esta ideia de que o sentido dos termos e das expressões da linguagem corrente tem como base o contexto de uso, designadamente quando Russell assimila a linguagem a um jogo, como por exemplo o críquete:

“O jogo do críquete constitui uma linguagem no sentido em que, como o(s) jogo(s) da linguagem corrente, tem as suas próprias regras, mas as mesmas não são inteligíveis a não ser através da sua aplicação (...). Russell dirá “o uso vem primeiro e a significação é destilada dele”” (p. 62).

A aproximação ao Wittgenstein das Investigações é inevitável:

“Aprende-se o jogo da linguagem — como se aprende o críquete — jogando. Isto é algo que Russell dirá em 1920–1921, muito antes de Wittgenstein vir a apresentar o seu conhecido conceito de “jogo de linguagem”” (p. 63).

Igualmente original é o insight de Jales Ribeiro segundo o qual o confronto entre a “Introdução” de Russell ao Tractatus e a própria obra de Wittgenstein é

“uma das primeiras colocações da problemática holismo versus atomismo (ou holismo versus verificacionismo e reducionismo) que é suposto ter sido introduzida pela primeira vez na história da filosofia analítica por Quine durante os anos cinquenta” (pp. 18–19),

diferenciando-se aqui Jales Ribeiro da posição de Rudolf Haller, que atribui ao Positivismo Lógico do “Círculo de Viena” o começo desta problemática. Jales Ribeiro atribui a Russell, neste confronto, um “holismo semântico parcial”, em oposição a um “holismo lógico-sintáctico” de Wittgenstein, ao contrário da interpretação tradicional e maioritária (atomista) do Tractatus.

Claro está que o conceito de “holismo” não é um conceito simples. Aliás, conforme refere Christopher Peacocke (artigo “Holism”, Blackwell Companion to the Philosophy of Language), esta doutrina do holismo foi atribuída a pensadores tão diversos como Quine, Putnam, Davidson, Rorty, Gadamer e Heidegger, e a lista não é exaustiva. É difícil de acreditar que filósofos tão diferentes usem “holismo” exactamente com o mesmo sentido. Deste modo, este conceito notoriamente complexo, bem como o seu oposto, o “atomismo”, exige alguma clarificação prévia.

A consulta de qualquer bom dicionário ou enciclopédia de filosofia (por exemplo, o Oxford Companion to Philosophy, organizado por Ted Honderich) permite definir o atomismo lógico como a teoria segundo a qual o mundo é constituído por “átomos lógicos”, conjuntamente com os factos compostos a partir desses átomos. Os átomos são lógicos porque têm as características lógicas mas não metafísicas das substâncias — designadamente não persistem ao longo do tempo. Ao processo de descoberta dos átomos lógicos chama Russell a “análise lógica”. Deste atomismo lógico é possível derivar um atomismo semântico, que é a tese segundo a qual o sentido de qualquer representação (linguística, mental ou outra) não é determinado pelo sentido de qualquer outra representação, sendo pois completamente independente. Pelo contrário, o holismo semântico é a tese segundo a qual o significado de um símbolo depende de todo o sistema de representações que o contém. Assim, por exemplo, uma expressão linguística só tem sentido no contexto de toda uma linguagem, ou ainda, uma hipótese só tem sentido no contexto de toda uma teoria científica. Mas a caracterização que Jales Ribeiro faz do holismo semântico de Russell — resultante da evolução da sua filosofia a partir de 1918, “ano de uma viragem fundamental no seu pensamento filosófico” (p. 17) — vai mais longe. Vejamos:

“A aceitação da theory-ladenness of observation (numa tradução literal: “observação permeada pela teoria”), por parte de Russell, conduziu-o a interrogar-se sobre a questão de saber em que medida o objecto ou matéria de uma tal observação (designemo-lo por “dado” para simplificar) existe ou não independentemente da própria teoria. Posta em termos de filosofia da linguagem, a aceitação dessa teoria implica a questão de saber em que medida a significação e a referência nos remetem para fora do âmbito da própria linguagem ou para o mundo, quer dizer, para um “dado” que existirá aí como constituinte último (...) e independentemente, portanto, da própria linguagem” (p. 18).

E logo de seguida Jales Ribeiro apresenta a resposta de Russell — o seu “holismo semântico parcial”:

“A resposta do filósofo [Russell] passa por reconhecer a importância fundamental da ideia de mediação semântica (...) e, por outro lado, em rejeitar decididamente aquelas concepções que, de uma maneira ou outra, conduzem à negação da ideia de “dado”. Russell adopta, pois, no âmbito da sua teoria da significação, o que podemos chamar um “holismo semântico parcial”” (p. 18).

Já o holismo lógico de Wittgenstein é definido como a teoria segundo a qual a lógica é considerada, não como um mero sistema de signos e de regras, mas sim como “condição de possibilidade de toda a representação ou de todos os diferentes sistemas de representação possíveis” (p. 21), isto é, como um “meio universal” (universal medium), na expressãode Jaakko Hintikka.

Como interpretar então o Tractatus de Wittgenstein? Na interpretação tradicional, o Tractatus é um exemplo de atomismo lógico, mas mais perfeito e consistente que o de Russell, razão pela qual o atomismo lógico do filósofo inglês teria sido superado pela nova versão (da mesma teoria) do pensador austríaco. Como escreve Jales Ribeiro,

“esse livro [o Tractatus] foi tradicionalmente interpretado como expondo uma concepção atomista (não, é verdade, verificacionista e reducionista) a exemplo da própria concepção de Russell, mas purificada e descontaminada das pressuposições psicológicas e epistemológicas, a respeito da lógica, deste último filósofo” (p. 20).

Ora, argumenta Jales Ribeiro a propósito do Tractatus,

“identificada a lógica com uma grande grelha de representação do mundo no seu todo, não é verdadeiro que subjacente a uma tal concepção está, não o atomismo, mas justamente o holismo? “(p. 21).

Eis a nova hipótese de interpretação tractariana aqui colocada.

No capítulo segundo do seu livro, intitulado “Desconstruindo as interpretações de Russell na história da filosofia analítica”, o autor analisa e critica detalhadamente, com argumentos poderosos, determinadas interpretações da filosofia de Russell — designadamente as de Max Black e A. J. Ayer — que, se aceites, teriam justamente como efeito a irrelevância da reflexão filosófica de Russell para as problemáticas mais recentes da filosofia analítica.

Mas é no terceiro capítulo, intitulado “Russell versus Wittgenstein, e as saídas para o problema do holismo em filosofia”, que Jales Ribeiro regressa ao problema crucial do holismo:

“O que é próprio da questão do holismo, numa perspectiva semântica, é a indeterminação da significação que resulta da mediação do dado através das nossas representações na linguagem corrente, e, em consequência, o problema de saber em que medida um tal dado existe ou não efectivamente como fundação última do nosso conhecimento do mundo” (p. 45).

Para este problema da relação entre as palavras (a teoria) e os factos (o dado), ou entre a linguagem e o mundo, na terminologia de Wittgenstein, a solução básica de Russell, defende Jales Ribeiro, consiste em naturalizar o conhecimento humano, antecipando afinal a tese da “epistemologia naturalizada” de W.V.O. Quine:

“A ideia de Russell, como a ideia de Quine, anos mais tarde, é que o conhecimento humano, quando bem compreendido, é um facto tão natural como qualquer outro dos que se ocupam as ciências físico-naturais (...). Deste ponto de vista, conhecimento e experiência não são realidades distintas (...). Pelo contrário, são realidades indissociáveis. Desde o simples senso comum às ciências físico-naturais ou à filosofia, passando pelos mais elevados patamares de investigação na lógica e na matemática, conhecimento e experiência constituem um todo único e solidário entre as suas diferentes partes, que só por razões conceptuais nos atrevemos a dividir e a analisar; e é nesse todo, não em qualquer artefacto filosófico, que, finalmente, consiste a nossa experiência” (pp. 53-54).

Também neste insight, com Russell a antecipar Quine, a interpretação de Jales Ribeiro é extremamente interessante.

Por fim, no quarto capítulo, intitulado “De Russell às teorias de Quine: os perigos do holismo em Filosofia”, o autor analisa em maior detalhe a problemática do holismo na filosofia dos membros do Círculo de Viena (por exemplo, em Otto Neurath, Moritz Schlick e Rudolf Carnap) e na filosofia de Quine, bem como as críticas de Russell ao positivismo lógico dos membros do Círculo de Viena, justamente, e a errónea interpretação que Quine faz da filosofia de Russell.

Segundo o filósofo britânico,

“os positivistas foram conduzidos, em matéria de teoria da significação, a conceber a linguagem de um modo geral como um todo autónomo e auto-subsistente, que não careceria de quaisquer fundações no mundo exterior “ (p. 57).

Deste modo, opera-se um reducionismo linguístico que, no limite, anula a tal distinção fundamental entre a linguagem e o mundo, entre as proposições e os factos. Em teoria da verdade (metafísica), isso significa, obrigatoriamente, uma defesa da teoria da coerência, como Jales Ribeiro bem assinala, e Neurath defende explicitamente. E podemos inferir que tal reducionismo — completamente ausente da filosofia de Russell — constituirá, em epistemologia, uma nova versão do idealismo: um “idealismo linguístico”, por assim dizer, sucessor de outras versões anteriores bem conhecidas do idealismo.

Quanto à interpretação da filosofia de Russell por parte de Quine, a tese de Jales Ribeiro é bem clara:

“Que a filosofia de Russell seja verificacionista e reducionista, como Quine e outros dirão, é algo que, depois do que se disse mais acima, é completamente inaceitável” (p. 55).

O holismo muito particular da filosofia de Quine é então sujeito, ao longo de todo este capítulo, a uma densa e minuciosa análise por parte do autor:

“O holismo semântico radical de Quine, a que me tenho vindo a referir, é patente na sua distinção entre as duas conhecidas indeterminações em matéria de teoria da significação — a da tradução e a que caracteriza a inescrutabilidade da referência” (p. 68).

Na sequência da análise das teorias de Quine, e muito em especial desde os “Two Dogmas of Empiricism” até “Ontological Relativity”, Jales Ribeiro precisa de novo a relação entre o conceito-chave do seu livro — o holismo — e a distinção entre a linguagem e o mundo, numa passagem crucial:

“Não é essencial à definição de holismo que não se subscreva a distinção entre a linguagem e os factos; pode-se admitir essa distinção numa perspectiva holista, como aconteceu com Russell e os próprios positivistas lógicos vienenses, sem se reconhecer que ela tenha uma justificação razoável na própria ordem das coisas (...). O problema, para aqueles que assim vêem a distinção entre a linguagem e os factos, consistirá então em procurar uma saída, filosoficamente falando, para a relatividade semântica característica da mesma. Eles [os que aceitam esta distinção] admitirão com toda a boa vontade, com Quine, que os factos estão sempre impregnados de teoria e que a significação é sempre mais ou menos indeterminada; mas recusarão expressamente que dessa relatividade se retire a conclusão de que é impossível distinguir rigorosamente entre a linguagem e os factos; e muito menos aceitarão que, dada essa impossibilidade, a filosofia perca o seu objecto próprio de investigação” (pp. 65-66).

Por isso mesmo é que o holismo semântico de Russell (ao contrário do de Quine) é um holismo apenas parcial — o todo da linguagem não é identificável com o todo do mundo. Com a linguagem, apesar de tudo, é possível representar algo que não é linguístico — o “dado”.

Que a filosofia, além de não perder o seu objecto, também não perde o seu enorme valor enquanto racionalidade argumentativa acerca de problemas essenciais, é amplamente demonstrado neste livro de Henrique Jales Ribeiro. A não perder.

Rui Daniel Cunha
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