Podemos afirmar que a gênese da Filosofia chinesa tradicional, tal como a conhecemos hoje, situa-se no século VI a.C. com Confúcio, Laozi, e o estabelecimento das primeiras escolas de pensamento da antiguidade. Esta classificação se dá por dois motivos: primeiro, pela falta de um conhecimento mais preciso dos sistemas que existiam anteriormente ao período citado; segundo, que este mesmo momento histórico caracteriza-se pelo rompimento das estruturas culturais vigentes até então, e pelo estabelecimento dos paradigmas que serviriam como conteúdo de discussão até os dias de hoje (Chan, 1979). No entanto, algumas informações fragmentárias nos permitem inferir a estruturação de diversos conceitos filosóficos anteriores ao século VI a.C., e creio ser interessante apresenta-los aqui para compreendermos a base de discussão sobre a qual os sistemas tradicionais se desenvolveram.
Inicialmente, podemos afirmar que existia uma cosmologia razoavelmente estabelecida no pensamento chinês, que trabalhava com uma série de idéias que remontam ao período Shang, do século XVI a.C., e que seriam posteriormente desenvolvidas pela dinastia Zhou. Desde a descoberta das carapaças de tartaruga de uso premonitório e oracular (ver Ebrey, 1993), vemos menções aos designativos Tian (Céu), Dao (Caminho), Yi (Mutação), etc. Tais citações aparecem também nos vasos de bronze de uso ritual da mesma dinastia Shang (ver Watson, 1969). Este material nos dá idéia de um sistema de interpretação e interação com o cosmo que oscilava entre o religioso e o natural. A conclusão da formulação deste sistema aparece nos discursos do Yijing (Livro das Mutações), recuperado por Confúcio, que traduz nas fórmulas hexagramáticas a interpretação que os chineses tinham do que era natureza e da relação que sua cultura possuía com ela, como veremos adiante.
Neste pensamento primitivo, havia a idéia corrente de que a civilização era um desdobramento criativo do ser humano em relação à natureza primordial. No entanto, o mesmo ser necessitava estar em constante interação com o cosmo, pois, estando inserido nele, não podia de forma alguma obliterar os seus canais de comunicação sensorial, sob o risco de perder-se em si mesmo e em seu meio. Esta natureza (ou cosmo) era designada pelo termo “Tian” (Céu), ao qual o plano material (a Terra) estava indissoluvelmente ligado. Perder o caminho era perder o Dao, ou seja, desligar-se da real natureza para incorrer na corrupção e na degradação do próprio ser. No entanto, acreditava-se que a sociedade era uma reprodução da harmonia celeste: ou, ao menos, eram o que imaginavam os pensadores da dinastia Zhou. Tendo assumido o poder no século XI a.C., após a derrubada dos Shang, os Zhou criaram a idéia de um passado ideal que culminava na formulação de uma civilização perfeita, ou seja, a sua. (Cheng, 2003)
Neste tempo, surgem os clássicos que Confúcio depois resgataria: o Li Qi (Manual dos Rituais), o Shijing (Tratado das Poesias), Shujing (Tratado das Histórias), Yuejing (Tratado das Músicas) e o Yijing (Tratado das Mutações). Ele ainda somaria a estes textos uma crônica histórica escrita por si próprio, o Chunqiu (Anais das Primaveras e Outonos). Quase todos estes escritos não tratam de assuntos diretamente ligados à formulação de um pensamento filosófico, mas por se tratarem de conteúdos de uma cultura antiga ideal, Confúcio os empregaria para o estudo e aperfeiçoamento de seus discípulos.
A produção deste conhecimento corresponde diretamente ao aperfeiçoamento das antigas teorias cosmológicas Shang que o período Zhou promoveu: o universo, gerado por um princípio (Li) se originaria de um vazio primordial (Kung, ou Wu). Deste princípio se origina a oposição complementar fundamental (Yin e Yang), que geraria os oito estados essenciais da natureza (os oito Guas, ou trigramas, do Yijing). Noções como Qi (energia) e Wuxing (cinco agentes) iriam em breve aparecer, também, na literatura filosófica. Esta cosmologia seria a base das discussões concernentes à busca do Dao (o caminho, ou a conexão primordial) que permeariam a formação das jias (escolas de pensamento) depois do século VI a.C. (Vandermeersch, 1980).
O que aconteceu neste último período é razoavelmente conhecido e não nos aprofundaremos nisso: a dinastia Zhou começou a entrar num processo de degradação das estruturas de poder e as guerras civis começaram a estalar. Diante do quadro caótico que se apresentava, os pensadores chineses decidiram resgatar (ou romper) com o passado e elaborar uma nova civilização. Foi quando surgiu, então, o período das Cem escolas de pensamento, donde proviria a nata destes filósofos chineses que escreveram seus nomes na História. O nome desta época deriva da grande quantidade de sistemas filosóficos que teriam surgido prometendo respostas para os problemas sociais e políticos que assolariam a China até o século III a.C. Não sabemos com exatidão a extensão deste movimento; os historiadores Sima Qian (II-I a.C.) e Ban Gu (I d.C.) propuseram uma classificação arbitrária que organizava, com fins didáticos, a linhas de pensamento que estas escolas seguiam. Sua divisão se daria da seguinte forma: Escola dos Letrados (Confucionistas), Escola Moísta, Daoísta, Legista, Nominalista, Cosmologista, Política, Eclética e Escola dos Agricultores. (Joppert, 1979) As linhas mais importantes teriam sido a confucionista, daoísta, moísta, legista, nominalista e cosmologista. As outras, de menor importância, não teriam deixado contribuições decisivas para sua sobrevivência até os nossos dias.
Vale ressaltar que quase todo material de que dispomos hoje para estudar esta filosofia antiga resulta de um grande esforço empreendido durante a dinastia Han (III a.C.-III d.C.) para resgatar as obras antigas do pensamento chinês, já que durante a dinastia Qin (III a.C.), houve uma grande queima de livros filosóficos (tidos como subversivos e reacionários) que açambarcou vários dos títulos que hoje conhecemos. Mas o esforço de sábios, famílias e intelectuais permitiu uma recuperação grandiosa deste material, que os Han buscaram, na medida do possível, reproduzir de forma imparcial.
André Bueno