Os Elementos do Jornalismo, livro de Bill Kovach e Tom Rosenstiel, oferece bons temas para reflexão. Bem escrito, claro e objetivo, mostra o que passa pelas cabeças dos jornalistas dos EUA, mas vale também para os brasileiros, inclusive no que diz respeito a algumas confusões teóricas da profissão, sempre apontadas mas não resolvidas. Aproveito a ocasião para comentar duas delas.
Como se sabe, os dois profissionais integram o Comitê dos Jornalistas Preocupados, que realizou pesquisa abrangente junto a jornalistas e cidadãos norte-americanos (ao todo, 21 discussões públicas, com a presença de três mil pessoas e o testemunho de mais de 300 jornalistas). O livro é resultado dessa iniciativa, que, descrevendo “a teoria e a cultura do jornalismo”, chegou a estes nove “elementos” (p. 22–23):
O propósito de Kovach e Rosenstiel é destrinchar tais elementos em vista do que julgam ser a finalidade do jornalismo: “fornecer informação às pessoas para que estas sejam livres e capazes de se autogovernar”. Aos jornalistas que lidam com o quotidiano, pode parecer uma banalidade, mas o fato é que alguns pontos do elenco implicam questões de relevância filosófica e científica que a profissão é incapaz de resolver a partir apenas de sua prática — o que aponta para a necessidade de uma epistemologia do jornalismo, que dê conta, por exemplo, de conceitos como verdade, objetividade e fato, sobre os quais paira confusão, semeada metodicamente pelo relativismo e pelo “desconstrucionismo” de algumas teorias da comunicação.
Por brevidade, abordarei aqui apenas os tópicos 1 e 2, que julgo intimamente conectados. Se a questão da verdade é tão importante para o jornalismo, a ponto de constituir-se em imperativo ético (como estabelecem os códigos deontológicos da profissão), o que será verdade para os jornalistas? Este conceito, fundamental para a filosofia e as ciências e prezado igualmente pelo senso comum, não tem merecido reflexões mais aprofundadas nas teorias do jornalismo e da comunicação. Apesar dos seus méritos, o livro de Kovach e Rosenstiel não foge à regra, embora considere a verdade como “o primeiro princípio” do jornalismo, aquilo “que diferencia a profissão de todas as outras formas de comunicação” — unanimidade, aliás, entre os jornalistas e acadêmicos entrevistados. Mas todos foram também unânimes em reconhecer que se trata de um princípio “confuso”.
É como se, afirmam os autores, os jornalistas pensassem “que a verdade é alguma coisa que surge sozinha como o pão que cresce no forno”. Em vez de “defender técnicas e métodos para encontrar a verdade, os jornalistas negam a existência desses recursos”, assim como compreendem mal o conceito de objetividade, que os comunicólogos acadêmicos — tanto aqui como na Europa e nos EUA — trombeteiam ser um “mito”, uma “ilusão”, quando não um subterfúgio das “classes dominantes”.
O que propõem Kovach e Rosenstiel? Ambiguamente, que o jornalista busque uma “forma prática e funcional de verdade”. Mas sobre o que seria tal forma, limitam-se a dizer que não se trata da “verdade no sentido absoluto ou filosófico”. E, numa citação de segunda mão, sustentam que “existem dois testes da verdade segundo os filósofos: um é a correspondência; o outro, coerência. Em termos jornalísticos, isso significa apurar direito os fatos e dar-lhes sentido. A coerência deve ser o teste derradeiro da verdade jornalística” (p. 69-70). Ora, aqui os autores contribuem para semear mais confusão. Primeiro, por ligarem a filosofia a uma noção de verdade absoluta (algo que poucos filósofos estariam dispostos a manter, mesmo os mais empedernidos anti-relativistas: verdade se alcança aproximativamente, não absolutamente). Segundo, por suporem ser a coerência mais importante, para o jornalista, que a correspondência. E este ponto merece algumas ponderações.
Deixando de lado as esquálidas teorias “minimalistas” e “deflacionistas”, convém lembrar que são três as versões mais correntes de verdade: a da correspondência, a da coerência e a pragmática. Para a primeira, verdade é a correspondência de uma declaração ou proposição com os fatos (a relação é entre mente e mundo, linguagem e realidade); para a segunda, a verdade consiste em relações de coerência em um conjunto de enunciados ou crenças (relações adstritas, portanto, ao plano da lógica); para a última, verdade é utilidade. Não são versões absolutamente opostas: correspondência, coerência e adequação pragmática são componentes que, por assim dizer, se instalaram historicamente no conceito de verdade. Há relações de proximidade entre elas (sobre as teorias da verdade, ver o interessante Filosofia das lógicas, de Susan Haack, São Paulo, Unesp, 2002 [Philosophy of Logics]).
A teoria da verdade como correspondência parece ser a mais adequada tanto ao jornalismo quanto às ciências (o que não implica afirmar que o jornalismo seja uma ciência). Ela simplesmente estabelece que uma declaração ou proposição é verdadeira se corresponde aos fatos. Assim, a declaração “o presidente Lula não dá entrevistas coletivas aos jornais” é verdadeira se — e somente se — o presidente Lula não concede entrevistas coletivas aos jornais. Se esta declaração corresponde aos fatos, isto é, à realidade, eis a verdade. Nada impede que a declaração venha a ser falseada qualquer dia, quando enfim o presidente se dignar a falar aos jornalistas. Até o momento, porém, ela é verdadeira.
O jornalismo, portanto, não pode se resumir à coerência das declarações das fontes, ainda que deva fugir de incoerências. Sua obrigação é checar se as declarações correspondem aos fatos, isto é, são verdadeiras. Afinal, como admitem os próprios Kovach e Rosenstiel, o que distingue a profissão de todas as outras formas de comunicação é exatamente “a busca desinteressada da verdade”. Já a teoria coerentista prescinde de tais requisitos: peculiar à lógica e à linguagem, não tem a ver necessariamente com o mundo dos fatos. A literatura, igualmente, pode tecer narrações coerentes que não correspondam a fatos, porque ficcionais. É curioso que os autores, embora admitindo esses encadeamentos de maneira implícita, aparentemente deixem de lado a verdade como correspondência. Estariam mais próximos, talvez, do pragmatismo — ainda que enaltecendo a coerência — ao buscarem uma “forma prática e funcional da verdade”? A teoria pragmatista, de fato, tem profundas raízes na cultura norte-americana. Mas, ao defenderem um “jornalismo de verificação” (que se baseia em “métodos objetivos”) contra um jornalismo meramente declaratório, e pensando inclusive numa “ciência da reportagem”, governada pelos “princípios da exatidão e da veracidade”, Kovach e Rosenstiel são obrigados a ir além dos requisitos de coerência ou utilidade. Se o que separa o jornalismo do entretenimento, da arte, da literatura e da propaganda é, como eles reconhecem, a “disciplina da verificação” — o trabalho de checagem e re-checagem das declarações e informações —, a correspondência (entre declarações e fatos, pensamento e realidade, mente e mundo) impõe-se como o caminho mais adequado para se chegar à verdade.
Ter apontado para tais confusões — ainda que sem resolvê-las —, e para a necessidade de retomar conceitos como objetividade, é um dos méritos deste livro, indispensável a quem estuda ou exerce o jornalismo.
Orlando Tambosi